Mulheres em Resistência!
“As camponesas mostram que a justiça climática não é o futuro, mas o presente”
Pesquisadora destaca como as mulheres na Amazônia e em territórios do MST desenvolvem práticas importantes na produção de alimentos e justiça climática

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST
A crise climática e o avanço do capital no campo, tem intensificando a destruição do meio ambiente e a piora nas condições de vida dos camponeses e trabalhadores rurais, aumento de eventos climáticos extremos com secas e inundações, entre outros malefícios que afetam a vida dessas populações. Diante disso, a Página do MST conversou com a doutora em Ciência Política/Relações Internacionais e professora do Programa de Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido – PPDSTU no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea), Marcela Vecchione.
A pesquisadora falou sobre a importância da Reforma Agrária no enfrentamento à crise climática e produção de alimentos, principalmente na Amazônica, a importância da participação dos movimentos sociais na Cúpula dos Povos da COP30, que ocorre em Belém neste ano e o protagonismo das mulheres Sem Terra na Amazônia.
As mulheres do MST, nos assentamentos e ocupações, têm desenvolvido práticas muito importantes para a produção de alimentos. Não só para manter suas comunidades, mas também para abastecer cidades amazônicas, municípios e escolas, garantindo alimentação de qualidade para crianças e para a população em geral”, enfatiza.
Na semana em que as mulheres do MST realizam sua Jornada Nacional de Lutas, confira entrevista na íntegra:
Como a relação entre terra, biodiversidade e as lutas dos povos na Amazônia pode nos ajudar a compreender os desafios da Reforma Agrária?
Na Amazônia Legal como um todo, pode ajudar muito. É importante dizer que temos o Bioma Amazônia, que é essa ideia que fica no imaginário da maior parte das pessoas do país, que é floresta densa e tudo mais; mas a gente também tem a Amazônia Legal, essa região administrativa enorme, que compreende mais de 60% do país, em que temos outros biomas, como o Cerrado, mas outros ecossistemas além da floresta, como campos e até manguezais. A área de manguezal maior do mundo fica ali, naquela área de transição da Amazônia, desde o Amapá até o estado do Maranhão, no limite com o Ceará. Ou seja, conectando o Norte e o Nordeste também.
Então, a Amazônia tem essa grande diversidade e biodiversidade, essa mistura vai compondo elementos que nos ajudam a lidar com o desafio da Reforma Agrária no país que perpassa os conflitos, a concentração latifundiária, de uma distribuição totalmente injusta da terra, da dificuldade de acesso a políticas públicas para se manter nela. Isso tudo é muito permeado não só por essa história de concentração e desigualdades, mas também como elemento essencial para pensar o desafio da Reforma Agrária para a diversidade.
Ou seja, não tem como pensar uma Reforma Agrária uniforme, não há como ter um modelo padrão de Reforma Agrária para o país como um todo, porque o país é muito diverso. A Amazônia é um exemplo disso, em comparação a outras partes do país e dentro da própria Amazônia.
Para dar um exemplo, ao pensar a destinação de terra para áreas de assentamento na Amazônia, é preciso considerar as diferentes relações com a floresta, com a terra, com essas “terras-floresta”, para usar um termo dos Yanomami, que existem na região. Um modelo de assentamento convencional, em muitos lugares, não cabe na Amazônia. Então, formas diferenciadas de acesso e uso da terra são um dos primeiros desafios dessa diversidade amazônica.
A biodiversidade nada mais é do que isso. Biodiversidade é a diversidade de formas de viver, se pensamos “bio” como vida. Isso traz outro elemento importante que é o reconhecimento dessas diversas formas de ocupação e uso para fazer Reforma Agrária na região. E para garantir políticas públicas integradas, para que as pessoas possam se manter na terra com justiça social, agrária e climática.
O jeito que as pessoas vivem, que cuidam da terra, que produzem com a terra é o que mantém essa biodiversidade viva. São essas diferentes formas de manejo produtivo que garantem a própria reprodução social camponesa diferenciada na Amazônia. E isso inclui mulheres, indígenas, ribeirinhos, migrantes, enfim, toda essa diversidade, essa convivialidade, que muitas vezes também envolve conflito, é o que mantém a biodiversidade amazônica. E por isso mesmo, é preciso considerar a diversidade de formas de viver. Tudo isso leva – ou deveria levar – a um reconhecimento dessas formas diferenciadas de ocupação na região.
Esse reconhecimento é um desafio e, ao mesmo tempo, é fascinante, ter essas representações diversas, e que ao mesmo tempo exige a formulação de destinações adequadas e políticas públicas integradas.
