Mulheres em Luta
Mulheres Sem Terra reafirmam a luta por Reforma Agrária Popular enquanto reparação histórica
Nesta edição Coluna Aromas de Março, convoca à reflexão e à luta: o Novembro Negro é tempo de esperançar e transformar

Por Rosa Negra
Da Página do MST
Nesse novembro negro, somos convocadas e convocados a entoar um grito de revolta pelos ares e compreender o campo de batalha simbólico rebatizado pelo movimento negro a partir do resgate histórico da luta de nossa ancestralidade negra. Sim, este é o tempo da memória insurgente, da celebração dessa ancestralidade e da afirmação política.
O dia 20 de novembro, Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra tem se fortalecido a cada ano e trazendo importantes reflexões sobre a dívida histórica com o povo afrodescendente e a urgência da reparação. Longe de ser uma concessão, a ressignificação deste mês é um projeto político forjado na luta, que arranca do silêncio a história de um povo e a transforma em força motriz no caminho de mudanças radicais.
A recente e histórica instituição do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra como feriado nacional em todo o território brasileiro é a materialização de uma vitória conquistada a pulso. É o reconhecimento, tardio e ainda insuficiente, de que a nação precisa parar e encarar seu passado na perspectiva sankofa, que reconhece no passado a força e o conhecimento necessários para tecer passos firmes e conscientes, garantindo que o nosso caminhar seja guiado pela raiz e não pela interpretação, tantas vezes parcial, da realidade imediata.
Assim, compreendemos que este feriado não é um descanso, mas um imperativo de reflexão que politiza o tempo, inscrevendo na agenda nacional a centralidade da luta antirracista. Ele consolida o 20 de novembro como um pilar inegociável, um marco que obriga a sociedade a confrontar o legado da escravidão e a persistência brutal do racismo estrutural.
Da carne mais barata do mercado à resistência nas ruas
A importância política da luta antirracista se agiganta diante da realidade nua e crua da violência, que insiste em ceifar a vida do povo negro. A luta pela consciência e pela reparação histórica é inseparável do enfrentamento à necropolítica que os tem como alvo preferencial. Os dados oficiais não são meras estatísticas; são o registro frio de um genocídio em curso, a prova irrefutável de que o racismo e o machismo operam em uma intersecção letal.

No caso, das mulheres negras, dizem de uma verdade sobre a vulnerabilidade a que estão submetidas. Os números do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), em 2022, trazem que 67% das mulheres assassinadas no país eram negras [1]. Em relação ao feminicídio, estudos recentes apontam que as mulheres negras somam cerca de 63,6% das vítimas desse crime hediondo [2, 3]. Esses dados são a evidência de que a cor da pele e o gênero definem a probabilidade de morte, de que a mulher negra é a vítima mais exposta e a menos protegida.
Na tentativa de se salvar da sua crise estrutural, o capitalismo utiliza variadas formas de violências, a mais convencional delas é a força do aparato de Estado usada para controlar os corpos e subordiná-los, nem que para isso sejam promovidos massacres de jovens pobres, pretos e periféricos, como o que ocorreu no dia 28 de outubro, no Rio de Janeiro. Diante dessas violências e da barbárie que tentam nos impor, as mulheres são as primeiras a contar os corpos, a chorar as perdas, a se apoiarem mutuamente, a gritarem por justiça, sem ter tempo de sentirem a dor e sem o direito ao luto, pois seu cotidiano exige delas o sobre-esforço de transformar o luto em LUTA.
A força dessas mulheres se ampara na luta daquelas que vieram antes de nós, que, mesmo com todo tipo de violência e dominação, não deixaram de lado o exercício do esperançar e de criar mundos possíveis. Mas é neste abismo de violência que a resistência da mulher negra se manifesta com maior vigor. Ela não é apenas vítima; é a principal articuladora da denúncia e da sobrevivência. Sua luta é a trincheira onde se combate a violência física, psicológica, sexual e patrimonial, exigindo que o Estado e a sociedade reconheçam a complexidade de sua experiência. O Novembro Negro, ao trazer a questão racial para o centro, é o palco onde essa violência específica é nomeada e combatida com a força de quem se recusa a ser silenciada.
Avisa na hora que tremer o chão: 20 e 25 de Novembro
O calendário de novembro é costurado pela urgência de duas datas que se complementam na luta por um futuro sem opressão: o 20 de novembro (Consciência Negra, já citada) e o 25 de novembro (Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher). Para as mulheres negras, estas datas não são separadas; são a dupla frente de batalha de uma guerra que exige o fim do racismo e do machismo.
O 20 de novembro é o dia da memória combativa, que evoca Zumbi e a resistência dos povos dos quilombos, exigindo a reparação da dívida histórica e a implementação de políticas afirmativas. O 25 de novembro, que no Brasil marca o início dos 21 Dias de Ativismo, é o dia do enfrentamento direto à violência de gênero. A articulação dessas datas é um ato de profunda inteligência política: é o reconhecimento de que a democracia só será plena quando o racismo e o patriarcado forem superados e a violência for banida. Ambas as datas se tornam, assim, marcos simbólicos de uma luta que é una, indivisível e implacável, conduzida pela força política das mulheres negras.
“Amiga, é hora, segura a minha mão”: o Feminismo Camponês Popular segue junto na Marcha das Mulheres Negras
Chegamos a um novo ciclo de luta, onde é possível celebrar as conquistas, mas também denunciar que muito do que deveria ter mudado permanece estruturalmente inalterado: o latifúndio permanece, a concentração de terras e destruição ambiental seguem desterritorializado comunidades camponesas, indígenas e quilombolas, o feminicídios segue em ascensão, o trabalho doméstico segue negando a mulheres, principalmente as negras, o direito à vida plena, submetendo-as às jornadas exaustivas, a sub-representação nos espaços de poder, as desigualdades econômicas que se aprofundam, além do genocídio da juventude negra que persiste se atualizando agora na forma de massacres nas periferias brasileiras.
Nesse contexto, a Marcha das Mulheres Negras se afirma como um espaço para recolocar as nossas urgências, reafirmar a necessidade de nossa organização e fortalecer as práticas e experiências que nos fazem esperançar e a projetar futuros. Assim, a ideia por traz do conceito de reparação histórica é o motor que impulsiona a luta antirracista. Não se trata de um pedido, mas de uma exigência de justiça, que transcende a compensação financeira. Reparação é a transformação radical das estruturas que perpetuam a desigualdade, é a garantia de acesso pleno a direitos, à riqueza, ao poder e, sobretudo, à dignidade. É a construção de um novo pacto social.

