Memória

“Quem possui a terra, possui o homem”: André Rebouças, opositor do monopólio feudal da terra

Rebouças possui uma vasta produção teórica em temas como história econômica do Brasil, relações econômicas de trabalho, ensaios sobre política e sobre a liberdade de imprensa
André Rebouças. Foto: reprodução Jornal Nova Democracia

Por Jean Porfírio
Do Jornal Nova Democracia

Para quem estuda os fenômenos sociais não há crime maior do que o do monopólio da terra; é o fator principal da escravidão e da servidão da gleba, disfarçados atualmente de “sweating” e num salariato forçado; é o produtor satânico da miséria e de todos os horrores de anarquismo e desespero que ora afligem o Velho e o Novo Mundo.” (André Rebouças, em Diários e notas autobiográficas, citado por Alberto Passos Guimarães em Quatro séculos de latifúndio)

O baiano André Pinto Rebouças (1838-1898) é uma figura proeminente do pensamento social brasileiro do séc. XIX que, certamente, consta no panteão daqueles que tentaram construir o ferramental teórico e prático dos valores democráticos no Brasil. Da mesma maneira, soma-se a outros tantos que não viram estes valores se realizarem numa revolução democrática; pendência histórica que faz com que as vidas e produções de figuras como Rebouças reluzam ainda mais; pois assumimos para nosso tempo a tarefa de concretizar estes valores, fazendo vingar os sonhos dos que precederam a vitória.

Conhecido por seu trabalho como engenheiro e por seus empreendimentos como legítimo representante da burguesia nacional (isto é, da média burguesia), Rebouças também foi responsável por vasta produção teórica acerca de temas como história econômica do Brasil, relações econômicas de trabalho, ensaios sobre política e sobre a liberdade de imprensa, etc. E, principalmente, por sua destacada posição radical e não paliativa – colocada por Alberto Passos Guimarães entre a dos “abolicionistas mais esclarecidos (…) que conserva a mais completa atualidade” – ao pôr a questão da democratização da terra no centro do debate abolicionista.

Profundamente inspirado pela consolidação das revoluções democrático-burguesas na Europa e Estados Unidos tanto em suas propostas como engenheiro[ii] como teórico social, posicionava o atraso do Brasil como resultado do escravagismo e do monopólio feudal da terra, sendo a transformação revolucionária do segundo questão chave para a consolidação da “Democracia Rural Brasileira”. Como ativista político, não era tão público como José do Patrocínio e Joaquim Nabuco, por exemplo; se responsabilizava pela organização nos bastidores das manifestações públicas, administrando as finanças e ajudando a fundar organizações políticas como a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, Sociedade Abolicionista, Sociedade Central de Imigração e a Associação Central Emancipadora.

Rebouças deve ser enxergado dentro da tendência histórica que assumia, para que então possamos fazer uma correta avaliação acerca do seu legado[iii] . Considerando a primazia da luta pela produção, da luta de classes e da experimentação científica, podemos compreender com mais precisão tais figuras históricas e avaliar, iluminados pelas candentes necessidades do nosso momento, a profundidade de suas proposições e o valor das ideias progressistas de sua época em relação com a experiência concreta da História.

Panfleto da Confederação Abolicionista pedindo por “abolição= imediata e sem indenização”, com assinatura de Rebouças[iv]

Rebouças e a “Democracia Rural Brasileira”

Quando eu morrer, dirão: foi o maior inimigo dos fazendeiros – epitáfio que me agrada muito pela novidade porque nunca ninguém o teve no Brasil e, por hora, ainda ninguém quer ter. Mas a herança aí fica e verá que aparecerão logo muitos apóstolos para a Democracia Rural Brasileira. Quanto a mim, desejo apresentar-me ao juiz supremo, dizendo: “trabalhei o quanto pude para extirpar do mundo o monopólio da terra e a escravização dos homens”. (André Rebouças. Extraído de seu diário (1863-1890), contido em Catálogo de correspondências. 1873-1898. 9 v. (manuscritos originais)


Rebouças compreendia a abolição do monopólio feudal da terra como critério fundamental para eliminar a miséria aguda do povo, assim como base elementar para o desenvolvimento de forças produtivas capazes de gerar relações de produção que de fato correspondessem aos “homens livres” pós-abolição. Assim, foi capaz de dar um conteúdo mais profundo para o próprio abolicionismo, ao não assentá-lo somente na condição jurídico-formal do trabalho escravo, mas estendê-lo a uma crítica do sistema de propriedade latifundista que geraria, inevitavelmente, a conservação de relações de trabalho atrasadas e opressoras. Nesse sentido, surge sua célebre frase: “Quem possui a terra, possui o homem”.

