Ditadura Militar

60 anos do Comício da Central do Brasil: a última noite iluminada antes de 21 anos de trevas

Artigo lembra os 60 anos da manifestações pelas Reformas de Base, que incluía Reforma Agrária, Reforma Universitária e Reforma Eleitoral, para ampliar o direito ao voto
Foto: Reprodução

Por Miguel Enrique Stedile*
Da Página do MST

O ano de 1964 será sempre lembrado pelo golpe de 1.º de abril e pelos 21 anos de Ditadura Empresarial – Militar que seguiram e cujos resquícios ainda estão presentes em nossa sociedade. Porém, a data também é uma oportunidade para lembrarmos que outros caminhos estiveram abertos para o país e, não fosse o desfecho pela força e pela intransigência, poderiam ter nos levado a um cenário mais justo. Especialmente, se as Reformas de Base apresentadas no Comício do Presidente João Goulart na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, tivessem sido efetivadas.

A instabilidade que levou ao golpe não se iniciou no governo de Jango, tão pouco tem qualquer relação com qualquer ameaça comunista. Na verdade, ela se inicia dez anos antes, quando o pacto da Era Vargas já demonstrava sinais de esgotamento. Quando Getúlio Vargas chegou ao poder na autoproclamada “Revolução de 1930”, se iniciou um novo período de avanço capitalista no Brasil. Apesar da abolição da escravatura e do fim do Império três décadas antes, as estruturas oligárquicas permaneciam intocáveis e bloqueando o desenvolvimento nacional. A Era Vargas substituiu as elites rurais por novas elites industriais, abriu espaço de participação política para as novas massas urbanas, subordinou a agricultura aos interesses da indústrias, mas não alterou nem a concentração de terras e nem o poder do latifúndio. Em 1954, era evidente que o pacto já não era sustentável. Os trabalhadores urbanos exigiam mais direitos e as elites, industriais e agrárias, preferiam a subordinação aos Estados Unidos, num cenário de Guerra Fria, a um projeto de desenvolvimento nacional. O suicídio de Getúlio atrasou o golpe em dez anos, mas não interrompeu as tensões políticas e sociais.

Na década seguinte, foram os camponeses, excluídos do pacto e proibidos até mesmo de organizarem-se em sindicatos, que emergiram em diversos movimentos populares. O mais importante deles eram as Ligas Camponesas, no nordeste, mas o Movimento de Agricultores Sem Terras (MASTER) no sul e a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTABs) também somavam-se nas diferentes mobilizações por reforma agrária.

Assim como a reforma agrária mobilizava os camponeses, a necessidade de romper com o acesso e a tradição elitista das universidades movia os estudantes, organizados na União Nacional dos Estudantes (UNE) e percorrendo o interior nas Caravanas da UNE e na organização dos Centros Populares de Cultura. Entre os militares de baixa patente, também haviam manifestações por melhores condições de trabalho, enquanto os trabalhadores urbanos exigiam melhores salários e mais direitos.

Este conjunto de reivindicações formavam as chamadas Reformas de Base. Tinham esse nome porque almejavam justamente transformar as bases excludentes da sociedade e substituí-las por uma estrutura mais igualitária. Eram a principal plataforma do Partido Trabalhista Brasileira (PTB), de João Goulart e Leonel Brizola, mas tinham o apoio do Partido Comunista Brasileiro, sindicatos e dos movimentos citados. Elas incluíam a Reforma Agrária; a Reforma Universitária, que propunha acabar com as cátedras vitalícias e garantir a livre docência; a Reforma Eleitoral, para ampliar o direito ao voto; além das reformas que alteravam a estrutura do Estado, como as reformas tributárias, administrativa e bancária. Este conjunto de medidas exigiria uma Reforma Constitucional.

