Artigo
Fundo de Financiamento para Florestas Tropicais: a nova fantasia financeira do colapso climático
O TFFF é concebido como um mecanismo que monetiza os serviços ecossistêmicos das florestas

Por Adilson Vieira e Pedro Ivo Batista
Do Brasil de Fato
O anúncio pelo governo brasileiro do Fundo de Financiamento para Florestas Tropicais (TFFF) como panaceia ao desastre climático não é apenas um equívoco técnico: é uma armadilha política e ideológica. Ele representa a face mais perigosa do “capitalismo verde”. Uma emboscada que pretende canalizar o colapso em benefício dos mesmos atores que causaram a crise. E para entendê-la, precisamos desmontar suas ilusões desde a raiz.
O TFFF é concebido como um mecanismo que monetiza os serviços ecossistêmicos das florestas: regulação climática, sequestro de carbono, manutenção hídrica, biodiversidade, entre outros. Na sua versão conceitual, propõe pagar US$ 4 por hectare de floresta tropical preservada, e somando todas os territórios gerará bilhões de hectares, criando um fundo global de US$ 125 bilhões que, investido, geraria rendimentos para manter esses pagamentos. A ideia é simples e sedutora: transformar a floresta em ativo financeiro, inseri-la no mercado de capitais como se fosse uma ação que concede dividendos ambientais. Mas é justamente nessa sedução que reside a armadilha.
Primeiro, o valor adotado, US$ 4 por hectare, é ridículo diante da escala dos serviços ecossistêmicos que se pretende monetizar. Uma floresta tropical oferece regulação de clima continental, manutenção de regimes hídricos, biodiversidade vital e resiliência às mudanças, e tudo isso por 4 dólares? É uma cifra simbólica, não uma compensação justa. Esse valor não emerge de um cálculo ecológico, mas de expectativas de retorno financeiro compatíveis com o mercado. Ou seja: é o mercado que define o valor da natureza, não a natureza que impõe seu valor real.
Segundo, o TFFF não propõe transferir recursos diretamente às comunidades, povos indígenas ou movimentos que guardam as florestas. Os pagamentos são dirigidos aos Ministérios das Finanças dos países participantes, que decidirão como alocar esses fundos internamente. A nota conceitual admite que apenas “alguma porcentagem” ou “no mínimo 20%” seria repassada aos povos indígenas e comunidades locais, e isso apenas nas versões mais críticas do documento. Em outras palavras, o TFFF consolida a via estatal e centralizada da conservação, reforçando o papel do Estado nacional como intermediário, não das populações reais que vivem na floresta, mas dos mercados financeiros e dos governos nacionais.
Terceiro, os retornos esperados são mergulhados em incerteza. O mecanismo depende de levantar US$ 125 bilhões em investimentos públicos e privados, gerar lucros constantes de 7,5% ao ano (na versão original) ou algo similar, e sustentar pagamentos mesmo diante de crises financeiras. Se o fundo não alcançar tais retornos, os pagamentos podem ser reduzidos ou suspensos, e o mecanismo até prevê uma “liquidação ordenada” como plano de contingência. Ou seja: a floresta torna-se dependente de um regime financeiro volátil, sujeita aos humores dos mercados, dos ciclos de crise e da especulação, exatamente o oposto da segurança que se exige para enfrentar o colapso climático.
Quarto, ao operar como uma lógica bancária, o TFFF cria novas dívidas ou obrigações. Os países patrocinadores e investidores privados serão credores que esperam retorno, enquanto os países com florestas tropicais podem ver suas reservas transformadas em garantia de títulos e obrigações externas. Quem responderá se os países falharem em pagamentos futuros? Qual será o nível de austeridade exigido para honrar compromissos? Esses riscos são deixados nos interstícios do documento conceitual.
