Mudança de poder na agricultura
Por Carlos Walter Porto-Gonçalves
O debate a respeito dos transgênicos e da mudança climática global demonstra que a ciência está cada vez mais politizada, o que torna ainda mais necessária a exigência da precisão conceitual. Assim, devemos deixar de lado o conceito de OGM (organismo geneticamente modificado), que é tudo o que há na evolução das espécies, dentro de um processo que se dá na natureza sempre por modificação genética não intencional. Cultivares são criações humanas co-evoluindo com processos naturais por tempos longos.
O que está em debate hoje não são os OGMs, mas os OLMs (organismos em laboratório modificados), em que o processo de criação não se dá de modo livre na relação da sociedade com a natureza, mas a partir de laboratórios cada vez mais ligados ao mundo financeiro e industrial. Não estamos mais diante da agricultura tradicional, mas de negócios que operam no campo como agronegócio -forma como o complexo técnico-científico-empresarial quer se autodenominar.
A partir de 1945, com o uso da bomba atômica, quando a relação entre o conhecimento científico e o poder, por meio da guerra, ficou por demais explícita, a ciência tem se tornado um assunto sério demais para ficar nas mãos dos cientistas. Mais recentemente, essa relação vem se tornando mais banal ao chegar mais perto do nosso cotidiano.
A relação entre ciência e poder precisa ser levada em conta por exigência da própria ética, na medida em que tem implicações na natureza da produção do conhecimento, sobretudo, mas não exclusivamente, ante as condições materiais e de financiamento. As parcerias entre o Estado e as empresas, cada vez mais comuns, têm colocado novas e complexas questões, como o caráter público do conhecimento, que se traduz na exigência de publicação, e o caráter privado da instituição empresarial, que exige a proteção sigilosa do conhecimento e seu patenteamento.
A produção de conhecimento num setor fundamental para a existência humana muda de lugar com os OLMs, já que diz respeito à reprodução energético-alimentar da nossa espécie, a agricultura e a criação de animais. Estamos assistindo, com o deslocamento da produção de cultivares para os OLMs, à mudança do “locus” de poder, que passa dos campos e dos camponeses e dos mais variados povos originários para os grandes laboratórios do complexo técnico-científico-empresarial. Enfim, mais que uma revolução tecnológica, estamos ante uma mudança nas relações sociais e de poder por meio da tecnologia.
Com a recente onda pela expansão da monocultura visando a produção de combustível (etanol e diesel de origem vegetal), surge um novo complexo de poder técnico-científico-industrial-financeiro. Isso vem se configurando com a associação de empresas automobilísticas ao ramo da biotecnologia, industrializando a agricultura e submetendo cada vez mais o destino não só das plantações e dos povos originários e camponeses mas também de toda a humanidade aos desígnios de meia dúzia de empresas.
A DuPont se associou à Pionner Hi-Bred (sementes) e à British Petroleum. A Toyota se une à British Petroleum no Canadá para produzir etanol. A Volkswagen acaba de fazer uma parceria com a ADM (alimentos). A Royal Dutch Shell se lança na produção de óleo carburante, e a Cargill, na produção de óleo diesel.
O melhor exemplo disso é a aliança dos “agronegociantes” brasileiros com o setor dos combustíveis fósseis dos EUA, consagrada com a criação da Associação Interamericana de Etanol, que tem como seus principais dirigentes o ex-governador da Flórida, Jeb Bush, e o ex-ministro da Agricultura do governo Lula, Roberto Rodrigues.
As conseqüências do que está em curso são bastante graves, haja vista que, desde o século 19, os combustíveis fósseis foram colocados à disposição da produção de alimentos (máquinas a vapor nos tratores e nas colheitadeiras, por exemplo).
Atualmente, é a agricultura que se coloca a serviço da máquina a vapor para dar sobrevida a um modo de vida sabidamente insustentável do ponto de vista ecológico e que tende a agravar a injustiça social. A diversidade cultural está ameaçada, e tudo indica que o destino da humanidade e do planeta dependerá da solução dessa luta, que, cada vez mais, vem exigindo a atenção de todos.
CARLOS WALTER PORTO-GONÇALVES , 58, é doutor em geografia pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e coordenador do programa da pós-graduação da UFF (Universidade Federal Fluminense). É autor de “Globalização da Natureza e a Natureza da Globalização”.
Fonte: Folha de S. Paulo, quinta-feira, 01 de novembro de 2007