Aromas de Março
Brincando no jardim das violências – redes sociais e a adultização das crianças
Confira a coluna Aromas de Março, do Setor de Gênero do MST

Por Luana Pommé
Da Página do MST
As crianças que brincam, sorriem e lutam… anunciam que a primavera resiste: “Sem Terrinha em ação! Defender a natureza é defender o nosso chão!”. Neste mês de outubro, em cada canto do país, se organizam as Jornadas de Luta dos Sem Terrinha. A Infância Sem Terra já tem 40 anos e as crianças Sem Terrinha de outrora se tornaram jovens, adultos, militantes, pais, mães, avós, hoje. Mas a história que não para enquanto nascer um menino, enquanto nascer uma menina.
Infância em ocupação. Em Natalino, em acampamento, em assembleia, em assentamento, em cooperativa, em centro de formação. Infância em Poesia. Em Escrevivência. Infância na Caatinga, no Cerrado, na Amazônia, no Pampa, infância Internacionalista, infância em Gaza. Em agroecologia, em brincadeira, em sorriso. Infância em Ciranda. Infância de 40 anos. As crianças sempre estiveram lá. As crianças ainda estão aqui, em territórios de esperança.
Crianças marcadas, também, pelas violências causadas por uma estrutura agrária capitalista, racista, LGBTI+fóbica, patriarcal e adultocêntrica, que sob a alcunha do capital legitima e autoriza todas as formas de violências. Violação de corpos, de sonhos, veladas e aos nossos olhos.
O tema da Coluna Aromas de Março deste mês é a Adultização, conceito que ganhou os meios de comunicação nos últimos meses, embora seja tão antigo quanto a própria invenção da infância. Só que agora, já não há mais fronteiras, o alcance da violência se amplificou e viralizou no mundo virtual das redes sociais.
Adultização: termo se refere ao processo em que crianças e adolescentes são expostos precocemente a comportamentos, responsabilidades, conteúdos ou estéticas típicas da vida adulta, configurando-se como um tipo de violência.
O debate que propomos é especificamente a adultização por meio da sexualização, erotização ou pedofilização de crianças e adolescentes nas redes sociais. E esse assunto tem muitas, muitas, muitas camadas e uma certeza: o enfrentamento às violências contra crianças e adolescentes é condição para a construção da Reforma Agrária Popular.
Crianças e adolescentes – de propriedade à mercadorias
A criança sempre existiu e a infância, depois de inventada, foi se transformando, moldando-se nas relações próprias do desenvolvimento das forças produtivas das sociedades. Da criança mini adulto na Idade Média, à criança escravizada, passando pela criança na guerra e a criança mão de obra barata, chegamos à criança consumidora – lapidada nas projeções midiáticas de corpo ideal, de moda, do mercado e das explorações. Criança corpo vendido nas casas, nos postos de gasolina, nas esquinas, na televisão.
No capitalismo tudo vira mercadoria. E agora, as crianças são vendidas também em um grande shopping a céu aberto, nas redes sociais, aos olhos de todos, em um mercado sem fronteiras, sem leis, organizado por “homens de bem”. Vale destacar: mercadoria valorizada, se acrescida de sexualização precoce, milimetricamente acompanhada e arquitetada pelo que se denominou “Algoritmo P”. P de pornografia infantil.
Algoritmo: fórmula utilizada pelas grandes empresas de tecnologia, que identifica o perfil das pessoas que estão nas redes sociais (na internet), para oferecer-lhes mais conteúdos e produtos que as interessam. Assim, uma pessoa que se interessa por fotos de adolescentes e crianças, receberá mais fotos de adolescentes e crianças, formando-se uma rede de pessoas que passam a se conectar em torno desse interesse. Interesse que pode se configurar como um crime.
Hoje, um adulto leva apenas alguns segundos para encontrar adolescentes e crianças e aliciar suas vítimas na internet, de modo que seu filho pode estar agora, nesse exato momento, conversando com um criminoso. Alguns destes canais você deve conhecer: Instagram, Facebook e WhatsApp, pertencentes à Meta; o YouTube, do Google; o TikTok, dentre outras.
Mas a quem interessa a adultização de crianças e adolescentes?
A maneira como cuidamos da infância está relacionada à cultura e ao sistema que organiza a comunidade. Em uma sociedade orientada pelo capital, por exemplo, ser criança e adolescente pode significar, a depender da classe em que se nasceu, não ter onde morar, não ter o que comer, não poder estudar, direitos que deveriam ser garantidos pelo universo adulto.
Assim como é da natureza do capitalismo produzir a desigualdade, também é sua necessidade a adultização de crianças e adolescentes, transformando-as em consumidoras, sexualizando-as para serem consumidas.
