Quem são os responsáveis por mais essa morte no campo?
Por Layza Queiroz e Luciana Pivato
Da Terra de Direitos
No último dia 4 de agosto, mais um defensor de direitos humanos foi assassinado no Brasil. Ronair José de Lima tinha 41 anos e era liderança do acampamento Novo Oeste, situado nas terras públicas que compõe o imóvel rural denominado “Complexo Divino Pai Eterno”, no município de São Félix do Xingu/PA.
A morte de Ronair é emblemática e demonstra como a aliança de agentes públicos e privados têm sido a principal responsável pelo grave quadro de violência praticada contra defensoras e defensores de direitos humanos no Brasil.
O complexo “Divino Pai Eterno” é composto, em sua totalidade, por terras da União (Gleba Misteriosa), ocupadas há mais de 10 anos por cerca de 150 famílias de trabalhadoras e trabalhadores rurais. Essas famílias sofrem com permanentes ameaças e violências praticadas por fazendeiros-grileiros da região que se intitulam proprietários das terras reconhecidamente públicas.
Segundo dossiê da Comissão Pastoral da Terra de Marabá, que acompanha o caso, nos últimos seis anos, seis trabalhadores foram covardemente assassinados na região. Além dessas mortes, outras quatro pessoas sofreram tentativas de homicídios, lesões corporais e ameaças pelos fazendeiros e seus pistoleiros. O próprio Ronair já havia sido vítima de ameaças e tentativas de homicídio, tendo sido baleado em uma emboscada no dia 27 de fevereiro deste ano.
Sua morte já estava anunciada e a indiferença do sistema de Justiça e das instituições públicas foi a força e a coragem daqueles que o assassinaram.
O papel da injustiça no acirramento da violência contra os/as trabalhadores/as rurais
Em agosto do ano de 2014, a Superintendência Regional do Incra Sul Pará solicitou a afetação das terras da União que compõem o Complexo Divino Pai Eterno à política de Reforma Agrária, com o objetivo de criar um projeto de assentamento no local e atender parte das milhares de famílias acampadas na região sul do Pará.
Contudo, como a terra permanecia ilegalmente ocupada por fazendeiros, foi necessário o ajuizamento de ação civil pública para assegurar a posse do INCRA sobre as terras.
O Juiz Federal da Subseção de Redenção, tendo em vista a inquestionável titularidade pública da área bem como o intenso conflito na região, concedeu tutela antecipada ao Incra, determinando a retirada imediata dos fazendeiros do local. O fundamento dessa decisão, proferida em novembro de 2015, era justamente resguardar a vida e integridade física das trabalhadoras e trabalhadores rurais:
Há de se concluir pela existência de um clima de tensão social na região, exigindo imediata intervenção estatal, a fim de se evitar novos episódios de violência, que no caso é gerada, por um lado, pela ocupação de vastas parcelas de terra pública sem autorização e, por outro, pelas inúmeras famílias acampadas na região pleiteando de serem assentadas. (4480-53.2015.401.3905/ Justiça Federal de Redenção)
Apesar de ser incontestável que a área se trata de terra pública ilegalmente invadida, desprezando ainda todo o contexto de violência sofrido pelas famílias de trabalhadores/as rurais – algo observado, inclusive, pelo Juiz local –, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), em Brasília, optou por suspender a decisão judicial, impedindo que o Incra criasse o projeto de assentamento e permitindo a permanência dos fazendeiros no local.
Na decisão que suspendeu a liminar que havia concedido a posse da área ao Incra, datada de 15 de janeiro deste ano, o então relator, Desembargador João Batista Moreira, considerou que a desocupação da área pelos fazendeiros-grileiros era medida extrema e que não poderia ser tomada em sede de urgência [1]. Posteriormente, a Desembargadora relatora convocada, Rogéria Maria Castro Debelli, em 18 de fevereiro manteve a mesma decisão, suspendendo mandados de reintegração de posse que tinham sido deferidos em favor do Incra [2]. Apenas nove dias após essa decisão, Ronair foi vítima de uma emboscada e sofreu uma primeira tentativa de homicídio.
