Reforma Agrária Popular

Como a Reforma Agrária pode combater a crise climática?

5ª Feira Nacional da Reforma Agrária do MST, que ocorre de 8 a 11 de maio, na capital paulista, denúncia os prejuízos do agronegócio para o meio ambiente e a sociedade e reforça a importância da Reforma Agrária para enfrentar a crise ambiental e produzir alimentos; confira no artigo

Foto: Coletivo de Comunicação do MST na Bahia

Por Alvaro Delatorre/MST-RS
Da Página do MST

No contexto da luta política em que se acentuam as contradições geradas pela lógica de reprodução do capital considerando a agricultura brasileira, ganham relevância dois aspectos: a dimensão da crise climática e a produção de alimentos. Em ambos os casos se verifica a relação direta com esse sistema agroalimentar do agronegócio, que tem na centralidade a estratégia da produção em escala para exportação e não para o mercado interno.

Durante a 5ª Feira Nacional da Reforma Agrária do MST, que ocorre entre os dias 8 a 11 de maio, no Parque da Água Branca, na capital paulista, será possível vivenciarmos o que a Reforma Agrária Popular tem a oferecer para a sociedade. As forças populares e democráticas estarão diante da celebração de uma luta em que a centralidade está no desafio de construir a Reforma Agrária Popular, centrada na função social da terra, na produção de alimentos saudáveis, que agregam valores culturais e sociais, na massificação da agroecologia, entre outras dimensões fundamentais para avançar na democracia e na agricultura familiar camponesa, como parcela essencial da agricultura brasileira. 

Como sempre, o que o capital oferece como alternativa para ambos os casos, seja a suposta compensação de emissão de gases do efeito estufa, apresentada pelo crédito de carbono, ou a importação de alimentos como alternativa de enfrentamento para o avanço inflacionário dos alimentos, são paliativos. Nunca se propõem enfrentar as questões estruturais determinantes da crise climática, que influencia na elevação dos preços dos alimentos e na precarização de vida dos mais pobres. Basta verificarmos a continuidade da fome, da subnutrição e a desproporcionalidade com que a crise ambiental recai sobre os coletivos humanos, em que os mais pobres são os que mais sofrem.

As políticas apresentadas pelo sistema capitalista, do ponto de vista político, econômico e ideológico, e as falácias do agronegócio, como solução para ambos os problemas mencionados, produzem análises parciais e errôneas da realidade. Em decorrência de mentiras, como “o agro é tech, agro é pop, o agro é tudo”, induzem a interpretações equivocadas e alienantes da realidade. 

Conjuntura da agricultura brasileira

Na atual conjuntura da agricultura brasileira, evidenciamos algumas contradições fundamentais para definirmos melhor a luta política. De um lado, o agronegócio insiste na racionalidade capitalista e na fantasia criada acerca do desenvolvimento tecnológico, com a imposição pelas empresas capitalistas transnacionais, aliadas às forças conservadores brasileiras, sobre um padrão de tecnologias e sistema produtivo adversos à lógica da agricultura de base familiar e camponesa; de outro surgem as mazelas que bloqueiam a perspectiva da Reforma Agrária, mesmo àquela submetida aos interesses do desenvolvimento capitalista na agricultura, que buscava integrar os/as assentados/as à dinâmica do mercado capitalista, no consumo do padrão tecnológico imposto pelas transnacionais e na produção primária para atender as necessidades de produção de alimentos com baixo custo.

Do nosso ponto de vista, a luta pela Reforma Agrária, pela afirmação da produção camponesa, soberania alimentar, agroecologia, cooperação, recuperação e preservação de áreas degradadas, na busca incessante de construir relações de gênero e geracionais lastreadas pela igualdade e equidade, estão na centralidade da luta política e se convertem em condição de sobrevivência social e política.

O momento histórico impõe aos setores populares o enfrentamento à lógica do agronegócio, lastreada pela insustentabilidade ambiental, social, cultural e econômica. Do ponto de vista econômico, basta ver o nível de subsídio que o setor recebe diretamente e indiretamente, seja pelo baixo valor do Imposto Territorial Rural (ITR), pela isenção de imposto promovido pela lei Kandir, pelo não pagamento de ICMS/IPI de agrotóxicos, ou até mesmo a equalização dos juros do Plano Safra.

Se considerarmos o que vêm acontecendo do ponto de vista climático, é impossível desassociar as sucessivas secas, enchentes, vendavais, a exemplo do que tem acontecido no estado do Rio Grande do Sul nos últimos anos, ao avanço de um sistema tecnológico e produtivo que tem como objetivo a reprodução da concentração e centralização da riqueza ditada pelo agronegócio.

O padrão de reprodução do capital, na medida em que se aprofunda nos territórios da agricultura brasileira, como o avanço da produção de soja, que influenciou o assoreamento de rios e, supostamente, nas inundações, como aconteceu no RS em 2024. Na medida em que as vegetações nativas são substituídas pela monocultura da soja, altera-se o ciclo das águas e como consequência ocorre o aumento do assoreamento dos rios. De acordo com o MapBiomas, a perda de vegetação nativa do Bioma Pampa na porção brasileira, chega a 32%, isto é, 2,9 milhões de hectares (58 vezes a área do município de Porto Alegre). Não podemos esquecer da produção de gado de corte, responsável por 78% das emissões produzidas em âmbito dos sistemas alimentares hegemônicos. 

Portanto, o debate sobre o sistema agroalimentar não pode estar focado em uma visão reducionista e determinada pelo padrão de lucro proporcionado pelo setor. Do ponto de vista das forças populares, é preciso analisá-lo criticamente considerando os aspectos econômicos, ambientais, culturais, inclusive da saúde, entre outros.

