Intelectual Orgânica

Vânia Bambirra, intérprete do Brasil que pensou a soberania popular na convergência de todas as lutas

Neste 9 de dezembro de 2025 é oportuno recordar os dez anos de falecimento da importante pensadora marxista da América Latina

Vânia Bambirra é fundadora da Teoria Marxista da Dependência. Crédito: Acervo Vânia Bambirra

Por Carla Ferreira | Porto Alegre (RS)
Do Brasil de Fato

A relevância da teoria crítica para pensar um projeto para o Brasil em um contexto de transição na ordem global e de acirramento dos conflitos em escala internacional, onde a extrema direita desafia a própria sobrevivência da vida no planeta, tem impelido as novas gerações a revisitar clássicos do pensamento social brasileiro. Intelectuais orgânicas como Vânia Bambirra, fundadora da Teoria Marxista da Dependência, é uma das imprescindíveis.

Neste 9 de dezembro de 2025 é oportuno recordar os dez anos de falecimento de Vânia Bambirra (Belo Horizonte, 1940- Rio de Janeiro, 2025). Fundadora, ao lado de Ruy Mauro Marini e Theotonio dos Santos, de uma vigorosa vertente do marxismo latino-americano, Bambirra nos ajudou a compreender a formação social brasileira como capitalista dependente, pensou os caminhos estratégicos e táticos da mudança estrutural em perspectiva latino-americana e analisou a tendência à convergência dos explorados oprimidos em uma “luta geral de libertação de todo o povo”. E no atual contexto dos conflitos de alta intensidade em nosso continente com o Corolário Trump, mas também com a busca pela soberania popular na convergência de todas as lutas, as ideias inovadoras de Bambirra ecoam como um legado fundamental. Por isso, vale a pena recordar três de suas importantes contribuições.

Em primeiro lugar, Vânia demonstrou haver algo em comum nos processos de industrialização na América Latina. Se havia diversidade entre países relativamente mais ou menos industrializados, conformando uma unidade não homogênea na dependência, ao final dos anos 1950, no entanto, todas as formações sociais do continente experimentaram uma integração produtiva com o capital estrangeiro monopolista. Quer dizer, nas palavras da autora, o imperialismo fincava raízes nas nossas formações sociais, se internalizava, não podendo ser identificado como um fator externo à realidade nacional. Essa descoberta teórica, que data do início dos anos 1970, ainda hoje é pouco assimilado pela intelectualidade brasileira que, volta e meia, torna a “descobrir” que o imperialismo tem seus interesses bem assentados em instituições, intelectuais e negócios no Brasil. Daí o caráter antinacional de nossas classes dominantes do qual o bolsonarismo é sua expressão evidente. E por isso, a luta pela soberania somente pode ser protagonizada pelos subalternos e efetivada mediante mais democracia participativa e substantiva, mobilização política e elevação da consciência social.

Em segundo lugar, em meio aos turbulentos anos 1960, Vânia fundou com outros companheiros a Organização Política Operária (Polop), embrião de uma nova esquerda que questionava o dogmatismo teórico de um marxismo abstrato e avesso às especificidades da realidade brasileira e latino-americana. A Polop rejeitava também o projeto desenvolvimentista e seu mito do progresso para todos, pois compreendia que a exemplo dos processos de acumulação do capital que geram riqueza concentrada de um lado e pobreza relativa e absoluta no polo oposto, o desenvolvimento dos países centrais provocava subdesenvolvimento dos dependentes. Mecanismos diversos articulados no âmbito do mercado mundial como: dívida externa/pública, pagamento de royalties por patentes e assistência técnica, remessas de lucros das grandes empresas para seus países-sede, entre outros fatores que estruturam o comércio e o investimento em escala internacional – tais como o câmbio – geravam transferências de valor do Sul para o chamado Norte Global. Por isso, os intelectuais da TMD afirmavam que, no capitalismo dependente, quanto mais desenvolvimento capitalista, há sempre um novo caráter da dependência, com suas respectivas contradições na questão social. 