Ao privilegiar o direito daqueles que invadiram ilegalmente as terras públicas da União, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região agiu sem a esperada postura de proteção da vida humana e respeito aos direitos humanos das famílias que aguardam a criação de Projeto de Assentamento, sob ameaças cotidianas. O posicionamento do Tribunal faz letra morta ao art. 188 da Constituição Federal, segundo o qual a destinação de terras públicas deverá ser compatibilizada com o Plano Nacional de Reforma Agrária.
As decisões até aqui proferidas são liminares – isto é, o Incra ainda aguarda o julgamento de mérito da questão. Mas, apesar de interpostos há mais de seis meses, os agravos nem sequer foram incluídos em pauta de julgamento, permanecendo suspensa, assim, a possibilidade de pacificar o conflito social existente.
Ronair não conseguiu esperar vivo a resolução do conflito. Seus algozes souberam contar com a morosidade do Poder Judiciário para assassinar mais uma liderança comunitária do Complexo Divino Pai Eterno.
Esse é mais um caso em que, apesar da intensa batalha judicial, do envolvimento de diversos órgãos públicos e dos esforços para destinação da área à sua finalidade social, o Judiciário se coloca ao lado da apropriação ilícita de terras públicas, em detrimento dos direitos humanos de centenas de famílias.
A postura do Tribunal, neste caso, contraria inclusive o entendimento mais recente que vem se consolidando nos Tribunais Superiores a respeito dos conflitos coletivos envolvendo a posse de terras. O Superior Tribunal de Justiça já se posicionou recentemente no sentido de que, na ponderação entre a vida e a propriedade, a primeira deve se sobrepor [3], como no julgamento do caso das ocupações da Izidora em Belo Horizonte. Em outra recente decisão, o STJ não apenas determina a prevalência dos direitos humanos e do princípio da dignidade humana, como chama a atenção para as implicações que as decisões podem ter sobre a realidade de comunidades inteiras:
O julgador, diante do caso concreto, não poderá se furtar da análise de todas as implicações a que estará sujeita a realidade, na subsunção insensível da norma. É que a evolução do direito não permite mais conceber a proteção do direito à propriedade e posse no interesse exclusivo do particular, uma vez que os princípios da dignidade humana e da função social esperam proteção mais efetiva. (STJ, RESP 1.302.736 – MG, julgado em 02/04/2016)
Outro elemento que novamente chama a atenção é o verdadeiro absurdo que configura a inexistência de instrumentos legais que garantam que casos que envolvem violações de direitos humanos sejam tratados com prioridade pelo Poder Judiciário. Na prática, observamos mais uma vez que, além de não garantir a realização do direito humano à terra, o Judiciário contribuiu para o acirramento da violência no local servindo de verdadeiro obstáculo à destinação da área às famílias.
É preciso ainda dizer que a inoperância do sistema de justiça quanto à investigação dos crimes cometidos contra os/as trabalhadores/as rurais perpetua o cenário de violência. A impunidade das graves violações de direitos humanos é marca registrada dos conflitos no campo no Brasil. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, apenas 6% das mortes de defensoras e defensores de direitos humanos por conflito no campo são investigados no Brasil. E, somente este ano, já foram registrados cerca de 40 casos de assassinatos, sendo a maioria deles relacionados aos conflitos agrários, segundo levantamento do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos [4].
O assassinato de Ronair causa enorme indignação aos diversos movimentos, organizações e defensores/as dos direitos humanos que há anos vinham reivindicando providências urgentes no sentido de garantir a vida e os direitos das famílias que vivem no local. Até quando os/as trabalhadores/as pagarão com suas vidas por tamanho descaso e conivência dos poderes públicos do país? De quem é a responsabilidade por mais esta morte no campo?
* Luciana Pivato é advogada da organização Terra de Direitos, membro da JusDh e da Renap, especialista em direito penal e criminologia pela Universidade Federal do Paraná e Instituto de Criminologia e Ciência Criminais.
* Layza Queiroz é advogada da organização Terra de Direitos, e integrante do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos. Atua na pauta sobre defensoras e defensores de direitos humanos e na assessoria jurídica popular a movimentos sociais, povos indígenas, povos e comunidades tradicionais da Amazônia que lutam pela defesa de seus direitos territoriais.