A NOTA DO EXÉRCITO – Uma apologia à ditadura do terror

Por Emir Sader, Fonte Agência Carta Maior

O Brasil não contou, ao contrário da África do Sul, com um processo de busca da verdade sobre o que aconteceu durante a ditadura militar, para só então promover a anistia. O movimento sul-africano, dirigido pelo bispo Desmond Tutu, submetia a anistia à participação na investigação do que havia ocorrido durante a ditadura do “apartheid”, com a consciência de que somente a verdade pode promover a reconciliação.

A revelação das fotos de Vladimir Herzog – apenas uma parte das humilhações e sofrimentos impostos pelos torturadores, membros dos corpos armados e das forças militares brasileiras, dirigidas pelos governantes e políticos da ditadura aos que resistiram ao regime de opressão imposto pela força ao país – provocaram a publicação do mais acintoso documento político que o Brasil conhece desde o fim do regime ditatorial.

Nesse documento do Exército se afirma, entre outras coisas, que:

1) A resistência à ditadura militar atuava “a mando de conhecidos centros de irradiação do movimento comunista internacional”, reavivando as mentiras da “guerra fria” e da “doutrina de segurança nacional”, pretexto para desqualificar todo movimento popular como “vírus externos inoculado no organismo nacional”, conforme expressão daquela doutrina – essa sim, elaborada pelos doutrinários do governo norte-americano e propagada na Escola das Américas, que formou a tantos torturadores que operaram no Brasil.

2) Diz que esse movimento “pretendia derrubar, pela força, o governo brasileiro legalmente constituído”. Se a nota se refere ao governo de João Goulart, tem razão ao afirmar que era “legalmente constituído”, tendo sido derrubado pelos golpistas militares. Se se refere aos governos militares instaurados pelo golpe, se equivoca ao dizer que era um governo “legalmente constituído”, porque ele derrubou um presidente legalmente eleito e impôs governos pela força da baionetas.

3) O documento diz mais de uma vez que o “Exército Brasileiro, obedecendo ao clamor popular” (…). Isso contradiz não apenas as manifestações populares contra o golpe e a favor do governo de João Goulart, como as próprias pesquisas do Ibope, reveladas apenas mais recentemente, que demonstram o amplo apoio popular de que aquele governo gozava. Militares não são apropriados para dizer que “há clamor popular”, porque senão teriam se retirado do governo tão logo ficou claro que o “clamor popular” gritava pelo fim da ditadura militar. Tiveram de ser derrotados dentro das suas próprias leis discricionárias, para que se afastassem.

4) Autoproclamar-se “força de pacificação” é um escárnio, especialmente depois das reveladas e comprovadas denúncias do livro “Tortura nunca mais”, e de tudo o que o movimento batizado com esse nome, além de outras entidades, personalidades e familiares revelam ao país. A “pacificação” dos cemitérios, buscada pelos golpistas, não foi conseguida pela ação da resistência democrática.

5) A “normalidade” retomada pelo país se deu graças às forças democráticas e apesar da resistência dos golpistas, que pretendiam impor um regime blindado permanente ao país, conforme os planos da “transição democrática” dos ideólogos da ditadura.

6) Chamar a tortura, o seqüestro, o fuzilamento e outras brutalidades cometidas pela ditadura de “legítima resposta” é tentar legalizar os métodos brutais que o governo Bush e sua doutrina militar colocam em prática; e chamar-se a si mesmos de “forças legais”, depois que se apoderaram do poder pela força, revela a visão de “democracia” e de “legalidade” que têm os espírito golpistas sobreviventes no Exército.

7) O uso de sujeitos ocultos – como “sentiu-se a necessidade” – mal esconde que era um comando militar que se reivindicada espuriamente o direito de falar em nome do país, quem mandava no Brasil.

8) O movimento golpista não criou as condições para um “Brasil novo”, mas truncou um processo de democratização econômica e social, impondo os interesses do arrocho salarial, da abertura ao capital estrangeiro, da ditadura do grande capital, pelo qual o Brasil paga até hoje um preço muito caro.

9) Revelando que não se arrependem de nada que fizeram, os militares dizem que apenas porque mudou a situação política é que “a estrutura” – eufemismo para a brutal máquina de terror criada por eles contra o povo brasileiro – “criada tornou-se obsoleta e desnecessária”, deixando claro que, se julgarem que novas condições demandam de nova essa “estrutura”, tão benéficas a seus olhos foram suas ações, que voltariam a apelar para ela.

