Comunidades quilombolas do Pará temem impactos da Ferrovia Norte-Sul

O empreendimento faz parte de um projeto do governo federal que visa ligar os estados do Rio Grande do Sul e do Pará

 

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Mulher da comunidade quilombola de Laranjituba colhendo fruto em um açaízeiro – Créditos: Rosilene Miliotti

Por Lilian Campelo
Do Brasil de Fato

Um pé de piquiá define os limites entre as comunidades quilombolas África e Laranjituba, localizadas no município de Abaetetuba (PA). Lá, os caminhos são pavimentados pelo cacau caído no chão direto do pé, as crianças correm livremente, os pássaros que se abrigam na floresta também circulam pelas comunidades e as águas geladas e transparentes dos igarapés são apreciadas pelos moradores da região. Esse cenário, entretanto, está situado no trecho da Ferrovia Norte-Sul (FNS) que liga Açailândia (MA) a Barcarena (PA), e corre o risco de desaparecer.

O empreendimento, que teve início na década de 1980 e tem a ambição de ligar o Pará ao Rio Grande do Sul, é gerenciado pela Valec Engenharia, Construções e Ferrovias S.A., empresa pública é vinculada ao Ministério dos Transportes, que também gerencia a exploração da infraestrutura ferroviária.

Ela publicou, em 2012, um Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) em que consta sugestões de alternativas de traçados que ligará o Maranhão ao Pará. Nele, há um diagnóstico ambiental e os possíveis impactos na região pela implantação do empreendimento. Segundo o documento, a malha ferroviária será de 477 quilômetros, a ser usada para o escoamento da soja e do minério produzido na região até o porto da Vila do Conde, em Barcarena (PA), passando sobre terras de comunidades quilombolas, indígenas e agricultores rurais.

Até agora, a única fonte de informações que a comunidade têm sobre a ferrovia é o site da empresa. Magno Nascimento, que é morador de Laranjituba desde criança e conhece bem o território, comparou os mapas que constam no EVTEA com o mapa dos limites das comunidades e constatou que elas estão bem no centro de onde passará a ferrovia.

Os moradores das comunidades estão apreensivos com as consequências da obra. “Se alguém fala: &”39;olha já liberaram o recurso pra construção’, ou alguém do Moju [município próximo] liga: &”39;olha tão contratando gente pra abrir a ferrovia&”39;, a gente nem consegue dormir”, afirma Luís Augusto, presidente da Associação Quilombola África e Laranjituba.

Ele visitou o território quilombola Santa Rosa dos Pretos, localizado em Itapecuru Mirim (MA), e conheceu de perto os impactos causados por uma ferrovia da Vale S.A, que corta o território. Ele relata que ouviu depoimentos que o deixaram impressionado.

“Eles viviam como a gente, mas, depois que chegou a ferrovia, isso mudou. Acabaram os igarapés, os peixes, a mata, o sossego. E a gente tem uma preocupação grande com um castanhal que preservamos há muito tempo, do qual muitas famílias sobrevivem”, afirma Augusto.

Nas duas comunidades quilombolas, a principal atividade econômica é o agroextrativismo, aliança entre agricultura familiar, cultivo de árvores frutíferas, pesca, coleta de sementes e frutos (como a castanha do Pará e o açaí). Alguns moradores produzem farinha de mandioca e panelas de barro, e, nos quintais, a criação de pequenos animais soltos também incrementa a renda.

Nascido na comunidade, Augusto morou em Belém por três anos para estudar, mas não se adaptou ao ritmo urbano e logo voltou para a comunidade. Atualmente, ele produz farinha para o próprio consumo e vende açaí por rasa, um cesto de palha confeccionado pelos próprios moradores que serve como medida e equivale a duas latas de 14 quilos. Ele afirma que, em época de boa colheita, consegue tirar R$ 2 mil por dia. 

Principal corredor de exportação

Com a expansão do agronegócio na Amazônia, o chamado Arco Norte (que abrange Rondônia, Amazonas, Amapá, Pará e o Maranhão) se tornará a principal via de escoamento para a exportação de grãos e minérios.

De acordo com o relatório de mercado da empresa, o principal corredor de exportação brasileiro será o centro da região Norte-Nordeste, “mas a capacidade de embarque de grãos em São Luís está estagnada em 2 milhões de toneladas por ano há 18 anos, e a de Belém é zero”. Por isso, a expectativa é que haja investimentos na região para superar essas limitações.

Guilherme Carvalho, coordenador da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) Programa Amazônia, explica que os portos de Santos, em São Paulo, e o de Paranaguá, no Paraná, encontram-se congestionados e longe dos principais estados de produção de grãos, tornando o preço do produto nada atraente para o mercado externo. Neste cenário, a alternativa encontrada foi a Amazônia.

“Transportar pela nossa região é muito mais barato porque ela está mais perto da Europa, dos Estados Unidos e do canal do Panamá, que dá acesso à China e Japão. É mais rápido e mais barato”.

O relatório da Valec produzido em 2012 aponta que, atualmente, o Brasil é o segundo país que mais consegue suprir os mercados internacionais de exportações do agronegócio, e estima que entre cinco e dez anos consiga ultrapassar os EUA, pois já esgotaram “fronteira de produção”. A Amazônia atualmente é considerada a última fronteira agrícola do Brasil.

Para atender ao mercado, um plano de transporte multimodal que interliga diferentes meios como hidrovias, rodovias, ferrovias e portos vêm ganhado força. O Plano Nacional de Logística e Transporte (PNLT), de 2009, recomendou investimentos até 2023. A rede logística tem o objetivo de conectar toda a Amazônia com os principais mercados consumidores, e a ferrovia Norte- Sul faz parte do plano.

Em um tom alarmante, Carvalho informa que a região está vivendo um processo de saque em grande escala dos recursos naturais, e que a tendência é que aumentem os conflitos no baixo Tocantins no Pará, região considerada estratégica por ser próximo ao Porto de Vila do Conde, em Barcarena (PA).

Outro lado

Em nota, a Valec afirma que o EVTEA é tem caráter preliminar e apenas elabora uma diretriz de traçado para a ferrovia. O traçado propriamente dito será determinado por estudos posteriores, como o Projeto Básico de Engenharia e o Projeto Executivo.

O Estudo de Impactos Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) ainda não foram realizados para este trecho específico, mas, segundo a empresa, um futuro EIA/RIMA contemplará em detalhes cada uma das comunidades quilombolas.

A empresa é responsável pela construção e exploração de infraestrutura ferroviária e realizou os estudos do trecho, mas, segundo a assessoria, a Valec não está mais responsável pela ferrovia Açailândia-Barcarena – a responsabilidade, agora, é da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). A ANTT não respondeu aos questionamentos sobre o caso até a publicação desta reportagem.

Edição: Camila Rodrigues da Silva
Atualizada em 14/11/2016, às 11h04.