Neste sentido, como o governo brasileiro está atuando para reconhecer e regularizar as ocupações tradicionais?
Gostaria de mencionar que tivemos uma portaria publicada recentemente, do Ministério do Meio Ambiente junto com o Ministério do Desenvolvimento Agrário. A Portaria 1.309, publicada em 4 de fevereiro deste ano, pode ser considerada algo muito importante para o MST. Se pensarmos nos assentamentos diferenciados, que são uma parte essencial do que compõe o Movimento na região amazônica, essa portaria se torna relevante porque reconhece essas formas diferenciadas de ocupação.
Essa portaria vem de uma disputa que já existia antes do atual governo Lula, mas que agora avançou para uma resolução. Ela trata das florestas públicas não destinadas, ou seja, áreas públicas da União que ainda não tinham sido destinadas para um uso específico. Muitas dessas áreas estavam ocupadas irregularmente por latifundiários, madeireiros, ou seja, terras públicas da União estavam sendo usurpadas ilegalmente.
Mas, ao mesmo tempo, muitas dessas terras também eram ocupadas por povos e comunidades tradicionais, por ribeirinhos, quilombolas, camponeses amazônicos, agricultores e agricultoras. Como essa disputa envolvia conflitos com o latifúndio, essas terras eram chamadas de “terras devolutas”, como se não houvesse ninguém nelas. Mas, na verdade, havia sim, só que essas ocupações não eram reconhecidas formalmente.
Aqueles que ocupavam de forma violenta se achavam no direito de ocupar essas terras, gerando conflitos graves. No total, eram aproximadamente 63 milhões de hectares de terras em disputa no país, e na região amazônica especificamente, quase 36 milhões de hectares.
Isso levou à criação de um Grupo de Trabalho (GT) no governo, que começou no primeiro ano deste mandato do Lula, com pessoas tanto do Ministério do Desenvolvimento Agrário quanto do Ministério do Meio Ambiente. O objetivo era desenvolver um processo administrativo para reconhecer essas ocupações tradicionais, assim como existem para a demarcação de terras indígenas, territórios quilombolas e assentamentos convencionais da Reforma Agrária, mas agora para pensar um modelo específico para essas ocupações na Amazônia.
A ideia é criar projetos de destinação diferenciados. Por exemplo, áreas de uso específico para quebradeiras de coco babaçu e outros grupos tradicionais da região. Assim, foi publicada essa portaria, que tem várias coisas importantes, e é uma conquista. A portaria do MMA e do MDA teve muita luta, muito processo nessa disputa por esses quase 34 milhões de hectares de terra, que não é pouca coisa.
Essa disputa tem muito a ver com a biodiversidade amazônica, ou seja, garantir as formas diferenciadas de ocupação e de trabalho na relação com a floresta, que não é um trabalho concentrador, não é um trabalho produtor de injustiça social e agrária. É um trabalho que garante a distribuição dessa destinação, ou seja, fazer com que essa destinação não seja concentradora e padronizada para determinados usos — monopolizadores, cercadores, latifundiários — mas sim para usos que conservem a biodiversidade. Até porque a própria biodiversidade está implicada na forma de trabalho e de ocupação dessas pessoas nesses territórios.
E quais os desafios que os povos enfrentam hoje?
Existem alguns obstáculos. Essa portaria tem algumas “trampas”, algumas armadilhas, como, por exemplo, em algumas situações, associar essa destinação ao reconhecimento de que essas áreas podem servir a esquemas de pagamento por serviços ambientais ou geração de créditos de carbono.
Ou seja, ela entra em outro processo, que é uma disputa da qual o Movimento precisa se apropriar, mas que ainda não está plenamente resolvida para os Sem Terra. Até porque a lei em relação ao sistema brasileiro de comércio de emissões de carbono é bastante complexa e, em grande medida, favorece setores proprietários e concentradores, e não a classe trabalhadora — muito menos a classe trabalhadora do campo.
Eu diria que há um avanço importante com essa portaria, pois criou um procedimento específico e é resultado de muitas lutas, que tem a ver com a Amazônia Legal, pois essa portaria é bem específica. Ela reconhece um problema geral no país, mas trata principalmente das Florestas Públicas Não Destinadas (FPND), que são um dos maiores campos de batalha por terra no Brasil hoje.