Em terceiro lugar, em seu itinerário como intelectual orgânica, neste mesmo período, Bambirra coordenou em Minas Gerais as Ligas Camponesas, lideradas por Francisco Julião, tendo sido fundamental na afirmação teórico-política da resistência popular contra as expropriações dos meios de produção e de vida de meeiros, arrendatários, minifundiários e pequenos proprietários rurais empobrecidos. Naquele momento, o Partido Comunista, que era a organização hegemônica na esquerda brasileira, defendia que esses segmentos em vias de proletarização deveriam organizar-se em sindicatos rurais, pois desse modo, acreditava, o desenvolvimento do capitalismo no campo aceleraria a luta pelo socialismo. Era sem dúvida um raciocínio bastante mecânico e vazio de contradição. Polemizando contra aquela tese, no âmbito no I Congresso Nacional Camponês em 1961, Bambirra contribuiu para assentar legitimidade à luta pela terra entre o pensamento crítico. Com base em sua práxis junto às Ligas, essas lutas contra as expropriações, que eram históricas entre quilombolas e povos indígenas, reverberam nos dias atuais em movimentos como o MST e entre todos aqueles que resistem em seus territórios no Brasil e no mundo, como o heroico povo palestino que resiste em Gaza pelo direito legítimo de ali viver e ter sua autodeterminação.

A memória é substrato primordial da conformação da identidade social. É a matéria-prima do autorreconhecimento, fundamental para definir quem somos. Reconhecer o legado deixado por Vânia Bambirra ajuda não somente a compreender melhor o Brasil e os/as brasileiros/as, mas contribui para aquela função essencial das identidades autênticas: ativar a agência social em um sentido emancipatório.

Mesmo submetida a tecnologias de silenciamento utilizadas pela violência de Estado contra o pensamento crítico, na ditadura brasileira inaugurada em 1964 e, na chilena, iniciada em 1973; mesmo sofrendo com os apagamentos típicos da clivagem de gênero na arena pública; mesmo sendo ignorada do campo acadêmico em tempos de pensamento único neoliberal; mesmo cassada, perseguida e exilada, dando à luz a sua primeira filha na clandestinidade e deixando tudo o que tinha para trás duas vezes em menos de uma década, Bambirra se manteve fiel ao longo de toda sua vida aos princípios socialistas, que colocavam em movimento sua prática teórica e política**.

Vânia Bambirra foi companheira de militância de Theotonio dos Santos, Ruy Mauro Marini, Leonel Brizola, Darcy Ribeiro e Heleieth Saffioti. Foi professora de João Pedro Stédile, por quem nutria profundo respeito e manteve interlocução por toda a vida. Saudada por Maria da Conceição Tavares como “uma economista brilhante”, recebeu de Eduardo Galeano uma doce dedicatória onde ele escrevia “estas palabras nuestras”. A pequena frase traduz lindamente a irmandade entre o livro Capitalismo Dependente Latino-Americano, de Vânia Bambirra, e As Veias Abertas da América Latina, de Galeano. O escritor uruguaio escreveu um dos mais influentes textos literários dos anos 1970.  E a tese de Vânia sobre os impasses da industrialização dependente converteu-se em obra fundadora de uma vigorosa vertente do pensamento crítico latino-americano: a Teoria Marxista da Dependência. O legado de Vânia e de toda aquela geração é mesmo de uma beleza sem fim.

* Carla Ferreira é historiadora e docente da ESS/UFRJ, coordenadora do Memorial Vânia Bambirra.

**A vida e obra de Vânia Bambirra foram contados na série documental “Vânia, a história de uma revolucionária” (2023, 15 mini episódios, português e espanhol). A série foi concebida e dirigida por Carla Ferreira e Mathias Seibel Luce, como projeto de extensão universitária junto a ESS/UFRJ, e está disponível gratuitamente no Canal You Tube do Memorial Vânia Bambirra. Acessível no link: https://bit.ly/49BdjhN

***Este é um artigo de opinião e não representa necessariamente a linha editorial do Brasil do Fato.

Editado por: Vivian Virissimo