Escrevivências

Publicação divulga cartas entre escritora Isabela Camini e crianças Sem Terrinha

Correspondência mostra espaço de relação em que educação é construída e o esperançar estabelecido através da afetividade
Clarisse Teles, do Setor de Educação do MST no RS, e a organizadora Isabela Camini, organizadora do livro – Divulgação

Por Marcos Antonio Corbari
Do Brasil de Fato

É um pequeno livro. Pouco mais de 50 páginas. De leitura rápida. Mas é ao mesmo tempo grande. Um grande livro pelo tanto que representa. Mostra como uma educadora pode provocar seus educandos e educandas a florescer para o mundo, efetivando a educação impregnada pelo esperançar, bem do jeitinho que ensinou Paulo Freire. Dá para dizer mais, a educação impregnada pelo afeto, semente das verdadeiras revoluções.

Com certeza a educadora Elaine Busch – do 4º ano na Escola 29 de Outubro, no assentamento 16 de Março, território da antiga Fazenda Annoni, transformado pela Reforma Agrária, no município de Pontão (RS) – não imaginaria que ao instigar o grupo de crianças a escrever cartas para a educadora e escritora Isabela Camini, veria a experiência tornar-se objeto de um livro. Esses educadores e educadoras do Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST) têm essa mania de olhar para seus Sem Terrinhas e esticar-lhes as asas.

O trabalho com Cartas Pedagógicas não é novidade dentro da pedagogia dos e das Sem Terra. Nem para qualquer alguém que tenha Freire como guia. A novidade que o livro “Cartas de afeto e aprendizagens: uma relação entre educandos e educadora”, publicado pela editora Saluz, traz, é justamente o protagonismo das crianças. Suas palavras, suas histórias, suas raízes, seus sonhos são a pauta da conversa postal e provocam em Camini reflexões que vão além das respostas enviadas neste diálogo que se desenrolou via serviço postal entre maio e dezembro de 2023.

Não espere o leitor que este livro seja um tratado de ciência da educação. Não vem com um mosaico de recortes teóricos, nem com as costumeiras palavras difíceis ou citações de sobrenomes repletos de consoantes. O referencial teórico está na relação, o método é o afeto, a práxis é a história que antes de ser contada precisa ser escrita com o cotidiano daqueles e daquelas que são legítimos frutos de uma luta.

O instrumento de construção – a correspondência trocada entre Camini e o grupo do 4º ano – são cartas pedagógicas como devem ser de fato: repletas de verdades subjetivas, interpretações de mundo, leituras sobre um cotidiano que é transformador por natureza, tanto para quem aprende quanto para quem ensina (e é preciso citar, neste processo todas e todos deixam claro que muitas vezes quem tem o título de “educador/a” é que acaba aprendendo com quem está na condição de “educando”).

Livro estará disponível para interessados logo após o lançamento, a ser realizado com a presença dos educandos. Foto: Corbari

Este é um livro urgente, escrito com a pressa de quem vive o cotidiano de tempos que devoram as subjetividades das pessoas. Precisava chegar logo às mãos destes educandos e educandas, enquanto ainda encontram-se em meio ao processo de formação, tendo ciência de que seus escritos mesmo que singelos são extraordinários e por isso transformadores da realidade.

Para avalizar essa resenha, busco alguns recortes dos intertextos que vem em anexo ao livro:

“Escrever cartas é manter vivo em nós o aspecto mais necessário na atualidade: sermos humanos”, aponta Munir Lauer.

“O testemunho das trocas cultivadas nesta obra se insere no conjunto maior de esperanças na humanidade, de luta pela refundação da sociedade em bases sociais e ecológicas mais harmônicas”, afirma Roger Elias.

“Esse processo de troca é, em sua essência, a literatura na prática, como ferramenta de transformação de consciência do ser humano”, alinha Clarisse Teles.

“Nesse mundo de hoje, em que as relações são líquidas e superficiais, a carta é um acalanto, pelo fato de realmente trazer consigo a necessidade de pensar”, explica Elaine Busch.

“A cultura do saber ler e escrever o mundo, como já ensinou Paulo Freire, se concretiza nesse fazer pedagógico”, contextualiza Márcia Ramos.

“Essas crianças vivem suas infâncias com alegria, espontaneidade e plena liberdade. São crianças que podem viver suas infâncias com plena certeza de que sua palavra é ouvida, com respeito e dignidade”, conclui Isabela Camini.

E na resenha não será citado nenhum texto de algum dos alunos?

Enquanto redigia este texto debati com a pedagoga e dirigente do Setor de Educação do MST, Clarisse Teles, a respeito de uma delas, quiçá a mais singela, porém a que mais me instigou. O aluno Nicolas, inserido dentro do espectro autista, em sua carta afirmou: “Gosto da escola, dos colegas. De andar de bicicleta” e questionou: “E você?” Essa, entre todas, foi minha carta preferida. Lindamente simples e direta. Sem muita explicação nem justificativa. Bem como deve ser o “gostar”. A gente gosta e ponto. E você gosta do quê? Temos nos preocupado tanto com tantos “porquês” que acabamos deixando de lado o que realmente importa, que são os “oquês”.

O que eu achei do livro? Não fico cômodo na tarefa de “avaliador”. Convido a que o leiam, assim como fiz, com pensamento livre e coração aberto. Porque não devemos avaliar afetos. Leiam o novo livro de Isabela Camini. De Elaine Bush. De Clarisse Teles. De Munir Lauer, Roger Elias e Márcia Ramos. Mas sobretudo, leiam o primeiro livro de Nicolly, Bernardo, Valentina, Graziela, Luiza, Eduardo, Rafaela, Willian, Valentina e Nicolas.

O lançamento será realizado no próximo dia 14 de maio, na escola, com a presença dos pequenos autores e autoras, da organizadora, da educadora que provocou a escrita e demais que contribuíram com entrelinhas e intertextos.

Edição: Katia Marko/ BdF