Portanto, foi muito importante essa portaria conjunta entre o MMA com o MDA para a criação dessas áreas específicas, porém, existem os chamados “jabutis”, que aparecem na portaria em relação a esses assuntos que ainda não estão resolvidos e que podem trazer complicações na relação de trabalho e ocupação das pessoas com esses territórios. Esse é um elemento central, além do desafio de pensar uma Reforma Agrária diferenciada na região.
Quem são os principais atores e mecanismos que financiam e sustentam o agronegócio, e como eles contribuem para a violência ambiental e social?
Na região, e pegando esse exemplo que é aplicável a várias partes do país, é difícil separar o social do ambiental. Acho mais interessante falar em socioambiental, porque a dimensão social e ambiental estão totalmente interligadas, na medida em que as relações com o meio ambiente são constitutivas da própria reprodução social desses grupos e sujeitos sociais coletivos.
Os atores políticos e econômicos que geram os problemas não pensam essa relação de forma integrada. Eles se apropriam da natureza de maneira predatória e comodificam ela, e de forma muito violenta. Se pensarmos nas corporações, as grandes comercializadoras de grãos são fundamentais nesse sistema, como Cargill, Louis Dreyfus, Bunge, ADM (Archer Daniels Midland). Essas empresas compõem o sistema BCD (Bunge, Cargill, Dreyfus) e estruturam o sistema agroalimentar capitalista corporativo, que controla desde a produção até a circulação e logística dessa produção.
A logística é um mecanismo essencial hoje na geração de conflitos, violência e concentração de terra. A terra não serve apenas para produção, mas também para infraestrutura logística, os portos, ferrovias, hidrovias, rodovias. Esses investimentos públicos não servem para o escoamento da produção dos assentamentos da Reforma Agrária, mas sim para garantir a circulação de valor do grande agronegócio.
E como o agronegócio age atualmente?
O agronegócio contemporâneo não é mais apenas o latifundiário, da década de 1970 e 1980. Hoje, é formado por grandes corporações que atuam em diferentes frentes, como logística, agrotóxicos, engenharia genética e digitalização da produção. Então você tem empresas de tecnologia, como a Microsoft, que desenvolve semicondutores e chips para bancos de dados sobre produção agrícola, até armazenamento destas informações das produções para medir a produtividade. Isso inclui desde sistemas de plantio até tecnologias de sementes para aumentar a produtividade. Essas tecnologias são integradas com outras empresas que trabalham com biotecnologia e engenharia genética. A concentração de tecnologia se torna, assim, um mecanismo de concentração de terra, porque para implementar esse modelo de produção integrado, corporativo, você também precisa de muita terra.
Assim, experimentação que não é mais só de laboratório, é uma experimentação integrada, ou seja, a experimentação para ver se o drone de precisão para lançar o agrotóxico funciona combinado com aquela semente, com aquela tecnologia específica, com aquele tipo de terra, com aquele índice pluviométrico. Você tem toda uma integração de tecnologia concentrada nas mãos de poucos, que vai demandar essa concentração de terra.
Se a gente pensa também em uma empresa grande de mineração, como a Vale, que hoje não é só uma empresa de extração de minério. A Vale é uma empresa logística, é uma empresa de tecnologia bioeconômica também, inclusive, para compensar as suas atividades degradantes. A Vale trabalha com agro-minerais também, que servem para a composição de fertilizantes do agronegócio. Ou seja, na Amazônia, por exemplo, a gente não pode separar a questão minerária da questão agrária. E isso compõe esses atores corporativos.
Por fim, eu citaria também os mecanismos tecnológicos legislativos, legais, infraestruturas legais que vão corroborando e colaborando para essa concentração. Você teria, por exemplo, o Cadastro Ambiental Rural. A facilidade que produtores que integram essas grandes cadeias globais de produção têm para fazer seus registros e entrar com as informações no sistema de maneira muito mais rápida e integrada, zoneando seus próprios territórios de operação e interesse para a expansão de suas operações.
O jeito que o cadastro funciona favorece licenciamentos e ambientais rurais específicos, por exemplo, para legalizar os escoamento de produção, seja para dentro, seja para fora do país. Isso é absolutamente fundamental para que os atores da linha de frente, ou seja, quem expande, quem é o produtor rural mesmo ou as empresas agrícolas e imobiliárias que trabalham junto com os produtores rurais, avancem, muitas vezes até por meio de grileiros que estão na linha de frente para captação dessas terras.