Para as mulheres negras do campo, das águas e das florestas, a reparação passa, inegavelmente, pela Reforma Agrária Popular. A luta pela terra, pelo território e pela soberania alimentar é central, pois o latifúndio, o racismo e o patriarcado são estruturantes ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil. É neste contexto que o Feminismo Camponês Popular, enquanto ferramenta teórica e prática, articula a resistência contra o racismo, o machismo e o capitalismo, defendendo um modelo de vida que valoriza a Reforma Agrária Popular.
A realidade nos cobra que ocupemos a rua, em toda a sua extensão, porque só a luta muda a vida. Assim, nos somamos à Marcha das Mulheres Negras, em 2025, para ocupar as ruas de Brasília num manifesto vivo de organização e força política. A Marcha de 2015, reuniu mais de 100 mil mulheres, foi um divisor de águas. A nova edição, sob o lema “Por reparação e Bem Viver”, não é apenas uma repetição, mas a reafirmação de um projeto popular, que entende as mulheres negras como sujeitos na luta pela vida e por justiça social.
Será essa junção de nossas vozes-mulheres, historicamente invisibilizadas num grito de ordem coletivo, no meio da ordem do capital, que fará o debate sobre a igualdade racial e de gênero no Brasil, exigindo que a dívida histórica seja paga com a garantia de vida plena para todas e todos. O Novembro Negro, assim ressignificado, é o mês em que a sociedade brasileira está convocada a se alinhar com pautas centrais das mulheres negra que dizem do bom e do justo.
Que as vozes das meninas- mulheres que nos sucederão possam recolher em si
A fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Que na voz e nas bandeiras de todas elas
Se faça ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade1.
Referências:
[1] Senado Federal. (2024). Pesquisa DataSenado detalha a violência doméstica contra mulheres negras: desigualdades e desafios. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/datasenado/materias/pesquisas/pesquisa-datasenado-detalha-a-violencia-domestica-contra-mulheres-negras-desigualdades-e-desafios
[2] Folha de S.Paulo. (2025). Mulheres negras são 63% das vítimas de feminicídio no Brasil. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2025/07/mulheres-negras-sao-63-das-vitimas-de-feminicidio-no-brasil.shtml
[3] Instituto da Cor. (2025). Violência contra a mulher negra: mulheres negras são as maiores vítimas de violência no Brasil. Disponível em: https://institutodacor.ong.br/violencia-contra-a-mulher-negra-mulheres-negras-sao-as-maiores-vitimas-de-violencia-no-brasil/
[4] Câmara dos Deputados. (2024). Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra tem primeiro feriado neste ano. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1112331-dia-nacional-de-zumbi-e-da-consciencia-negra-tem-primeiro-feriado-neste-ano/
[5] Marcha das Mulheres Negras. (s.d.). Por Reparação e Bem Viver. Disponível em: https://marchadasmulheresnegras.com.br/
[6] Agência Brasil. (2025). Brasília recebe Marcha das Mulheres Negras em 25 de novembro. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-10/brasilia-recebe-marcha-das-mulheres-negras-em-25-de-novembro
1EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. 3. ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017, p. 24- 25 (Adaptado)
*Rosa Negra é militante do MST, mãe, poeta e doutoranda no PPGH/USP



