Enquanto Brasília ferve, segue gente sem-terra assassinada
Por Jacques Távora Alfonsin*
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) publica todos os anos um relatório crítico sobre “Conflitos no campo Brasil”. Trata-se de uma pesquisa documentada, precisa, regionalizada, com tabelas que identificam em detalhe os Estados e os Municípios, onde surgem os conflitos, as datas, os números e os nomes das pessoas vitimadas por essas disputas por terra.
O volume deste ano tem tudo para repetir os dados de um vergonhoso atestado das injustiças geradas pelo latifúndio brasileiro sobre gente pobre sem terra. Uma visão preliminar atualizada de 2015, publicada pela Adital, no dia 03 deste dezembro, previne o pior:
“Somente neste ano de 2015, registros parciais do Banco de Dados do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno dão conta de 46 pessoas assassinadas e 79 ameaçadas de morte até agora. O número de pessoas assassinadas já é o maior desde 2004.” {…} “Para a CPT, o mais grave dessa situação é que as ameaças, registradas em Boletins de Ocorrência nas Delegacias de Polícia ou por meio de denúncias feitas à Ouvidoria Agrária Nacional, à Secretaria de Direitos Humanos e a outros órgãos públicos, não encontram a merecida atenção e não são elucidadas. Com isso, os que ameaçam ficam impunes e as vítimas desprotegidas. “A omissão do Estado é gritante. Poucas das vítimas são inseridas no Programa de Defensores dos Direitos Humanos, que tem se mostrado com sérias fragilidades nos acompanhamentos”, denuncia a Comissão.”
Embora esses relatórios forneçam prova farta e indiscutível de ilícitos penais diversos, de ameaças a assassinatos praticados por jagunços a mando ou não de latifundiários, policiais a mando ou não de ordens “legais” e mandados judiciais, as iniciativas do Congresso Nacional sempre manifestaram uma surpreendente preferência por investigar a conduta das vítimas desses crimes e não de quem os pratica, servindo de exemplo disso a antiga Comissão Parlamentar que investigou o MST.
Não deve ser outra a razão pela qual os movimentos populares de defesa da reforma agrária e das/os agricultoras/es sem terra estão questionando tanto a CPMI recentemente criada para investigar o INCRA e a FUNAI, duas autarquias que, bem ou mal, procuram dar garantia a direitos humanos fundamentais de gente sem-terra e índia, vítima das atrocidades anualmente denunciadas pela CPT.
Cabe uma pergunta óbvia sobre essa preferência parlamentar. Se são tantos, tão graves e tão frequentes os assassinatos praticados no campo brasileiro, que razão subsiste para não merecerem a mesma atenção dada pelo Congresso para abrir inquéritos parlamentares com objetivos que até correm o risco de aparentar acobertá-los?
Por que nunca se abre uma CPMI, por exemplo, para investigar quem esconde e conserva as causas estruturais desses crimes, sabidamente oriundas da péssima e muito injusta distribuição de terras do país, carente de uma reforma agrária permanentemente barrada por latifundiárias/os, grileiras/os, invasores de terras indígenas, usurpadoras/os de terras devolutas e públicas?
Enquanto todas as atenções do país se concentram em Brasilia, não se falando de outra coisa senão das manobras políticas de bastidor se entredevorando para participar da Comissão de Impeachment, para ver onde vai se fornecer quórum para votar ou obstruir qualquer decisão sobre assunto de momento, para medir onde o foco da mídia oferecerá melhor oportunidade de exibição, a cultura permanente de prorrogação das reformas estruturais exigidas pelas garantias aos direitos sociais vai alimentando a descrença do povo a quem elas são devidas.
O problema é que esse continua morrendo, como prova a CPT, confirmando a cada dia, a cada morte, a causa mais evidente de toda a nossa crise, seja ela econômica, política ou social. O Brasil só é mesmo um Estado democrático de direito, na letra fria da Constituição Federal. Se o impeachment dessa insinceridade legal não eliminar a sua falsidade, a nação promovendo e garantindo terra, trabalho e teto para todas/os, como aconselha o Papa, os cemitérios continuarão sepultando vidas que poderiam ter sido e que não foram.
*Jacques Távora Alfonsin é procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.