No shopping center das redes sociais parece que tudo pode, tanto que é comum encontrar nas redes sociais vídeos de adolescentes e crianças dançando sensualmente, ou fotos domésticas, de situações aparentemente corriqueiras, sendo compartilhadas por pessoas que olham para crianças e adolescentes como objetos sexuais. Tudo isso é multiplicado exponencialmente pelo algoritmo.
O tal do algoritmo não identifica um crime e assim não o reconhece justamente porque “homens de bem”, aqueles que fizeram o algoritmo, não querem. Não querem? Por quê? Porque adolescentes e crianças erotizadas nas redes dão muito dinheiro, na medida em que tem muita gente consumindo e produzindo esse tipo de conteúdo, que inclusive pode ser monetizado, transformando-se em negócio. Ou seja, o capitalismo lucra com a adultização de crianças e adolescentes.
Criança não é mercadoria, nem propriedade! Adolescente, também não. Mulher, também não!
Vale lembrar que este conteúdo online somente existe porque também existe abuso fora do ambiente virtual. A violência, que atinge adolescentes e crianças de diferentes maneiras, relaciona-se intimamente com a violência contra as mulheres, naquilo que alguns chamam de “cultura do estupro”. Assim como vincula-se à violência racial, uma vez que as crianças negras se encontram mais propensas a sofrerem algum tipo de violência.
O que vemos é que, no Mercado do Capitalismo, mulheres-objetos já não chocam. Abusada? Permitiu. Violentada? Deve ter merecido. Estuprada? Deve ter se oferecido. Mulheres violentadas se desdobram em crianças e adolescentes violentados.
Tinha quantos anos?
16 anos? Já sabe o que faz da vida;
15 anos? já é uma mulher;
14 anos? deve ter provocado;
13 anos? já é uma mocinha;
12? ficou atentando ele;
11? já está ganhando corpo;
10? feche as pernas menina!
9? vá, dê um abraço no seu avô;
8 anos? respeite sempre os mais velhos, menino!
7 anos? vá , dê um beijo no titio;
6 anos? abrace a tia, se não ela fica triste.
E às crianças dizemos…
– E os namoradinhos?
– Dança igual gente grande
– olha que linda!
– Esse menino vai ser pegador
– Essa menina vai dar trabalho
– Ela já pode se casar!
– Dessa idade já chama tanta atenção! Essa daí vai ser minha nora!
– Cadê as namoradinhas?
– Esse vai arrasar corações.
– Vou te ensinar a paquerar as meninas!
E é assim, nas relações cotidianas, que a adultização das crianças e adolescentes, nessa perspectiva da erotização, vai se arraigando nas relações interpessoais, na família, nas comunidades, até a naturalização do abuso, do assédio, do estupro e, em sua face mais cruel, na culpabilização da vítima.
É preciso dizer o óbvio: crianças e adolescentes não podem, em hipótese alguma, ser responsabilizados pelos atos a que são expostos. Na relação com adultos, elas estão imersas sempre em uma relação de poder. E aqueles que deveriam protegê-las, muitas vezes, são os que as violentam.
“Parei a moto em uma esquina, tirei o capacete e olhei umas menininhas. Três, quatro. Bonitas. De 14/15 anos. Arrumadinhas, num sábado, em uma comunidade. E vi que eram meio parecidas. Pintou um clima, voltei. Posso entrar na sua casa? Entrei.” (Jair Messias Bolsonaro, 2022, ex-presidente da República, em entrevista a um podcast).
O ECA Digital como instrumento de enfrentamento à violência
A infância é uma construção histórica e, no Brasil, a criança só foi considerada legalmente sujeito de direito na Constituição Federal de 1988, tendo como importante marco o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990.
No último período, principalmente com o crescimento avassalador das redes sociais, colocou-se em pauta a necessidade da regulação das plataformas digitais, como forma de proteger seus usuários, principalmente crianças e adolescentes. Entre as ações que visam combater as violências, no último mês foi aprovado o Projeto de Lei (PL 2628/2022) contra a adultização de crianças e adolescentes nas redes sociais e segurança digital. Em tramitação desde 2022, o PL sancionado pelo Presidente Lula, que se tornou a Lei nº 15.211 de 17/09/2025, estabelece que as plataformas digitais devem se responsabilizar pelos conteúdos veiculados e impulsionados por elas via algoritmos, conteúdos dos quais as próprias plataformas têm conhecimento, e que adotem mecanismos que impeçam crianças e adolescentes de terem acesso a conteúdo impróprio.
“As empresas de tecnologia da informação devem tomar medidas para prevenir o acesso de crianças e adolescentes a conteúdos como: exploração e abuso sexual; conteúdo pornográfico; violência física, intimidação sistemática virtual e assédio; incitação à violência física, uso de drogas, automutilação e suicídio; venda de jogos de azar, apostas e produtos proibidos para crianças e a adolescentes, como cigarros e bebidas alcoólicas; e práticas publicitárias predatórias, injustas ou enganosas” (Agência do Senado).