“A escravidão não está no nome, mas sim no fato de usufruir do trabalho de miseráveis
sem pagar salário ou pagando apenas o mínimo para não morrer de fome. Aviltar e
minimizar o salário é reescravizar. Mesmo nos países que se impõem altamente civilizados,
a plutocracia faz todo o possível para reduzir o salário ao mínimo absoluto; a
landocracia[v], principalmente, é reescravizadora por atavismo: não compreende a
agricultura sem escravo ou sem servo da gleba…”
(Retirado do artigo “André Rebouças: Um abolicionista”, contido em Anais Biblioteca Nacional Vol.116)

De quê adiantaria dar aos negros a libertação no papel e ainda permanecer o monopólio feudal da terra? A quem serviriam novamente os “ex-escravos”, senão aos mesmos latifundiários, e sob quais condições de trabalho? Não somente as relações de produção permaneceram fundamentalmente similares ao período pré-abolição, como as condições de produção nacional seguiram vilipendiadas e centralizadas para a agro- exportação – que muda “radicalmente” do açúcar para o café. O quadro do trabalho livre seria constituído a partir da vinda de estrangeiros, não com a incorporação da mão de obra livre ex-escrava, condenada às mais vis e degradantes condições de existência.

Rebouças foi um ponto fora da curva num momento em que quase todas as forças do Império
empurravam o movimento abolicionista para o projeto de “abolicionismo gradual”. Este gradualismo, concebido e propalado pelos senhores de terra escravagistas, era uma tentativa aberta de evitar que as massas transformassem a pauta abolicionista em um processo de ruptura com toda a ordem social vigente, como foi no Haiti ou nos Estados Unidos.

“Foi a Abolição a primeira emoção que o Brasil deu ao mundo (…) Agora nós vamos fazer
despontar na Nacionalidade Brasileira um outro remorso. O remorso do latifúndio; – o
remorso do monopólio territorial – o remorso de deixar milhões e milhões de Brasileiros
sem uma nesga de terra para nele fincar os postes de uma choupana, – o remorso de trancar
o mais belo continente, que Deus há criado, às mais nobres e ativas raças do Velho
Mundo.”

(Retirado do artigo “Pela palavra e pela imprensa: André Rebouças e propostas sociais para o Brasil do final do XIX”)

Para Rebouças, a forma de trabalho escravo e servil é adequada ao conteúdo econômico do latifúndio, e
enquanto este não for destruído completamente, as relações de produção permanecerão intactas. Daí sua defesa do que chamou de Democracia Rural Brasileira: a liquidação do latifúndio na pequena propriedade, assumida por negros livres e imigrantes enquanto forças produtivas, para que desenvolvessem novos tipos cooperativos de relações de produção e de sociedade. Para tanto, “só há liberdade na democracia rural, no lavrador-proprietário, no operário da terra absolutamente livre ou independente, recebendo seu salário diretamente de Deus (…)”[vi].

Sua posição corresponde diretamente à defesa da Revolução Democrática, forma que assumiu a tomada de poder da burguesia na Europa e nos EUA, arrasando as relações feudais e possibilitando o florescimento de sua concepção de mundo e de trabalho, como classe revolucionária daquele período histórico.

Todavia, nas colônias e semicolônias, a nascente burguesia imperialista desenvolveu um outro processo, aprofundando as relações de produção semifeudais como subjacentes ao capitalismo burocrático. O lugar pertencente ao Brasil na economia mundial, seja antes do período em que Rebouças viveu ou depois dele, não deixou de assentar-se na mera exportação de matéria-prima: ainda hoje o latifundiário “moderno”, dono territorial de parte significativa do país, segue sendo protagonista de nossa dinâmica política e expressão maior da subjugação econômica nacional. A economia camponesa, por sua vez, mantém-se sufocada por relações de trabalho arcaicas, sem viver nos fatos cotidianos qualquer espécie de democracia. Toda sorte de falácias do economiquês que negue ou oculte esse aspecto da formação histórico-econômica do Brasil, está fadado à desaparição teórica, quer mais ou menos tempo.

Rebouças entendia como poucos em sua época que era o latifúndio o “ponto nevrálgico” de interligação entre a miséria do povo, livre e escravo, com o atraso econômico da nação. Talvez, por isso, seja menos lembrado em comparação com outros abolicionistas que, apesar de sua importância histórica, não se embrenharam teoricamente na centralidade do problema agrário como o real atraso ou entrave no desenvolvimento do país.

À exemplo de Joaquim Nabuco, muito mais aclamado pela historiografia “oficial”, tinha, no cerne de sua posição abolicionista, uma ideologia de fundo idealista, antirruptura, pacifista, e, além, que se prismava na conscientização moral do povo brasileiro sobre os “males da escravidão” como forma principal de enfrentar esse problema.

No final das contas, a posição de André manteve-se fincada na materialidade do chão da terra e somos capazes hoje de entender a profusão dos suplícios de sua firmeza e lucidez teóricas.