10) Depois de todas essas falsidades, o documento ainda tripudia sobre as vítimas da ditadura e seus familiares, tentando passar a idéia de que, porque eles, arbitrariamente, destruíram os documentos comprobatórios das barbaridades que eles cometeram, esses crimes não existiram, nem sequer as mortes. Escarnecem das vítimas e dos seus familiares, assim como da consciência democrática dos brasileiros.

Essa nota tem que ser repudiada por todos os democratas existentes no Brasil, de governos a cidadãos, de entidades civis a movimentos sociais, enfim, por todos os que mantêm a capacidade de se escandalizarem diante de quaisquer injustiças cometidas. Seus autores e autoridades coniventes tem de ser exemplarmente punidos e afastados, se quisermos manter minimamente a dignidade nacional.

A generosidade da democracia – ou sua incompetência – não apurando e punindo devidamente os crimes da ditadura, permite que ocorram essas manifestações e que políticos, militares, ex-militares, órgão da imprensa que foram coniventes com a ditadura, empresários que se valeram do regime de terror para enriquecer, sobrevivam na vida política, econômica e jornalística do Brasil e possibilitem uma manifestação como essa nota do espírito golpista sobrevivente no Brasil.

Veja abaixo a nota do Centro de Comunicação Social do Exército na íntegra:

“1. Desde meados da década de 60 até início dos anos 70 ocorreu no Brasil um movimento subversivo, que, atuando a mando de conhecidos centros de irradiação do movimento comunista internacional, pretendia derrubar, pela força, o governo brasileiro legalmente constituído.
À época, o Exército brasileiro, obedecendo ao clamor popular, integrou, juntamente com as demais Forças Armadas, a Polícia Federal e as polícias militares e civis estaduais, uma força de pacificação, que logrou retornar o Brasil à normalidade. As medidas tomadas pelas Forças Legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo, optaram pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e desencadear ações criminosas.

Dentro dessas medidas, sentiu-se a necessidade da criação de uma estrutura, com vistas a apoiar, em operação e inteligência, as atividades necessárias para desestruturar os movimentos radicais e ilegais.

O movimento de 1964, fruto de clamor popular, criou, sem dúvidas, condições para a construção de um novo Brasil, em ambiente de paz e segurança. Fortaleceu a economia, promoveu fantástica expansão e integração da estrutura produtiva e fomentou mecanismos de proteção e qualificação social. Nesse novo ambiente de amadurecimento político, a estrutura criada tornou-se obsoleta e desnecessária na atual ordem vigente. Dessa forma, e dentro da política de atualização doutrinária da Força Terrestre, no Exército brasileiro não existe nenhuma estrutura que tenha herdado as funções daqueles órgãos.

2. Quanto às mortes que teriam ocorrido durante as operações, o Ministério da Defesa tem, insistentemente, enfatizado que não há documentos históricos que as comprovem, tendo em vista que os registros operacionais e da atividade de inteligência da época foram destruídos em virtude de determinação legal. Tal fato é amparado pela vigência, até 08 de janeiro de 1991, do antigo Regulamento para a Salvaguarda de Assuntos Sigilosos (RSAS), que permitia que qualquer documento sigiloso, após a acurada análise, fosse destruído por ordem da autoridade que o produzira, caso fosse julgado que já tinha cumprido sua finalidade.

Depoimentos divulgados pela mídia, de terceiros ou documentos porventura guardados em arquivos pessoais não são de responsabilidade das Forças Armadas.

3. Coerente com seu posicionamento, e cioso de seus deveres constitucionais, o Exército brasileiro, bem como as forças co-irmãs, vêm demonstrando total identidade com o espírito da Lei da Anistia, cujo objetivo foi proporcionar ao nosso país um ambiente pacífico e ordeiro, propício para a consolidação da democracia e ao nosso desenvolvimento, livre de ressentimentos e capaz de inibir a reabertura de feridas que precisam ser, definitivamente, cicatrizadas. Por esse motivo considera os fatos como parte da história do Brasil.

Mesmo sem qualquer mudança de posicionamento e de convicções em relação ao que aconteceu naquele período histórico, considera ação pequena reavivar revanchismos ou estimular discussões estéreis sobre conjunturas passadas, que a nada conduzem.”