E pasmem, sua aprovação gerou muita polêmica. Teve quem fosse contra, argumentando que geraria censura, mas censura ao quê? A quem? O fato é que a adultização de meninas nas redes é um perverso e lucrativo negócio, que reforça a cultura do estupro, ao naturalizar a ideia de que elas podem ser vistas e tratadas como mulheres sexualmente disponíveis – mesmo sendo crianças. O Estatuto Digital da Criança e do Adolescente tenta enfrentar este problema, regulando a exposição, impondo responsabilidades a plataformas e ampliando o controle dos pais. Ele não resolve a cultura do estupro por si só, mas ataca uma das suas raízes simbólicas e comportamentais: a erotização precoce.
Proteger as crianças e adolescentes do campo é nossa tarefa: alguns alertas importantes
Fique de olho!
– Comunidades mais distantes, que têm menos acesso a serviços de proteção (delegacias, Conselho Tutelares, CRAS/CREAS, hospitais), estão em situação de maior vulnerabilidade;
– Territórios alvo de crime ambiental estão mais suscetíveis a ocorrência de violência nas formas de abuso e de exploração comercial sexual;
– A dependência econômica e social também é um entrave, pois a vítima pode depender do agressor economicamente, ou o agressor ser uma figura de autoridade (pai, avô, patrão, etc.), o que dificulta o rompimento ou a denúncia;
– A violência acontece nas redes, porque também acontece fora delas, esteja sempre vigilante, mesmo entre pessoas da comunidade.
Não naturalize!
– Em muitos lugares, tabus, vergonha ou normalização de comportamentos abusivos dificultam a denúncia, cabe a nós problematizá-los;
– Infelizmente, o casamento infantil ainda é uma prática muito comum no interior do Brasil, por isso, não é difícil encontrar meninas muito novas casadas com homens mais velhos, inclusive nos nossos territórios. Muitas vezes estas meninas trocam uma violência por outra, lançando mão destes casamentos como saída para fugir das situações vivenciadas em casa. Por isso, sempre é bom lembrar: “criança não namora, nem de brincadeira!”.
Não se cale!
Adolescente e criança não são propriedade e os assuntos que se referem a elas não são privados! Denuncie, mesmo quando a violência é cometida dentro de casa. Lembre-se de que a maior parte desses crimes é cometida por familiares ou conhecidos das vítimas e muitas vezes são silenciados.
Eduque e reeduque-se!
– Abordar questões de gênero e a educação sexual na escola é uma arma importante. Educadoras e educadores devem ser capacitados para trabalhar a educação em sexualidade desde a ciranda até as escolas de Ensino Médio. A prevenção perpassa pela informação; criança informada é criança capaz de denunciar, capaz de fugir de situações de risco, de pedir ajuda e, principalmente, de saber para quem pedir ajuda. A escola deve ser esse lugar de segurança e de acolhimento;
– O coletivo deve estar atento! Não reproduza falas que erotizam adolescentes e crianças, nem incentive comportamento adulto em crianças e adolescentes. Criança não precisa usar salto, maquiagem, roupas erotizadas, ouvir e dançar músicas que reproduzam gestos sexualizados, tudo isso serve, mais uma vez, para inserir as crianças no mundo da mercadoria e tem como consequência sua adultização e erotização.
– Não proporcione o livre acesso de crianças e adolescentes às redes sociais. Caso tenham acesso, não permitam perfis públicos, oriente-as sobre como funciona, o que não devem postar e esteja sempre vigilante; adultos são responsáveis por crianças e adolescentes. Não poste fotos de crianças e adolescentes nas redes, elas podem estar sendo utilizadas por criminosos;
– Precisamos superar a ideia de que para educar é preciso violência. É preciso superar a cultura da palmadinha e desnaturalizar a ideia de que a criança precisa apanhar para aprender.
Nossos assentamentos e acampamentos precisam construir espaços para a infância e para a adolescência, local onde possam brincar, sorrir, se socializar, vir às dimensões da luta, lugar onde sintam-se seguras, acolhidas e protegidas. Quando falamos em construir relações saudáveis e emancipatórias para avançarmos em nosso projeto de sociedade, é preciso que a infância esteja incluída nestas relações.
“Defender a infância e a adolescência, é defender a Reforma Agrária Popular”
Violência sexual infantil é qualquer ato de natureza sexual cometido por alguém mais velho contra uma criança ou adolescente, com ou sem contato físico, podendo ocorrer em qualquer ambiente, como forma de exploração comercial ou não.Ela se manifesta principalmente de duas formas: abuso e exploração sexual. - O abuso envolve atos sexuais impostos por força, ameaça ou manipulação, geralmente cometidos por familiares ou pessoas próximas. - A exploração envolve troca de sexo por dinheiro, favores ou presentes, podendo envolver redes criminosas e aliciadores que lucram com a situação.
*Editado por Fernanda Alcântara