História

Um olhar sobre a FMLN em seu 44º aniversário

Celebramos sua história de luta, vitórias e desafios, desde a guerrilha que enfrentou a ditadura militar salvadorenha até sua atuação como partido político

Combatentes da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN), de El Salvador; movimento completa 40 anos em 2020
Combatentes da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN), de El Salvador, na América Central; movimento completa 40 anos em 2020 . Foto: Reprodução

Da Página do MST

Neste dia 10 de outubro de 2024, comemora-se o 44º aniversário de um marco histórico para as lutas populares latino-americanas, a fundação da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), marcando uma síntese da luta do povo salvadorenho; as Fuerzas Populares de Liberación “Farabundo Martí” (FPL), o Partido Comunista de El Salvador (PCS), a Resistencia Nacional (RN), o Ejército Revolucionario del Pueblo (ERP) e o Partido Revolucionario de los Trabajadores Centroamericanos (PRTC), foram as organizações fundadoras dessa força guerrilheira e, juntamente com a Frente Democrática Revolucionária (FMLN-FDR), alcançaram o sistema de alianças mais bem-sucedido de todas as forças sociais e políticas existentes em El Salvador na década de 1970, de tal forma que é difícil mencionar outra experiência com igual nível no mundo.

A formação dessa frente também demonstrou o grau de maturidade de cada uma das organizações, que conseguiram minimizar as diferenças, os conflitos e o sectarismo; a tão sonhada unidade de ação foi possível ao se deparar com uma situação revolucionária e aprender com a experiência unificada da revolução sandinista.

Empreendendo doze anos de guerra popular, pela primeira vez, as vítimas da ditadura pegaram em armas para lutar por suas vidas, liberdade e justiça social; a luta armada era a única alternativa porque a elite salvadorenha havia afogado em sangue todas as tentativas de reforma pela via eleitoral. Desde o início do conflito armado, foi uma luta totalmente desigual: a guerrilha, formada por estudantes universitários e do ensino médio, alguns intelectuais, trabalhadores, mas, acima de tudo, camponeses, enfrentou o exército salvadorenho (treinado, armado e financiado pelo governo dos EUA). No entanto, os guerrilheiros realizaram feitos militares de enorme valor, por exemplo, a destruição total da supostamente imbatível Quarta Brigada de Infantaria “El Paraíso” no norte do país, projetada pelo exército dos EUA. Não é exagero dizer que o triunfo da revolução foi possível nos primeiros quatro anos da guerra; foram os estadunidenses que a impediram com sua avalanche de armas, aeronaves, comunicações, logística e dinheiro (1 milhão por dia) para incrementar o sitiado exército salvadorenho.

A FMLN, embora fosse uma frente política militar, não era militarista. Desde o início, propôs uma alternativa de diálogo com o governo para encontrar uma saída para a ditadura, mas essas propostas só foram levadas a sério após a grande “Ofensiva até o topo e pronto”, em 1989, na qual praticamente toda a capital foi tomada e, pela primeira vez, os combates ocorreram nas áreas mais exclusivas e ricas de El Salvador. Além dessa demonstração de força, fatores externos tiveram um impacto profundo no financiamento da guerra pelos EUA: a implosão da União Soviética e de todo o bloco socialista.
A década de luta popular, heroísmo e sacrifício levou a uma espécie de impasse histórico. A FMLN conseguiu forçar o governo a assinar um histórico Acordo de Paz que pôs fim a uma ditadura militar que governou o país por 60 anos, iniciou um processo de democratização que permitiu que a FMLN se tornasse um partido político, fundou um Supremo Tribunal Eleitoral independente do poder executivo, criou o Escritório do Ombudsman de Direitos Humanos e criou a Polícia Civil Nacional que substituiu o exército, entre outras grandes conquistas políticas. Entretanto, a oligarquia conseguiu manter a estrutura econômica praticamente inalterada e manteve o controle institucional para aplicar as receitas neoliberais recomendadas pelo Fundo Monetário Internacional.

Os combatentes e colaboradores da FMLN enfrentaram o gigantesco desafio de passar da luta política armada para a luta política eleitoral. Essa mudança foi traumática para muitos deles, não apenas por causa da incerteza sobre o cumprimento dos Acordos de Paz em termos do respeito a seus direitos políticos ou até mesmo a suas vidas, mas também porque muitos enfrentaram uma reintegração extremamente difícil em suas famílias e locais de trabalho. Tudo isso em meio a uma ofensiva ideológica brutal contra a ideologia socialista e a materialização do “acompanhamento” dos partidos social-democratas europeus que buscavam “modernizar” a nascente esquerda eleitoral salvadorenha. Desde 10 de outubro de 1980, quando a FMLN foi fundada, ela tinha um Comando Geral composto por cinco comandantes (um para cada organização). Durante 10 anos de guerra, o inimigo não conseguiu dar baixa em um único comandante; foi somente após os Acordos de Paz que aconteceram as baixas ideológicas de três desses comandantes gerais.

A partir de sua primeira participação eleitoral, o partido de esquerda (o único em todo o país) tornou-se a segunda força política eleitoral, sendo a alternativa aos governos neoliberais e acompanhando batalhas sociais enérgicas em resistência à onda de privatizações. A FMLN também era uma força social; seus militantes também eram líderes sociais, sindicalistas, agricultores, professores etc. Embora tenha sofrido divisões, rupturas e conflitos ideológicos durante esse período, conseguiu acumular apoio eleitoral em cada nova eleição. Para a eleição presidencial de 2004, a FMLN apostou em um de seus ex-comandantes gerais, seu líder histórico Sháfik Hándal, um comunista que seria objeto da maior campanha de medo da direita e com a intervenção direta do governo dos EUA. E ainda que a oligarquia esperasse voltar a ganhar essa eleição o FMLN obteve a maior quantidade de votos em toda sua história.

