O lado do barão
Por Blasco Miranda de Ourofino
A televisão tem mostrado repetidas vezes um breve vídeo feito desde um helicóptero da Polícia Militar de São Paulo onde aparece um trator atropelando alguns pés de laranjeira, no interior paulista. A ação é atribuída a militantes do MST, que ocuparam a propriedade de cinco hectares de laranjais e estavam limpando uma área para fazer roças de milho e feijão, para subsistência do acampamento Sem Terra, próximo dali, na região de Bauru, a cerca de 320 km de São Paulo.
A área de laranjais de cinco hectares está localizada numa imensa gleba de 10 mil hectares e pertence à União federal. Foi grilada (invadida) pela empresa Sucocítrico Cutrale Ltda., de propriedade da família Cutrale, oriundos da Sicília, sul da Itália, há muitos anos. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) já teria se manifestado em relação ao conhecimento de que as terras são realmente da União, mas nenhuma providência legal foi tomada pelo órgão federal.
Segundo a Folha, edição de hoje, “a Cutrale, defendida com veemência por deputados e senadores depois de ter visto um de seus laranjais destruído pelo MST, injetou R$ 2 milhões em campanhas de congressistas nas eleições de 2006”.
A revista Veja, em maio de 2003, publicou matéria com chamada de capa sobre a empresa Cutrale. Para a insuspeita revista da família Civita, “o brasileiro José Luís Cutrale e sua família detêm 30% do nercado global de suco de laranja, quase a mesma participação da Opep no negócio de petróleo”.
Assim, a Cutrale não é cachorro pequeno, como pode parecer a quem não conhece a sua história, suas conquistas e seus feitos. É Preciso, pois, contar um pouco desses fatos, para que o senso comum não pré-julgue a partir das imagens do vídeo da PM paulista (ou da própria Cutrale).
A partir deste parágrafo, as informações que passaremos foram extraídas da Veja, edição 1802 (14 de maio de 2003). Ninguém desconhece a marca direitista e conservadora do semanário da Abril, portanto, insuspeitos de estarem distorcendo informações sobre um player agressivo do nosso capitalismo tupinambá, como veremos.
A produção mundial de laranjas e derivados se reduz a duas regiões pontuais do globo terrestre, interior de São Paulo, no Brasil, e interior da Flórida, nos Estados Unidos. Cerca de 70% do suco consumido no mundo é plantado e industrializado por brasileiros (números conservadores de 2003).
A Cutrale vende suco concentrado para mais de vinte países, entre os quais os Estados Unidos, todos os da Europa e a China. Seus clientes são grandes companhias do padrão da Parmalat, da Nestlé e da Coca-Cola, dona de uma das marcas de suco de laranja mais populares nos Estados Unidos. O principal segredo do negócio consiste em adquirir fruta a um preço baixo – preço de banana, brincam os fornecedores –, esmagá-la pelo menor custo possível e vender o suco a um valor elevado – informa a Veja.
Em 2001, ainda no governo FHC, a Receita Federal se interessou pela questão enigmática da altíssima lucratividade da Cutrale (nos anos 80, a empresa teve taxas de retorno na ordem de 70%, um fenômeno raro) e teve dificuldade em analisar as contas do grupo. Fiscais de Brasília e São Paulo procuraram entender como a Cutrale ganha tanto dinheiro. Não localizaram nenhuma irregularidade. Uma autoridade da Receita relatou a Veja que a estratégia para elevar a lucratividade do grupo passa por contabilizar uma parte dos resultados por intermédio de uma empresa sediada no paraíso fiscal das Ilhas Cayman. Com isso, informa a autoridade da Receita, a Cutrale conseguiria pagar menos imposto no Brasil. Trata-se de um mecanismo legal. Foi o que a Receita descobriu ao escarafunchar as contas da organização da família Cutrale.
A agressividade gerencial da família Cutrale é uma lenda no interior paulista. Os plantadores de laranja no Brasil têm poucas opções para escoar a produção. Há apenas cinco grandes compradores da fruta e Cutrale é o maior deles. Por essa razão, acabam mantendo com o rei da laranja uma relação que mistura temor e dependência. Por um lado, precisam que ele compre a produção. Por outro, assustam-se com alguns métodos adotados por Cutrale para convencê-los a negociar as laranjas por um preço mais baixo. Produtores ouvidos por Veja afirmam que a família Cutrale costuma fazer enorme pressão para conseguir preços melhores na fruta ou mesmo adquirir fazendas. “Empregados deles nos visitavam e queriam que a gente vendesse nossa propriedade. Do contrário diziam que seríamos prejudicados na safra seguinte”, afirmou um produtor que passou pela experiência de negociar com os Cutrale. Outro fazendeiro relata história semelhante, pois também foi procurado para vender sua fazenda de laranja. “Antes de eu ser abordado, minha fazenda foi sobrevoada algumas vezes por um helicóptero da companhia”, diz.
Outra reclamação comum feita a Veja por produtores diz respeito aos termos de alguns contratos de compra de laranja. No ano 2000, 200 produtores acionaram em bloco a Cutrale. Acusavam-na na Justiça de descumprir um contrato pelo qual a empresa se comprometia a receber 5 milhões de caixas de laranjas. Segundo os produtores, nos dias em que eles tentaram fazer a entrega, os portões estavam fechados e a laranja começou a estragar. Os produtores quiseram ser ressarcidos pelo prejuízo, mas a Cutrale alegava que não lhes devia nada, já que não havia recebido a fruta. Os produtores receberam uma liminar para entregar o produto. Só depois disso a Cutrale aceitou a encomenda. “É difícil conseguir bons preços tratando com alguém que pode dizer não até sua laranja apodrecer”, conta um produtor que por razões óbvias prefere não se identificar.
Essa linha dura já rendeu à Cutrale discussões legais por formação de cartel. De 1994 para cá [2003], Cutrale já foi alvo de cinco processos no Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade, a autarquia encarregada de preservar a concorrência. Ele não estava sozinho no caso. Foi investigado juntamente com outras grandes indústrias do setor. Jamais sofreu uma punição. Num desses processos, duas associações de produtores de laranja denunciaram ao Cade que Cutrale e outras indústrias estavam se reunindo para combinar preços, o que prejudicava os plantadores. O desfecho do caso foi amigável. As empresas assinaram um “termo de compromisso de cessação das irregularidades” com os fazendeiros, comprometendo- se a não se reunir para organizar preços. O Cade decidiu que as empresas de suco de laranja não poderiam se organizar dessa forma.
Em vários aspectos, a indústria de suco de laranja lembra as empreiteiras. Além de ser um mercado concentrado nas mãos de poucos gigantes, os dois setores mantêm uma longa história de dependência em relação aos governos.
*Blasco Miranda de Ourofino é médico aposentado, octogenário, estudioso dos problemas sociais, econômicos e politicos de seu e outros paises.