Mulheres Sem Terra

Solidariedade germina entre mulheres Sem Terra do Sul, em Jornada de enfrentamento à crise ambiental

Camponesas de acampamentos e assentamentos do MST do PR e RS se reuniram em uma das comunidades mais afetadas pela catástrofe de maio, em Eldorado do Sul (RS)
Encerramento do encontro reafirmou o compromisso e solidariedade das mulheres do MST com o povo palestino. Foto: Rafa Dotti / Brasil de Fato-RS

Por Ednubia Ghisi, do Setor de Comunicação e Cultura do MST-PR
Da Página do MST

Cinco meses após a maior enchente da história do Rio Grande do Sul, a paisagem no assentamento Integração Gaúcha (IRGA), em Eldorado do Sul (RS), combina as marcas da devastação causada pela água e pela lama, com os diferentes tons de verde das plantas que crescem vigorosas nas hortas agroecológicas.

Nessa terra, depois da enchente, a gente não via uma minhoca. Agora já está aí, cheia de vida. Está uma lindeza”, conta emocionada a camponesa Marinês Riva, ao mostrar seus canteiros cobertos por beterrabas, repolhos, alface e uma diversidade de verduras e legumes. 

Marinês foi uma das assentadas a receber o mutirão de trabalho voluntário em sua horta, realizado durante a Jornada de Mulheres Sem Terra: cultivando a solidariedade no enfrentamento à crise ambiental, que ocorreu entre os dias 8 e 9 de outubro, em Eldorado do Sul. Cerca de 100 mulheres do MST se reuniram nesses dias, entre elas 40 acampadas e assentadas do Paraná.

Cerca de 100 mulheres Sem Terra participaram do encontro, ao longo de dois dias. Letícia Stasiak/MST-RS

Marcado pelos relatos da dor e de reconstrução coletiva das comunidades atingidas pela catástrofe, a ação simbolizou a retomada das brigadas de solidariedade com as próprias famílias do MST e a população urbana, como explicou Silvia Reis Marques, militante do Setor de Gênero do MST-RS: “As mulheres trazem em si essa gana pela vida, pelo cuidado da natureza, pelo cuidado com a produção agroecológica […]. Neste lindo encontro, estamos reafirmando nosso compromisso com a luta, com a Reforma Agrária Popular, com a produção de alimentos saudáveis e com o cuidado com a vida das pessoas”. 

Silvia Reis Marques, da direção do Setor de Mulheres do MST-PR. Foto: Rafa Dotti

Preparado desde junho deste ano, o encontro buscou fortalecer as companheiras atingidas pelas enchentes. “Num momento de crise, as mulheres sofrem de forma mais intensiva os efeitos dessas catástrofes ambientais, de forma desoladora”, relatou Miriam Kunrath, dirigente do Coletivo de Mulheres do Paraná. “Poder estar no lugar, visualizar até onde a água chegou, os efeitos devastadores, e tendo a possibilidade de contribuir nessa reconstrução, foi muito valoroso”. 

Miriam Kunrath, dirigente do Coletivo de Mulheres do MST-PR. Foto: Ednubia Ghisi

Além do trabalho voluntário nas hortas agroecológicas e nos espaços coletivos da comunidade, a programação da Jornada proporcionou momentos de cuidados de saúde, relatos das dores e das formas de resistência coletiva e formações sobre as causas da catástrofe. Mais de 400 kits preparados pela militância do MST-PR, especialmente para as mulheres Sem Terra do Rio Grande do Sul, foram entregues ao longo dos dois dias. Eles traziam artesanatos, produtos de higiene e beleza, além de cartas com mensagens de apoio e afeto.  

Mulheres do Setor de Saúde do MST dos dois estados ofereceram terapias naturais para as participantes da Jornada. Fotos: Ednubia Ghisi/MST-PR 

“Esses kits passaram a ter outro significado. Eles se transformaram em uma grande ação das mulheres do Paraná. Nós fomos para as bases e começou aquela alegria de poder contribuir de alguma forma. Hoje estamos aqui com 45 companheiras, mas aqui está o MST Paraná todo, representado nessas ações que as companheiras fizeram, e que teve participação de toda família”, disse Sandra Ferrer, da direção do MST do Paraná, ao apresentar os presentes ao público participante do encontro. 

As companheiras do Rio Grande do Sul também presentearem as visitantes do Paraná com um kit carregado de significado: um vidro de doce e um pacote de arroz orgânico, produzidos pelas famílias Sem Terra do estado e beneficiados pela cooperativa Cootap, uma boneca artesanal abayomi e uma raiz de açafrão, dois símbolos da resistência feminina cultivados pelas mulheres do MST no estado. 