Quinto, o TFFF participa de uma estratégia mais ampla de despolitização das soluções climáticas: ao transformar o problema em “falha de mercado” que pode ser corrigida com instrumentos financeiros, ele oculta a raiz da crise: a acumulação capitalista, a expansão infinita, o saque de territórios, o poder dos grandes grupos econômicos. Ele propõe tratar a floresta tropical como “três serviços ecossistêmicos a serem valorizados” e ignora que a crise climática é resultado de um sistema civilizatório que converte tudo em mercadoria.
Além disso, o TFFF sustenta sua narrativa com o argumento de que não criará créditos de carbono negociáveis, nem permitirá “offsets”. Mas ele convive com o REDD+ e pretende potencializar seus mecanismos. Ou seja: está integrado à arquitetura do mercado de carbono, reforçando uma lógica de compensação e de licença para poluir em vez de bloqueios radicais à expansão fóssil ou ao desmatamento.
O TFFF é uma falsa solução porque não altera as relações de poder. Ele entrega nas mãos dos Estados nacionais, muitos deles corruptos e subordinados a interesses das transnacionais, uma nova ferramenta com máscaras verdes. Isso não significa que o Estado deva ser excluído do processo. Pelo contrário: é preciso redefinir o papel do Estado a partir de um controle social efetivo e do consentimento livre, prévio e informado das comunidades que habitam e protegem as florestas. Um Estado democrático, sob pressão popular, pode ser instrumento legítimo de defesa da vida e da natureza. Mas, para isso, deve atuar não como gestor de ativos ecológicos, mas como mediador transparente, subordinado às decisões das comunidades locais, aos conselhos territoriais e aos pactos coletivos que respeitam os direitos dos povos originários e tradicionais. Sem essa transformação profunda do papel estatal, o TFFF seguirá operando como instrumento de centralização, tecnocracia e cooptação ambiental. Ele não exige que se interrompa a expansão do agronegócio, da mineração, das rodovias, do petróleo; ele apenas recompensa aqueles que mantêm uma cobertura florestal mínima. Ele não garante a integridade territorial, os direitos indígenas, os modos de vida autônomos, ao contrário, reforça que o Estado decide o que é floresta em pé, o que é permitido, como se intermediário e árbitro fosse alguém imparcial.
O TFFF transforma a floresta em objeto de especulação. Ele promete que “ao valorizar florestas nativas em pé, reduziremos a pobreza e promoveremos o desenvolvimento econômico”, como se desenvolvimento pudesse significar mais do que acumulação sob outra aparência. Ele diz querer resolver uma “falha de mercado” quando, de fato, o mercado é o agente que criou a falha: a destruição ecológica.
Nós que militamos na interseção da ecologia e da justiça social não podemos aceitar que a salvação da natureza seja transformada numa miragem financeira. A composição desse tipo de mecanismo fortalece o capital, legitima o mercado climático e enfraquece os sujeitos reais da resistência: indígenas, comunidades tradicionais, povos da floresta, movimentos de base.
Em vez disso, precisamos afirmar claramente: não há fundo que conserve o mundo se o mundo permanecer estruturado segundo o capital. A preservação das florestas passa por desmantelar a lógica de acumulação que as devora. Passa por soberania territorial, por controle social, por capacidade de autogestão, por reorganização dos modos de produção, por rompimento com os vetores centrais do extrativismo, petróleo, mineração, agronegócio, infraestrutura predatória.
Que sejamos claros: combater o colapso climático não é uma operação de engenharia financeira. É uma operação política, e revolucionária. É recusar que a vida seja transformada em título negociável. É afirmar que florestas, rios, seres vivos têm direitos que não podem ser capturados pelos mercados. É exigir que quem destruiu pague, que quem resistiu persista. O TFFF, com sua fachada sedutora, é apenas mais uma máscara do capital, e devemos desnudá-lo antes que se torne inevitável.
*Adilson Vieira é coordenação de Articulação e Parcerias da REDE de Trabalho Amazônico – GTA; Pedro Ivo Batista é coordenação Nacional do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – FBOMS
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Editado por: Nathallia Fonseca