Terra, trabalho e dinheiro na mira da mercadorização total do novo governo à revelia do Estado de Direito
Por Guilherme Delgado*
Da Página do MST
A primeira semana do governo Bolsonaro está cheia de contradições nas áreas – Relações Exteriores, Defesa Nacional, Segurança Pública, Educação e até mesmo política econômica, produzindo uma sensação híbrida de incompetência, que também funciona como espécie de manobra diversionista, planejada ou não, para outras coisas que vem sendo realizadas de maneira mais sistemática. Dessa segunda categoria, certamente que com maior coordenação, incluem-se as providências já antecipadas para estabelecer completa privatização das terras,
das relações de trabalho e das finanças públicas (dinheiro).
Em se tratado de bens sociais ou bens públicos, conforme conceituação constitucional, poder-se-ia caracterizar essa pretensão do novo governo na categoria das megaoperações de alienação de patrimônio público, para benefício dos capitalistas financeiros e associados às custas do conjunto da sociedade.
Essas apropriações ora cogitadas são indevidas e se medem em trilhões de reais ou dólares; mas não entram no rol das inquirições anticorrupção do Ministério Público, nem no controle de constitucionalidade do Judiciário, não obstante notória invasão dos regimes fundiários constitucionais, invertendo princípios de direito – sociais, agrários e fiscais-financeiros.
Por razões didáticas, atendendo também os limites físicos deste artigo, vou tratar apenas da pretensão mercantil estrita relativamente às terras de domínio público (Art. 20 da CF) e de destinação à produção agropecuária, com obrigatoriedade de atendimento a função social-ambiental (Art. 186).
Já no primeiro dia de governo, O Diário Oficial da União publicou a Medida Provisória n. 870/2019, de reorganização administrativa do governo federal (disponível na internet) e o Decreto n. 9.669/2019, de organização administrativa especificado Ministério de Agricultura e Pecuária, onde se destaca uma nova Secretaria Especial de Assuntos Fundiários a este Ministério subordinada.
A principal competência da nova estrutura criada (Secretaria Especial de Assuntos Fundiários), coloca sob jurisdição centralizada deste Ministério, quase todas as competências fundiárias dos diferentes regimes fundiários previstos na Constituição Federal; e não apenas das terras destinadas à produção agropecuária.
Terras étnicas – indígenas e quilombolas (arts. 231 e ADCT Art. 68)-, terras que pretensamente cumprem a função social e ambiental nos termos do Cadastro Ambiental Rural (CAR), terras griladas em espaço público; tudo fica sob jurisdição dessa Secretaria. Ficam aparentemente de fora os Parques e Reservas Naturais contínuos, ainda sob jurisdição do Ministério do Meio Ambiente.
Por outro lado, como a nova secretaria tem funções amplas de ‘regularização fundiária’ – a) geral; b) nas áreas de reforma agrária; c) na Amazônia Legal; d) de identificação, reconhecimento, demarcação e titulação de terras indígenas e quilombola; essas competências se espraiam também sobre as Áreas de Parques e Reservas Naturais (Art. 226 – CF), naquilo que tem a ver com grilagem de terra pública – as chamadas “intrusões’.
Praticamente não se fala em Reforma Agrária nas funções dessa Secretaria. Daí que a Instrução interna às Diretorias do INCRA (Memo. Interno n, 6/2019 às Superintendências regionais), para interromper quaisquer providências neste sentido, pode ser entendida.
A centralização administrativa das terras de domínio da União (Art. 20 da CF) se realizada para atender as finalidades explicitas dos regimes legítimos constitucionalmente: a) das terras destinadas à produção (Art. 286 – função social e ambiental;) b – das terras étnicas destinadas a reprodução de culturas ancestrais (Art. 231 – Índios e ADCT Art 68. – Quilombolas); e dos Parques e Reservas Naturais contínuos – destinados à reprodução dos biomas (Art. 226); faria todo sentido enquanto estrutura administrativa autônoma – Ministério ou Secretaria Especial da Presidência da República. Mas o que temos é algo completamente distinto.
Se fizermos uma leitura atenta das funções ou competências da nova Secretaria, das reiteradas declarações do novo Secretário Sr. Luiz Nabhan, ex-Presidente da UDR e do Próprio Presidente eleito, veremos que há um propósito muito claro de colocar todo o patrimônio fundiário nacional à disposição do mercado privado, previamente legalizado das muitas irregularidades que o contaminam de ‘insegurança jurídica. Daí que, se estrutura essa nova Secretaria Especial como uma espécie de grande cartório do Poder Executivo, para emitir certificados de ‘regularização fundiária’, ‘titularidade patrimonial’ e um sem número de outras papeis e certificados de direito fundiário às muitas formas de grilagem de terras públicas pré-existentes e outras tantas que venham a partir de agora imitá-las.
O poder regulatório centralizado nesta Secretaria e a disposição prévia de alienar patrimônio, legalizar grilagem, eliminar mediações administrativas de outras agências regulatórias específicas – FUNAI, INCRA, IBAMA- Inst. Chico Mendes, Fundação Palmares, SPU- têm a pretensão de instituir de fato o regime da ‘terra mercadoria’ como outra qualquer, mediante emissão e reconhecimento de titularidades dessa autoridade, sob os escombros da ordem jurídica pré-existente. E esse suposto poder regulatório é também de transferência de patrimônio físico e renda fundiária, medidos a partir de centenas de milhões de hectares- o tamanho do patrimônio fundiário da União (Art. 20) em ‘terras devolutas’, “Parques e Reservas” e Terra Indígena”, segundo o IBGE, além, evidentemente dos ‘assentamentos de Reforma Agrária’, marcados para desaparecer desde o governo Temer.
O passo seguinte dessa estratégia de privatização integral é a internacionalização do mercado de terras, como por sinal já o declara o Sr. Luiz Nabhan, ainda cauteloso por conta da não aceitação da tese pelos seus colegas militares.
Todo esse enredo de obscurantismo não significa que vá acontecer como propõem e esperam os seus protagonistas. Há nele implícito uma caudal de violência sem paralelo contra situações de direito já estabelecidas, contra populações tradicionais e contra a própria natureza, daí incluídas as populações urbanas. Mas é preciso explicitar e desnudar os intentos malignos em gestação avançada, protegidos por muitos blefes, operações de desvio de atenção e omissão dos Poderes de Estado, ainda encarregados de zelar pela moralidade administrativa e a ordem constitucional.
* Guilherme Delgado é doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Trabalhou durante 31 anos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.