Para além dos presentes, preparados e embalados com zelo, um a um, a ternura e cumplicidade ganharam vida por meio da escuta, das lágrimas e da partilha de afeto. “Ouvindo todos esses relatos aqui hoje, nós nos sentimos muito mais parte dessa família MST”, descreveu Sandra. 

Na caminhada pela pequena estrada entre os canteiros, Marinês Riva explicou ao grupo de voluntárias que trabalhavam na sua horta porque havia tantas flores colorindo a roça. “As flores dão mais cores e sabores pras hortaliças”, contou, apresentando seus saberes da agricultura biodinâmica, colocada em prática há mais de 30 anos. Ao final do curto trecho de caminhada e conversa, cada companheira tinha recebido de Marinês mudas e sementes de cada flor e folhagem que ainda não tinha em casa. 

Marinês ao lado de companheiras do MST-PR. Foto: Ednubia Ghisi

“Sou muito feliz e muito agradecida porque, com tudo isso que aconteceu, a gente recebeu tanta ajuda, tanto amor, tanta solidariedade, que hoje vocês estão aqui. E isso me emociona muito, porque a gente sabe que não está sozinha”, completou a camponesa.  

Território de produção agroecológica arrasado pelas enchentes 

O município de Eldorado do Sul está localizado na região metropolitana de Porto Alegre, onde estão concentradas 38 comunidades da Reforma Agrária, responsáveis pela maior produção de arroz orgânico da América Latina e por uma expressiva produção de alimentos agroecológicos. 

Essas terras com vasta produção de alimentos estão também entre as mais atingidas pela catástrofe ambiental ocorrida em maio. A enchente do rio Jacuí deixou debaixo d’água milhares de sacas de arroz, a produção leiteira e de hortifrutis, casas e estruturas coletivas como escolas, padarias e cooperativas. 

O trabalho de limpeza e remoção dos entulhos continua. Fotos: Thaile Lopes/MST-PR

“Aqui ficou com quase dois metros de água, só andava de barco. Ficou 18 dias cheio de água. Da nossa plantação não sobrou nada”, contou Geni Mulinari, produtora agroecológica, no meio dos canteiros movimentados pelo mutirão das companheiras do Paraná. “Essa é nossa primeira plantação depois da enchente. A nossa única fonte de renda era o arroz orgânico, agora a família se inscreveu no PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] para garantir uma nova fonte de renda”, explicou.  

Trabalho voluntário realizado pelas mulheres Sem Terra do PR marcaram retomada da produção na horta de Geni. Foto: Ednubia Ghisi/MST-PR

Os rios e afluentes que abastecem Porto Alegre e toda a região metropolitana passam pela região, conforme explica Gabriela Souza, assentada no município de Nova Santa Rita e da direção do MST-RS: “São esses rios e essas águas que nós viemos, há anos, levantando as bandeiras para proteger. Esse território, do delta do rio Jacuí, livre de pulverização aérea, tem sido a nossa utopia”, conta a militante, moradora de uma das comunidades prejudicadas pelas pulverizações aéreas de agrotóxicos na região. 

“A luta contra o desequilíbrio ambiental, contra a mineração, contra a pulverização criminosa não é de hoje, e muitas das famílias fizeram parte dessa voz coletiva de denúncia”, completa, referindo-se especialmente à luta de trabalhadores do campo e da cidade, ambientalistas e os povos indígenas, contra a implementação do projeto Mina Guaíba, da mineradora Copelmi. O projeto previa a instalação de uma mina de carvão a céu aberto entre as cidades de Eldorado do Sul e Charqueadas, e está suspenso por decisão judicial, após inúmeras mobilizações populares. 

Foto: Leandro Ribeiro/MST-PR 

As consequências da tragédia foram agravadas pelo desmonte da legislação ambiental durante a gestão de Eduardo Leite à frente do governo do estado, com a exclusão ou modificação de quase 500 normas ambientais. “Passar a boiada não chega perto, é destruição ambiental do estado. O capital vai desmatando pra colocar mais soja, gado, monocultura”, afirma Salete Carollo, da direção nacional do MST pelo estado. 

Cozinhas comunitárias: organização popular que virou política pública

Um dos espaços de trabalho voluntário durante a Jornada das Mulheres foi a cozinha comunitária do assentamento, criada em 29 de maio, quando as águas que cobriram a comunidade por quase 20 dias começaram a baixar. O contexto era desolador. As famílias começavam a voltar para casa aos poucos, encontrando a destruição deixada pela catástrofe. 

