Sem Terra conquistam diploma em medicina veterinária
Por Catiana de Medeiros
Da Página do MST
O sonho de cursar Medicina Veterinária se tornou realidade em 2002 para Natiele de Almeida Veeck, oriunda do Assentamento Santa Júlia, localizado no município de Júlio de Castilhos, na região Central do Rio Grande do Sul, após confirmação da abertura do edital para ingresso da segunda turma especial para beneficiários da Reforma Agrária. O curso acontece via Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), na Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
À época, ela era estagiária da Cooperativa de Trabalho em Serviços Técnicos (Coptec) em Tupanciretã, onde trabalhava com assistência técnica e extensão rural com famílias assentadas. “Veterinária sempre foi uma opção de curso que eu tive, antes mesmo de surgir oportunidade aqui em Pelotas. Mas eu sabia que seria difícil, porque é um curso bem concorrido. Quando saiu o edital para a turma especial eu me inscrevi, participei da etapa preparatória e passei para a segunda fase. Aí fui selecionada junto a outras 59 pessoas para ingresso no curso”, recorda.
Na turma de Natiele, batizada de Hugo Chávez, está Fernando Vieira, do Assentamento Antônio Conselheiro, localizado no município de Cáceres, na região sudoeste do Mato Grosso. Antes de Pelotas se tornar a sua nova cidade — pelo menos por cinco anos —, ele contribuía em atividades do MST e produzia alimentos no lote da família. “Eu e outros companheiros fomos indicados para o vestibular num encontro estadual do MST. Achei uma proposta bastante interessante para melhorar a produção dos assentamentos, principalmente a bovinocultura de leite. Eu não tinha outra oportunidade de fazer faculdade se não fosse numa federal e nos moldes em que foi construído esse curso, via Pronera. Mas, através da luta, isso se tornou realidade no curso de veterinária, que é elitizado e muito caro no país”, acrescenta.
Dificuldades e superação
Para muitos, a maior dificuldade não foi passar no vestibular, mas superar os desafios que os aguardavam em cinco anos de curso. Além de não terem a possibilidade de repetir nenhuma disciplina, os 60 acadêmicos encararam o preconceito de colegas da universidade e professores, simplesmente pelo fato de serem Sem Terra e por não concordarem com a forma de ingresso, os dias frios e úmidos da cidade e as condições inadequadas de alojamento.
Ainda tiveram que ter forças para lidar com questões delicadas, como a morte inesperada da colega Kenia Ferreira, do Mato Grosso, e a reprovação de colegas queridos. “Ela era uma amiga, parceira de luta que fez muita falta. Também perdemos alguns colegas nessa caminhada por não terem conseguido se dedicar tanto aos estudos e outros por marcação de alguns professores, que reprovavam por terem ideologia diferente da nossa”, conta Indiana Maia, do Assentamento Valmir Mota de Oliveira, situado em Cascavel, no Paraná.
Mas dessa trajetória do mundo acadêmico, os Sem Terra também guardam boas lembranças. Eles reconhecem a importância de terem feito novas amizades e o apoio que tiveram de alguns professores, estudantes do curso de Agronomia e integrantes do Diretório Central de Estudantes (DCE). “Os momentos marcantes se dão pela convivência com as pessoas, e nós acabamos formando uma família. Essa relação fez com que seguíssemos as metas e os objetivos da turma, com que víssemos as dificuldades de outra forma”, conta Giovana Paula Pivotto, que é do Assentamento 21 de Novembro de São José do Cedro, um município do Extremo Oeste de Santa Catarina.
Formatura
A formatura da segunda turma especial de Medicina Veterinária, que ficou constituída por 44 acadêmicos, aconteceu em Pelotas no último dia 16 de agosto, no Centro de Eventos da Feira Nacional do Doce (Fenadoce). Pais, amigos e familiares de 39 formandos — cinco se formaram em gabinete no dia 10 —, do Pará, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Goiás Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Tocantins se reuniram para celebrar a conquista coletiva.
Vieira, que foi um dos oradores da turma, arrancou aplausos e gritos de ordem do público ao desejar boa noite ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso político há mais de quatro meses em Curitiba. Ele e a colega Ritieli dos Santos lembraram o quanto foi árdua a caminhada até chegar à formatura. “A cada instante éramos lembrados e tachados de não pertencermos ao privilégio de cursar Medicina Veterinária. Era pesado o fardo de não pertencermos à classe dominante. Nós resistimos aos olhares de repúdio, às piadas por sermos pobres e Sem Terra, às críticas ao método de ingresso. Mas saímos preparados para compreender e avaliar o nosso paciente, contribuir com a nossa base enquanto médico veterinário e também militante da classe trabalhadora”, ressaltaram.
Entre os convidados da cerimônia estava Cedenir de Oliveira, dirigente estadual do MST. Na ocasião, ele agradeceu à UFPel por abrir as portas aos Sem Terra, falou da importância do curso para a efetivação da Reforma Agrária Popular e da expectativa do Movimento em relação aos formandos. “Queremos a democratização da terra, mas também acesso à educação de qualidade. Essa formatura é uma conquista coletiva, pois carrega o símbolo da lona preta, das marchas e das ocupações. O MST está orgulhoso e quer contar com vocês para desenvolver uma agricultura sustentável, com gente, estudo, cultura e conhecimento científico. Vocês darão muita qualidade para a efetivação da Reforma Agrária Popular no país”, declarou.
Desmonte do Pronera
O curso de Medicina Veterinária começou a ser pensado ainda em 2005 pelo MST, quando foi encaminhado ao Pronera projeto para capacitação de jovens na área. No ano de 2007, 60 trabalhadores ingressariam na primeira turma, porém, o Ministério Público de Pelotas entrou com ação civil contra a realização do curso e as aulas iniciaram somente quatro anos depois, no primeiro semestre de 2011, após longa disputa judicial que terminou com parecer favorável do Superior Tribunal de Justiça (STF) ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Essa luta é lembrada pelo paraninfo e amigo da turma, o professor Luiz Filipe Schuch. Durante a formatura, ele destacou a parceira entre a UFPel e o Incra, que até o momento formou via Pronera 89 Sem Terra em Medicina Veterinária. A terceira turma está em andamento e a quarta, com 60 acadêmicos, ingressou no final deste mês. Na colação de grau, Schuch alertou para o desmonte do programa no atual governo federal. “Em 2018 o investimento à educação no Pronera foi restrito a quatro novas turmas no RS. E o orçamento nacional, que já foi próximo de R$ 70 milhões, é de R$ 3 milhões. A UFPel conseguiu estar incluída com a quarta turma de Medicina Veterinária. Isso é motivo de felicidade, mas também de grande preocupação. Precisamos lutar para garantir a liberação desses e de novos recursos para reforçar o programa”, apontou.
Em 20 anos de existência, o Pronera já beneficiou no país 187 mil acampados e assentados da Reforma Agrária, além de quilombolas e beneficiários do Programa Nacional de Crédito Fundiário. Numa metodologia de estudos em regime de alternância, as aulas oferecidas pela iniciativa ocorrem em sua maioria em universidades federais. De 1998 a 2011, foram realizados 320 cursos de vários níveis em parceria com instituições de 880 municípios.
*Editado por Maura Silva