Ainda que estivessem no programa de governo de João Goulart em sua candidatura à vice-presidência, numa época em que presidente e vice disputavam eleições separadas e os eleitos poderiam ser de partidos diferentes, elas foram sufocadas pela adoção do regime parlamentarista em 1961, a engenharia que permitiu a posse de Jango após a renúncia de Jânio Quadros. Após o plebiscito que devolveu o país ao regime presidencialista, em 1963, as bandeiras das reformas de base voltaram com força para às ruas. Jango ainda tentou apresentar naquele ano um projeto de reforma agrária, que foi rejeitado pelo Congresso e que bloqueou o avanço das demais propostas.

Principal líder de massas do período, o deputado e ex-governador gaúcho Leonel Brizola foi um dos articuladores da Frente de Mobilização Popular (FMP) para lutar pelas reformas. Participavam ainda a UNE e o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), enquanto no Congresso, a Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) atuava como defensora das reformas. Diante do impasse entre a Presidência e o Parlamento, a CGT pretendia convocar uma greve geral para pressionar pelas mudanças constitucionais.

Como os parlamentares se recusavam a alterar a Constituição para viabilizar a reforma agrária, João Goulart decidiu adotar outra estratégia, propondo a desapropriação de 100 km de cada lado das rodovias e ferrovias federais para a produção de alimentos. A nova política seria implementada por decreto, sem reforma constitucional. A proposta previa que apenas latifúndios acima de 500 hectares seriam desapropriados e os camponeses receberiam até 100 hectares, priorizando as famílias mais numerosas, e com prazo de 20 anos para pagarem o valor das terras ao governo. A intenção de realizar a reforma agrária nestas faixas era facilitar o escoamento da produção, para estimular a produção de alimentos, o abastecimento e o desenvolvimento do mercado interno.

A Reforma Agrária foi o principal anúncio do Comício da Central do Brasil, numa sexta-feira, 13 de março, convocado para apoiar as reformas de base a decisão do presidente João Goulart. Em seu discurso, Jango defendeu ainda a encampação das refinarias privadas de petróleo, prometeu enviar os projetos de reforma universitária e eleitoral, estendendo o voto para soldados e analfabetos, além de regulamentar o valor dos aluguéis. Também estiveram no palanque, o governador de Pernambuco Miguel Arraes, e Leonel Brizola. Mais de 300 mil pessoas participaram do ato.

Como resposta, os setores conservadores convocaram a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, seis dias depois em São Paulo. Mas essa era apenas a face pública do golpe. Os quartéis já conspiravam para depor Jango há mais tempo e as conspirações apenas se aceleraram. Os Estados Unidos forneciam apoio político e financeiro aos golpistas, através de institutos como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). O golpe tinha o apoio de veículos de comunicação como o grupo Globo, os jornais Folha de São Paulo e Estado de São Paulo. Segundo documentos tornados públicos pelo próprio governo dos Estados Unidos, anos mais tarde, desde 1962 o embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, discutia com o presidente John Kennedy a articulação de um golpe para derrubar o governo brasileiro.

Em 1.º de abril de 1964, finalmente as movimentações se tornaram públicas. Jango foi deposto, as reformas jamais foram implementadas e o país mergulhou em 21 anos de autoritarismo.

Segundo dados da Comissão Nacional da Verdade, 191 foram assassinadas e 243 desaparecidas pela ditadura. Mais de 20 mil pessoas foram torturadas pelos militares. A “ajuda” americana se estendeu aos métodos de tortura e de assassinato em massa nos porões e na facilidade em oferecer empréstimos nos salões do governo para impulsionar grandes obras que alimentaram um “milagre econômico”, que durou pouco. Quando deixaram o governo em 1985, os militares legaram um país quebrado economicamente, endividado e com hiperinflação. No campo, os militares impuseram uma modernização conservadora, que aumentou o êxodo rural e inciou o despejo de milhares de toneladas de agrotóxicos, marca até hoje das grandes propriedades.

As reformas de base ofereciam um caminho para o desenvolvimento soberano e nacional, buscava construir uma sociedade minimamente mais justa e igualitária. Foi interrompida para que mais uma vez as elites impusessem a subordinação, a concentração de terras e de rendas e a desigualdade como ideal de “ordem e progresso”.

*Miguel Enrique Stedile é educador do Instituto de Educação Josué de Castro e integrante da coordenação do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.