Entre o grupo de voluntárias na produção das marmitas durante a Jornada estava Adriana Oliveira, dirigente do MST Paraná que fez parte do grupo que criou a cozinha. Ela coordenou a primeira brigada de solidariedade organizada pelo MST do Paraná que chegou no Rio Grande no dia 26 de maio, menos de um mês após o início das chuvas que tomaram o estado. Foram 45 militantes de diversos acampamentos e assentamentos, e também do coletivo Marmitas da Terra, que atua em ações de solidariedade em Curitiba e região, desde a pandemia da Covid-19. Além da organização da cozinha, a militância se juntou aos trabalhos de limpeza e reconstrução das casas e dos espaços coletivos de assentamentos em Eldorado do Sul e Nova Santa Rita. 

A cozinha de Eldorado do Sul está localizada na sede da cooperativa Cootap, e atualmente entrega 500 marmitas por dia. Fotos: Leandro Ribeiro / MST-PR 

Adriana Oliveira, dirigente do MST Paraná, que fez parte do grupo que criou a cozinha comunitária de Eldorado do Sul, menos de um mês depois do início da enchente. Foto: Ednubia Ghisi/MST-PR

Depois de quase cinco meses desde a primeira vez que esteve em Eldorado, ela enfatiza o processo coletivo enraizado no local: “Esse retorno pra mim, pessoalmente, é também um acalento, porque quando a gente chegou aqui era aquele emergencial, aquela loucura das famílias voltando, daquele processo de limpar as casas, enterrar os bichos, das pessoas não terem água, não terem comida. Agora a gente volta, a horta está brotando, a comida voltando, as pessoas se organizando”, relata a dirigente, que faz parte da coordenação do coletivo Marmitas da Terra e também do Mãos Solidárias, que tem atuação nacional. 

As cozinhas comunitárias são exemplo da organização popular formada já nos primeiros dias da catástrofe, para suprir uma necessidade urgente de alimentação naquele contexto. A primeira entrou em funcionamento já nos primeiros dias da enchente, em 7 de maio, no assentamento Filhos de Sepé, em Viamão, grande Porto Alegre. O trabalho voluntário de dezenas de militantes do MST garantiu a preparação e distribuição de até 2 mil marmitas por dia, distribuídas de barco e helicóptero a pessoas ilhadas ou abrigadas. 

O trabalho voluntário também aconteceu na escola do campo da comunidade, uma das primeiras a reabrir para as aulas após as enchentes. Foto: Arquivo MST 

A ação popular se tornou política pública, a partir de uma aliança com o governo federal, por meio do PAA voltado para as Cozinhas Comunitárias. “O que naquele momento era uma pauta de reivindicação, hoje se transformou em política pública”, reforça Adriana. “No início, era uma emergência alimentar, agora se tornou uma rede contínua de apoio e solidariedade”. 

A cozinha de Eldorado atualmente entrega cerca de 500 marmitas por dia, e tem previsão de continuar os trabalhos até que as cozinhas possam ser organizadas nas próprias comunidades que recebem. Atualmente, são 87 cozinhas comunitárias em funcionamento, que garantem a alimentação das famílias que ainda enfrentam situação de vulnerabilidade após a catástrofe. 

Solidariedade e a luta anticapitalista 

Os dias da Jornada das Mulheres também foram embalados pela memória do comandante Che Guevara, capturado e assassinado entre os dias 8 e 9 de outubro de 1967, na Bolívia. Seu exemplo e seu legado seguem vivos: é resistência, trabalho voluntário e solidariedade, tão urgentes nos tempos em que vivemos. 

Ao falar de Che durante o encerramento da Jornada, Bruna Zimpel, integrante da direção nacional do MST pelo Paraná e moradora do acampamento Terra Livre, reforçou a solidariedade com um princípio presente em todos os processos revolucionários, cultivado por Che e assumido pelo movimento desde sua fundação. 

Encerramento do encontro reafirmou o compromisso e a solidariedade das mulheres do MST com o povo palestino. Foto: Rafa Dotti / Brasil de Fato-RS

“É nosso dever denunciar os culpados pelas tragédias que afetam a classe trabalhadora em todo o mundo. Denunciar quem organiza os ataques a Cuba e a Venezuela, e quem organiza o genocídio do povo Palestino. Quem são os culpados pelas estiagens e enchentes, que nos atingem e que vão seguir nos atingindo, e que não são naturais. São gerados pelo sistema capitalista”, garantiu Bruna, lembrando de Che ao reforçar a necessidade de ir além da partilha, e avançar também na luta para enfrentar o capitalismo e o imperialismo. 

Enquanto contribuia na manutenção de uma das hortas agroecológicas das famílias do assentamento IRGA, Clesmilda de Oliveira, militante do MST no PR, lembrou de Che como um exemplo forte em torno do trabalho voluntário e de ação concreta diante das injustiças. 