Tecnologias no campo não eliminam a fome, mas aumentam o uso de agrotóxicos

Vejam a ironia, argumentavam, que a implantação das tecnologias da Revolução Verde, e mais recentemente, com o surgimento da transgenia iria-se reduzir o uso de agrotóxicos na agricultura brasileira e acabar com a fome. No entanto, o que evidenciamos, são 64,2 milhões de pessoas convivendo com a fome grave ou insegurança alimentar, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios ( PNAD) contínua de 2023. E, ano após ano, o Brasil bate o recorde mundial de utilização dos agrotóxicos, o que mostra a ineficácia dessa proposta. Ao contrário, quanto mais se usa venenos mais o modelo exige o uso de veneno, e a fome continua sendo tratada com políticas públicas, devido a incapacidade do capital resolver essa mazela histórica. 

Faz parte da lógica de reprodução capitalista ajustar a legislação ao seu favor. No livro a Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil, Larisa Lombardi, mostra quanto a legislação brasileira é leniente aos limites de resíduos de agrotóxicos permitidos nos alimentos e na água. Seus estudos demonstram que o 2,4-D, agrotóxicos usado no milho, a legislação brasileira permite 4 vezes mais, se comparado com a legislação da Europa. Quanto ao campeão de vendas, o herbicida glifosato, no Brasil seu índice permitido é de 10 mg/kg, ou seja, 200 vezes superior ao permitido na Europa. A legislação brasileira é permissiva quando se trata dos índices permitidos para a água, já que o 2.4-D no Brasil é permitido 300 vezes a mais; o glifosato.

No Brasil estamos autorizados a beber água com 5 mil vezes mais contaminação de agrotóxicos. Evidenciamos como o estado brasileiro é capitaneado pelos interesses das corporações produtoras de veneno e suas entidades de classe.”

Não consta na contabilidade das empresas os custos para a sociedade com o uso de agrotóxicos. Mas uma pesquisa aponta que a cada 1 dólar gasto com o consumo de veneno o Sistema Único de Saúde (SUS) desembolsa 1,28 dólar, e estima-se que para cada caso informado de intoxicação por agrotóxico no país, tenhamos outros 50 casos não notificados, o que evidencia o alto índice de subnotificação. 

Ademais, os dados apresentados sobre as contradições ambiental, social, econômico impostas pelo agronegócio precisam ser compreendidos no seu papel macro-econômico brasileiro. Com o propósito de garantir superávits na balança comercial brasileira a qualquer custo; a exportação de produtos primários, como commodities, em uma economia financeirizada é a condição para garantir a lógica rentista da economia, em que a produção agrícola se transforma numa oportunidade de investimento financeiro. Nesta perspectiva o principal objetivo é a geração de lucro, em detrimento da produção de alimentos para o mercado interno. A soja, com valor de uso “inflacionado” pelo mercado internacional, responde perfeitamente a esse modelo. Como consequência verificamos a expansão da monocultura e a elevação no preço das terras e a especulação imobiliária.

A lógica rentista com ênfase no lucro, acentua a dependência do mercado externo, aprofunda a concentração da terra, produz conflitos sociais e ambientais, além de impor uma dieta alimentar com baixíssimo valor nutricional e responsável por doenças como obesidade, câncer, pressão alta, diabetes, entre outras. A Associação Paulista de Medicina divulgou dados que mostram como o consumo de ultraprocessados causa 57 mil mortes e custa mais de R$ 10 bilhões por ano no Brasil.

A celebração da Feira Nacional da Reforma Agrária Popular, traz presente dois conceitos importantes: soberania alimentar e a segurança alimentar. Os ensinamentos da Via Campesina, demonstram a relevância da questão. A concepção da soberania alimentar na luta política é uma tentativa de se contrapor às políticas neoliberais e fazer um contraponto ao conceito de segurança alimentar proposto pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO – sigla em inglês, Food and Agriculture Organization).

Na perspectiva neoliberal a estratégia passa pelo fortalecimentos dos mercados internacionais, que não contribuem para a erradicação da fome no mundo, além de aumentar a dependência dos países e suas populações empobrecidas pela importação de alimentos; enquanto o que se busca demarcar na concepção da soberania alimentar, forjada pela Via Campesina, é a determinação dos povos em garantir o direito à alimentação, com a diversidade de alimentos que só é possível com a realização da Reforma Agrária e uma agricultura em que a centralidade esteja no modo de produção da agricultura de base familiar e camponesa, além de políticas públicas que fortaleçam dietas alimentares diversificadas, centradas na diversidade sociocultural dos camponeses.

Por fim, permanece o desafio de acumular forças em um cenário adverso, em que o neoliberalismo brasileiro ganha feições neofascistas, seja do ponto de vista ambiental, com a incapacidade do capital em responder os desafios do aquecimento global. Se for mantida a ordem de acumulação e exploração capitalista, de exploração dos recursos naturais e os níveis de emissão de gases de efeito estufa, o que acontecer nos próximos dez a 20 anos vai determinar o nível de sofrimento das populações, em que os pobres, logicamente sofrerão as maiores consequências.

Na luta política aprendemos a necessidade de acumular força e que o acúmulo de força é resultado da capacidade organizativa. Com ela é possível forjar a capacidade de desenvolver experiências, fazer a luta política nos territórios, lastreadas por sistemas de produção de alimentos, baseados na agroecologia, na cooperação, solidariedade e em harmonia com meio ambiente, e, assim, se transformar em referência com potencial de alteração da estrutura de poder localmente, nas regiões e sobre ela edificar um novo padrão de relações com a sociedade e o meio ambiente; desenvolvendo a consciência social, elevando a consciência ambiental e a visão de mundo

*Editado por Solange Engelmann