Essa infraestrutura legal colabora para que isso aconteça juntamente com outras infraestruturas. Às vezes, o acesso à justiça, por exemplo, por parte das pessoas que estão no campo, é muito mais dificultoso do que para essas outras pessoas, o que vai fazer também com que os processos possíveis de demandar direitos sejam menos acessíveis e mais bloqueados para os pequenos e médios produtores ou para os assentados e ocupantes, do que para quem está desse outro lado.
O que estou chamando de infraestruturas legais, seja do ponto de vista da mobilização de direitos na justiça, seja para um processo de conflito, seja para a legalização e circulação da produção, são mecanismos absolutamente fundamentais para que esses atores corporativos possam operar. É uma combinação do que está na linha de frente com o que o Estado media por meio das infraestruturas legais, seja no nível nacional, estadual ou municipal. E o próprio Judiciário, que é parte do Estado, também está conectado com o sistema corporativo, o que chamamos de “nexo-estado-empresa”.
Como a COP 30 poderá ser aproveitada para ampliar a visibilidade das lutas por Reforma Agrária, responsabilidade socioambiental e os direitos das mulheres no campo? Quais são as expectativas e os desafios para que a COP 30 realmente dialogue com as demandas dos povos da região e da América Latina?
As COPs, de maneira geral, não são espaços amigáveis para quem vem dos territórios, para quem está na linha de frente da batalha por justiça socioambiental. As conferências das partes têm negociações feitas por Estados, por diplomatas representando os Estados. Muitas decisões são inacessíveis ao público e só são conhecidas posteriormente.
Há um espaço de entrada para a sociedade civil, mas quem realmente tem acesso são as grandes organizações não governamentais internacionais. Muitas vezes, essas organizações estão associadas ao poder corporativo. Então, não podemos generalizar essa sociedade civil, pois há diferenças de atuação.
Se tomarmos o território e o chão da terra como ponto de partida, vemos que há muito pouca entrada no espaço oficial da conferência para as pessoas que vêm desses territórios.
Da mesma maneira que há 30 edições oficiais de COPs, onde os Estados são as partes principais, sempre há a Cúpula dos Povos. Esse espaço surgiu desde a Rio-92, que foi o primeiro momento de assinatura das convenções do clima e da biodiversidade. Desde aquela época, os povos perceberam que não teriam muita entrada nos espaços oficiais.
No entanto, eles também perceberam que aquele era um evento político importante e que precisavam marcar posição, ainda que em um espaço externo, visibilizando tanto suas lutas quanto o déficit democrático que existe nos espaços oficiais de negociação. As decisões tomadas nesses espaços impactam diretamente a vida das pessoas.
E assim surge a Cúpula dos povos?
A Cúpula dos Povos surgiu com essa visão de que é difícil estar no espaço oficial, mas é necessário aproveitar o momento da negociação para visibilizar os problemas globais e como eles se manifestam territorialmente, além de expor a falta de participação popular nos processos decisórios.
A COP30 em Belém pode ser um momento muito importante para as mulheres camponesas, agricultoras, que vivem e lutam nos territórios. É um espaço essencial para visibilizar suas lutas e desafios, mas também para mostrar as soluções que já estão sendo desenvolvidas.
As mulheres na Amazônia, as mulheres do MST, nos assentamentos e ocupações, têm desenvolvido práticas muito importantes para a produção de alimentos. Não só para manter suas comunidades, mas também para abastecer cidades amazônicas, municípios e escolas, garantindo alimentação de qualidade para crianças e para a população em geral.
Isso representa um papel fundamental no cuidado, não apenas no sentido tradicional, mas em uma perspectiva ampliada, dentro da economia da reprodução social e da economia feminista. Isso gera solidariedade entre campo, cidade, floresta, águas e diferentes classes sociais. Essa luta pela terra é também uma luta de classes.
Pensar a distribuição e a desconcentração como elementos fundantes de uma sociedade justa, socialmente e ambientalmente, é essencial. No final das contas, as mulheres camponesas têm o potencial de mostrar que a justiça climática não é o futuro, mas o presente. E que já está sendo praticada nos territórios.
Claro, ainda há necessidade de reconhecimento, apoio e financiamento adequado. Mas a utopia de um mundo justo climaticamente já está em curso, contra as distopias corporativas. Apesar dos problemas que uma COP apresenta, e eu as acompanho presencialmente desde 2009, acredito que, via Cúpula dos Povos, esse espaço pode ser uma ferramenta importante para a visibilização dessas lutas e alternativas já existentes.
*Editado por Solange Engelmann
**Versão completa de entrevista publicada na edição especial do Jornal Sem Terra da Jornada Nacional das Mulheres Sem Terra de 2025.