Clesmilda é moradora do acampamento Encontro das Águas, em Guarapuava (PR), e faz parte da brigada do Paraná participante da Jornada. Foto: Ednubia Ghisi/MST-PR

“Hoje a gente tem muito presente a memória do Che […]. Ele foi assassinado em 1967, porém a memória e o legado dele seguem vivos entre nós, e nunca vamos deixar que se apague. São valores fundamentais que a gente precisa carregar junto. Toda a classe trabalhadora precisa entender isso”. Clesmilda faz parte da Brigada Cacique Guairacá, formada por 13 acampamentos e assentamentos, na região centro-sul do Paraná. Ela e suas companheiras de Brigada organizaram mais de 150 kits para doação às companheiras gaúchas. 

“A gente precisa fazer ações concretas pra mudar essa realidade e para que tudo que existe continue evoluindo, mas de uma forma integrada, porque não tem como separar o ser humano da natureza”, completou. 

Fotos: Ednubia Ghisi

No encerramento do encontro, as mulheres do MST reafirmaram seu compromisso e solidariedade com o povo palestino, que enfrenta um genocídio pelas mãos do estado de Israel, com a conivência dos Estados Unidos e de outras nações do norte global. Com cantos, poesias e muita emoção, o encerramento do encontro firmou o compromisso comum das militantes em seguir fortalecendo a afetividade e a aliança entre as mulheres Sem Terra dos estados.

Resistência e solidariedade: condições para o futuro

Caminhando entre os canteiros com os pés descalços sob a terra preta e arenosa, Marinês se emocionou ao falar do amor que sente pelo que faz: “Eu não tenho palavras pra descrever o que significa isso pra mim. Esse trabalho que a gente faz, que a gente alimenta tanta gente”. 

Natural de Entre Rios do Sul, Marinês e a família foram assentados no IRGA em 1991. “Essa área era muito degradada e muito pobre, um solo sem vida. Só tinha mosquito e capim annoni quando chegamos aqui. E a gente sofreu bastante porque também não sabia trabalhar com essa terra, diferente das terras onde os agricultores trabalharam”. 

A agricultora relata que foram “largados” pelo estado naquela terra, sem qualquer apoio ou assistência técnica, e chegaram a passar fome pela dificuldade em conseguir produzir. No começo, as mulheres foram trabalhar na cidade como faxineiras, em creches, para garantir alguma renda externa que ajudasse na sobrevivência das famílias, enquanto os homens buscavam avançar nas lavouras. 

Inspirada pela agricultura biodinâmica, a agricultora Marinês cultiva flores junto com as hortaliças, como forma de realçar os sabores e as cores dos alimentos. Foto: Ednubia Ghisi 

As primeiras hortas orgânicas começaram a ser produzidas há cerca de 30 anos, e estão entre as primeiras a serem criadas no Rio Grande do Sul. Houve o apoio decisivo do Instituto Gaia, criado pelo agrônomo e ecologista José Lutzenberger, que chegou com a proposta de um trabalho de educação ambiental. “A gente percebe quando as pessoas são humanas e existe amor pela vida. Eles perceberam que não bastava trabalhar a questão ambiental, e que a gente precisava também resolver a questão da fome”, recorda Marinês. 

O primeiro projeto de horta começou no que hoje é o espaço de produção da agricultora. “Foi exatamente neste lugar, há 30 e poucos anos, que começamos nossa primeira horta. Eu me emociono, porque foi aí que a gente viu a luz no fim do túnel”. E aos poucos começaram a organização das hortas, construíram estufas, compram compostos. A primeira preocupação foi produzir para subsistência, depois começamos a vender na cidade, de porta em porta. Com os primeiros recursos, compraram uma charrete e passaram a fazer entregas de verduras todos os dias, de manhã e de tarde. E mais tarde vieram as feiras ecológicas. “E a nossa vida mudou. As mulheres voltaram pra dentro do assentamento”. 

A luta e a organização do povo camponês Sem Terra soma para a grande produção de arroz agroecológico na região, além da produção de leite e de mais de 100 variedades de hortaliças. Tudo isso a partir do trabalho cooperado. “Mulheres da comunidade também criaram uma padaria comunitária, a Pão da Terra, que iria garantir a produção do “melhor pão do mundo” e ajudar a avançar ainda mais para a qualidade da alimentação das famílias assentadas e também para a geração de renda”, como lembrou Marinês.  

Ao recuperar as memórias do passado e agora ver a terra fértil e vigorosa, mesmo depois da destruição trazida pela catástrofe, a camponesa agradece: “A natureza é muito generosa e eu só tenho a dizer gratidão ao universo por nos dar essa oportunidade de estar aqui e fazer o que a gente faz com tanto amor. E agradeço muito a essas pessoas como vocês que estão aqui, que são como Lutzenberger foi pra nós, que nos deu esse impulso, e que nos encoraja a continuar essa caminhada”. 

*Editado por Solange Engelmann