O triste fim de André Rebouças

A nossa república ideal, virá no devido tempo; quando não houver mais landlords, quando tiverem desaparecido os monopolizadores da terra, quando for impossível a impunidade feudal.” (Retirado do artigo “André Rebouças: Um abolicionista”, contido em Anais Biblioteca Nacional Vol.116)

Rebouças toma posição pela monarquia, ao menos como etapa necessária, compreendendo que esta seria a única capaz de executar tais transformações de maneira centralizada no país e manter sua unidade nacional, como aconteceu na Europa sob a égide do “despotismo esclarecido” ou da monarquia
constitucional.

Este aspecto de seu pensamento acaba induzindo a análise de alguns historiadores a negligenciar o conteúdo de suas posições como uma unidade, que é o objetivo primevo de nosso artigo. Rebouças combateu com tudo o que tinha à sua disposição como intelectual burguês, a maior chaga e vilipêndio que recai até os dias atuais sobre a imensa maioria das massas brasileiras, direta ou indiretamente: o latifúndio. Em sua construção teórica, relevância social e espírito político, podemos considerá-lo mais radical do que muitos Republicanos à época.

Seu projeto teórico-político não vingou: a abolição veio, mas sob as condições que ele antevira e criticava, expressas na ala do movimento abolicionista que reivindicava a abolição da escravatura sem demandar a mudança radical na estrutura de concentração fundiária. Frustrando-se a realização de suas ideias e sua assídua dedicação em torno de sua causa, tornou-se ressentido e afetado de sua saúde mental, isolando-se, ao fim da vida, na cidade de Funchal, na Ilha da Madeira.

A título de comparação, sua morte equivale à de Policarpo Quaresma no livro de Lima Barreto: ambos amavam o que o Brasil poderia ser, caindo em depressão ao não achar caminhos por onde concretizar o potencial democrático de seu povo. Ao ser encontrado morto, assim foi remontada a sua morte no jornal “Correio do Funchal” na Segunda-feira, 9 de maio de 1898:

“Esta manhã foi encontrado morto no mar, junto ao “New Hotel-Bed”, o cadáver do
subdito brazileiro (sic), nosso hóspede desde há anos, dr. André Rebouças. Este cavalheiro
que exerceu nos tempos do Império um elevado cargo público, apresentava desde há
tempos signais (sic) de transtorno intelectual e suppõe-se (sic) que elle (sic) próprio se
tenha atirado no mar. O infeliz recebera hontém (sic) cartas do Brazil (sic) e, desde então
mostrava-se sobremaneira preocupado. Lamentamos esta desgraça e que a alma do infeliz
descanse em paz.”

Dois séculos depois de seu falecimento, a contradição entre latifundiários e camponeses pobres, quilombolas e indígenas se agudiza, sem resolução reformista à vista. Essa mácula nos leva a tomar em alto reconhecimento figuras de tamanha envergadura como Rebouças, como um dos nossos compatriotas predecessores “(…) na campanha contra o latifúndio e na propaganda para a subdivisão da terra, para a pequena propriedade e para a Democracia Rural[vii]” em nossa contínua luta pelo fim do latifúndio.


Notas:

[i] Quatro Séculos de Latifúndio. GUIMARÃES, Alberto Passos. 1964, p. 36.
[ii] A exemplo do seu ambicioso “Plano Rebouças”, de 1874: um projeto ferroviário para o Brasil, inspirado pelo norte-americano, que visava o desenvolvimento e integração da nação como um todo e dependia, necessariamente, da retirada das terras do latifúndio para que se efetivasse.
[iii] Em período recente, a figura de Rebouças tem sido disputada por ideólogos de direita “liberal” formados em think-tanks reacionários – que castram o conteúdo e atualidade de sua perspectiva e posicionamento histórico, para vendê-lo como exemplo de “meritocracia”, o que provaria a falsidade do “racismo estrutural”, apregoado por uma “esquerda” fantasmagórica. Contra esta mistificação, típica da decadência ideológica e perda de perspectiva histórica das classes dominantes, afirmamos que Rebouças representou exatamente os melhores interesses democrático-burgueses e nacionais de sua época, como um dedicado liberal que não presenciou ou viveu uma vanguarda política que pudesse levá los a cabo.
[iv] Retirado do artigo “André Rebouças: Um abolicionista”, contido em Anais Biblioteca Nacional Vol.116, p. 37.
[v] Landocracia é um termo apropriado do inglês que Rebouças utilizou para falar sobre o regime de latifúndio, de uma “aristocracia rural”.
[vi] Retirado do artigo “André Rebouças: Um abolicionista”, contido em Anais Biblioteca Nacional Vol.116, p. 37.
[vii] Quatro Séculos de Latifúndio. GUIMARÃES, Alberto Passos. 1964, p. 37.