Após a morte de Scháfik Hándal (24/01/2006), a liderança do partido optou por um aliado progressista para disputar a eleição presidencial de 2009. O renomado jornalista Mauricio Funes somou sua popularidade ao crescente apoio eleitoral da FMLN e tornou-se presidente da república. A FMLN havia finalmente chegado ao poder, ou assim se acreditava, porque na realidade ela só havia chegado ao poder no poder executivo.

Quando Funes assumiu o cargo, ele se distanciou do partido com o qual havia vencido, optando por parecer independente e até mesmo proibindo a participação dos líderes do FMLN que eram ministros nos eventos públicos do FMLN. A vontade, o estilo e a ética do aliado se impuseram gradualmente ao governo. No entanto, esse governo progressista gerou resultados positivos por meio de programas sociais que atenuaram a brutalidade das políticas neoliberais que haviam assolado a sociedade salvadorenha. O crescimento econômico era praticamente o mesmo dos governos anteriores, e o maior flagelo sofrido pela população era a insegurança pública, com as “maras ou gangues” (crime organizado) gerando uma situação sufocante que o governo não soube como enfrentar. As enormes expectativas de mudança foram frustradas nesse primeiro governo, mas o povo salvadorenho deu o benefício da dúvida sobre o que poderia ser feito e ainda respaldou um segundo triunfo presidencial em 2014.

Salvador Sánchez Céren, o último comandante geral da FMLN, tornou-se presidente da república e, embora não tivesse gerado a simpatia de Funes e tivesse vencido por uma pequena margem de votos, depositou-se nele a esperança de que a mudança se aprofundaria. Entretanto, seu governo foi semelhante ao anterior, os programas sociais continuaram e a mesma dinâmica econômica e social foi mantida, embora tenha havido um ataque mais frontal às “maras ou gangues”, mas a opressão exercida pelo crime organizado não foi reduzida. Esse período também foi caracterizado pela sabotagem sistemática dos projetos do governo pela Câmara Constitucional; o judiciário foi o instrumento do imperialismo e da oligarquia para desgastar o governo de esquerda. Isso, junto com a falta de capacidade de comunicação do presidente e a pouca capacidade do governo, levou a uma avaliação muito ruim da administração da FMLN no governo.

Houve o assédio esperado, mas também o desperdício da oportunidade histórica de aprofundar as mudanças e construir uma participação real e popular de baixo para cima, junto com o povo, para construir uma democracia participativa direta paralela ao governo nacional.

O desgaste do governo, o envolvimento de alguns de seus membros em casos de suposta corrupção, a alienação do povo, o enfraquecimento da ideologia e da mística dos militantes em cargos públicos, entre muitos outros fatores, somaram-se à má administração dos conflitos com outro de seus aliados, que o partido havia levado a se tornar prefeito da capital: Nayib Bukele. Bukele explorou habilmente todos os fatores que haviam enfraquecido a FMLN. Além disso, ao expulsá-lo, a FMLN deixou as portas abertas para o publicitário forjar uma imagem de si mesmo como vítima da velha política, retratando-se como alguém de fora e gerando muita simpatia, especialmente entre os eleitores decepcionados da FMLN. Como presidente a partir de 2019, ele negaria toda a história das lutas do povo salvadorenho, chamando os Acordos de Paz de uma farsa e, assim, negando a ditadura militar oligárquica. Com todo o seu impressionante aparato de propaganda, ele conseguiu aumentar a erosão da FMLN e, com o controle absoluto do judiciário, conseguiu transformar o partido de esquerda em sinônimo de corrupção, a judicialização da política se tornou natural em El Salvador.

O FMLN passou por vários estágios de desenvolvimento, desde sua formação a partir de movimentos sociais revolucionários na década de 1970, passando por um eficiente exército guerrilheiro na década de 1980, forçando a ditadura militar oligárquica a negociar os acordos de paz em 1992, tornando-se um partido político de 1994 até hoje e chegando ao governo em duas ocasiões. Entretanto, a FMLN, após uma longa história de luta, vitórias e derrotas, encontra-se em uma situação crítica, na qual perdeu muita força social e política. No entanto, nas últimas eleições gerais, o partido travou uma batalha corajosa contra a ultradireita liderada por Bukele, enfrentando uma máquina mais consolidada, não apenas em termos de comunicação, mas também em termos de manipulação eleitoral, que levou às eleições mais fraudulentas desde os Acordos de Paz, e a fraude passou praticamente despercebida em nível internacional. Essa manipulação deixou o partido de esquerda sem representação legislativa pela primeira vez.

A ultradireita aplica naturalmente as políticas neoliberais que levam à concentração do capital e da riqueza da nação nas mãos de poucos, aumentando a desigualdade e a exclusão, o que está gerando em El Salvador o surgimento de vozes de resistência, que aos poucos começam a se mobilizar e que a militância da FMLN está acompanhando.

A FMLN e os setores organizados têm o enorme desafio de se voltarem para as comunidades e organizações sociais para se redimirem com a história e enfrentarem conjuntamente os abusos do atual regime ultra-neoliberal e fortalecerem um projeto de país capaz de conquistar o coração das grandes maiorias, e isso não será possível se não for acompanhado de uma concepção que busque uma democracia participativa a partir da base. A FMLN deve fazer uma avaliação profunda de sua administração governamental e de como os valores do sistema influenciaram sua concepção e prática. Eles têm uma valiosa história de luta da qual podem tirar lições e aprendizados.

Secretaria Nacional de Educação Política e Ideológica FMLN


*Tradução: Natalie Illanes Nogueira
Revisão: Monique Brasil