Memória de firmeza
Frei Tito, um mártir da caminhada
Neste domingo (10), 51 anos da páscoa de Frei Tito, o MST traz a memória de um companheiro, irmão, revolucionário que enfrentou, com firmeza e dignidade, a brutalidade do regime militar no Brasil

Por Angelica Tostes*
Para Página do MST
Pai nosso, dos mártires, dos torturados
Teu nome é santificado naqueles que morrem defendendo a vida
Teu nome é glorificado, quando a justiça é nossa medida
Teu reino é de liberdade, de fraternidade, paz e comunhão
Maldita toda a violência que devora a vida pela repressão.”
(Cireneu Kuhn, 1987)
Em dia 14 de setembro de 1945, nascia Tito de Alencar Lima, o mais novo de quinze irmãos, filho de Idelfonso Rodrigues de Lima e Laura de Alencar Lima. Ainda muito jovem, na adolescência, Tito entra na Juventude Estudantil Católica, o que leva ao discernimento da vocação à vida religiosa, entrando na Ordem Dominicana, incentivado pelo Frei Betto.
Muda-se para São Paulo a fim de estudar Filosofia na Universidade de São Paulo. Pelo seu compromisso com a luta, ajuda a organizar o 30° Congresso da União Nacional dos Estudantes, em outubro de 1968, encontrando um local no interior de São Paulo, Ibiúna. O congresso havia sido proibido pela ditadura, e houve uma operação que levou setecentas e seis pessoas presas, entre elas, Frei Tito. Este evento marca o início de seu martírio, pois a partir deste dia, foi fichado e marcado como alvo em plena repressão militar.
Às três da manhã, na madrugada de 3 para 4 de novembro de 1969, a equipe do delegado Sérgio Fleury invadiu o convento dos dominicanos da rua Caiubi, no bairro de Perdizes, São Paulo. Conhecida como a Operação Batina Branca, a invasão dos militares levou preso Frei Domingos, Frei Sérgio e Frei Edson, que logo foram soltos, enquanto Frei Giorgio Callegari e Frei Tito foram torturados na mesma noite.
Acusado de ajudar o líder da Aliança Libertadora Nacional (ALN), Carlos Marighella, tido como inimigo número um da ditadura militar brasileira, Frei Tito fica mais de um mês preso à mercê de seu torturador Fleury e seus capangas, no DEOPS, que viria a se tornar o Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). As torturas, humilhações e difamações foram inúmeras: pau de arara, choques, em especial na boca, “para receber a hóstia”, agressões físicas, privação de alimentos e roupas, cadeira do dragão entre outras violências que buscavam a aniquilação física, mas principalmente subjetiva dos militantes contra à ditadura.
Na tentativa de proteger seus companheiros, em meio às dores insuportáveis e às torturas constantes, Frei Tito tenta pela primeira vez tirar a própria vida em sua cela, cortando-se com uma lata na esperança de pôr fim ao pesadelo que vivia. Sobrevive e é levado ao Hospital Militar do Cambuci, onde as torturas continuam, agora em forma de violência psicológica. Ali, ouve repetidamente que, além de “padre terrorista”, era também um suicida, uma vergonha para a Igreja, e que seria expulso. Não lhe davam um minuto de descanso.
Frei Tito foi oficialmente banido do Brasil em dezembro de 1970, aos 25 anos, quando seu nome entrou na lista de presos políticos libertados em troca do sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bücher, ação liderada por Carlos Lamarca. Em janeiro de 1971, foi deportado para o Chile e, diante da ameaça de nova prisão, fugiu para a Itália. Em Roma, encontrou portas fechadas por parte da Igreja Católica, que o rotulava como “frade terrorista”. Só depois, em Paris, encontrou acolhimento entre os dominicanos.
Em 1972, Frei Tito diz em uma entrevista: “o Evangelho traz uma crítica radical da sociedade capitalista. Nesse sentido, é revolucionário. Os temas da esperança, da pobreza, do messianismo, que são profundamente bíblicos, estão na fonte do movimento revolucionário. Não vejo realmente como ser cristão sem ser revolucionário”. E viveu essa realidade até às últimas consequências, sendo um testemunho vivo de luta pela justiça e conta a opressão.
Tenta recomeçar a vida, os estudos na França, porém, sofre com alucinações, vendo seus torturares por onde anda. A dor dilacerou sua alma de poeta, mas que continuava jorrar beleza e resistências, escreve, em 1972:
Quando secar o rio da minha infância / secará toda dor. Quando os regatos límpidos de meu ser secarem / minh’alma perderá sua força. Buscarei, então, pastagens distantes / lá onde o ódio não tem teto para repousar. Ali erguerei uma tenda junto aos bosques. Todas as tardes, me deitarei na relva / e nos dias silenciosos farei minha oração. Meu eterno canto de amor: / expressão pura de minha mais profunda angústia. Nos dias primaveris, colherei flores / para meu jardim da saudade. Assim, exterminarei a lembrança de um passado sombrio”.
Frei Tito inicia um tratamento psiquiátrico, e em 1973 passa a viver no Convento Sainte Marie de la Tourette em Lyon. Seu estado mental é instável, e piora quando recebe a notícia do golpe militar no Chile e é internado no hospital psiquiátrico. Em 1974, os frades tentam reintegrá-lo à comunidade, entretanto, as vozes de seu torturador o perseguem e no dia 10 de agosto do mesmo ano, aos 28 anos, o corpo de frei Tito é encontrado enforcado na copa de uma árvore.
É enterrado no cemitério do Convento de Sainte Marie de la Tourette, em uma simples cova a sua cruz receberia esta inscrição “Frei da Província do Brasil. Encarcerado, torturado, banido, atormentado… até a morte, por ter proclamado o Evangelho, lutando pela libertação de seus irmãos. Tito descansa nesta terra estrangeira”. “Digo-vos que se os discípulos se calarem, as próprias pedras clamarão (Lucas 19,40)” (Frei Betto, 1983, p. 253).
No dia 10 de agosto de 2025, 51 anos da páscoa de Frei Tito, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra relembra a memória de um companheiro, irmão, revolucionário que enfrentou, com firmeza e dignidade, a brutalidade de um regime que tentou calar corpos e apagar sonhos.
Frei Tito é cicatriz e resistência, um grito poético sufocado na garganta, e semente de luta para aqueles e aquelas que insistem em sonhar e construir um mundo sem opressão. Lembrar para não esquecer as atrocidades da ditadura militar no nosso país. Seguimos firmes, de punho erguido e coração aberto, cultivando o legado daqueles e daquelas que, como ele, ousaram enfrentar a escuridão com a luz da esperança radical. Nosso mártir da caminhada.
Frei Tito,
Presente! Presente! Presente!
*Teóloga feminista, mestra em Ciências da Religião e educadora popular. Pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e coordenadora de cursos no Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular.