“Um dos nossos principais desafios é a unidade entre campo e cidade”
Do Diagonal
Rosana Fernandes, da coordenação nacional do MST, analisa a Reforma Agrária no Brasil e os principais desafios para a construção de alianças políticas no campo e na cidade.
DIAGONAL: Como o MST avalia a conjuntura política brasileira atual?
ROSANA FERNANDES: O contexto de luta de classes no Brasil continua cada dia mais forte, especialmente desde os anos 90, quando o então presidente Collor de Mello iniciou o processo de privatizações que depois continuou Fernando Henrique Cardoso. A chegada de Lula à presidência supôs uma conquista da classe trabalhadora. No entanto, a esperança que o povo organizado do campo e da cidade tinha, se esfumaçou quando a política governamental deu continuidade ao projeto neoliberal, incentivando mais ainda a especulação das empresas, sob o domínio do capital financeiro internacional. No caso do campo, havia se comprometido a levar a cabo a Reforma Agrária. Mas estamos chegando ao final do segundo mandato e os assentamentos criados foram conquistados mediante a luta permanente. A Reforma Agrária prometida se transformou em mero discurso. Ao mesmo tempo, as grandes empresas nacionais e internacionais estão monopolizando mais terra para monoculturas de exportação (cana, eucalipto, pino, soja…), sem falar das grandes áreas de experimentos com transgênicos, de soja e milho. Tudo isto apoiado com ajudas fiscais, para continuar explodindo os bens de nosso país.
Como vocês vêem o futuro eleitoral no Brasil?
É preciso ter uma visão clara do processo eleitoral de 2010. Há muitas especulações sobre possíveis candidaturas, tanto de extrema direita como da esquerda. O Partido dos Trabalhadores, a esquerda governante, mantém o propósito de garantir um sucessor para Lula. No entanto, a direita se está articulando com força para evitá-lo. Achamos que o processo eleitoral deve ser entendido como uma estratégia dentro do projeto de transformação social que queremos. Podemos acumular forças conquistando algum governo, seja municipal, estadual ou federal, mas sem a pretensão de que seja aí onde se resolva o problema da classe trabalhadora. Aproveitaremos o momento eleitoral para politizar o debate e evidenciar um projeto popular para o Brasil, construído por várias forças da esquerda.
Em que nível de desenvolvimento se encontra a Reforma Agrária?
No Brasil não existe política de Reforma Agrária. O que existiu foram políticas de assentamentos, como resposta à pressão que os movimentos sociais fazem para que o governo federal adquira latifúndios, através da compra direta ou desapropriações. A luta pela terra é uma constante na história brasileira. Entendo que só a conquista da terra não resolve o problema dos agricultores, é necessário que haja uma política de Reforma Agrária na qual se garantam os subsídios para a produção, crédito para infra-estrutura, moradia digna, educação, saúde, ócio… Um conjunto de questões necessárias para que uma família possa viver na terra conquistada.
Como avaliam as jornadas de luta que organizaram no mês de agosto em todo o país?
Foi outro passo importante por recolocar a questão da Reforma Agrária no debate público, comprometendo o governo. Houve lucros políticos importantes, como a desapropriação de uma área emblemática do estado de Minas Gerais, na qual tinham sido assassinados cinco companheiros, a fazenda Alegria.
Ante o panorama mundial de deterioração ambiental, que dificuldades e linhas de trabalho têm para fomentar a agroecologia?
Esta é uma questão muito complexa. É necessário entendê-la dentro de todo um projeto de Reforma Agrária popular que estamos debatendo, no marco geral da relação do ser humano com a terra, com todas as formas de vida. É um debate que, em primeiro lugar, cada companheira e companheiro necessita manter na sua própria consciência, já que fomos formados na visão capitalista de exploração dos outros seres e da natureza. É necessário desconstruir alguns vícios e reconstruir novos valores. Outro elemento é a formação e capacitação técnica na linha agroecológica, que é preciso intensificar, especialmente formando jovens agricultores para poder transformar a idéia em prática nas áreas de assentamentos. Também o próprio governo deveria criar políticas de incentivo para este tipo de produção, na agricultura familiar e camponesa.
É freqüente escutar notícias sobre a violência policial nas favelas. Menos freqüente é ter notícias sobre a repressão no campo. Que tipos de violência sofrem as pessoas sem-terra?
A primeira violência é a negação do direito à terra, garantido na Constituição. A partir daí, a violência chega por meio das forças repressoras do Estado contra quem busca, mediante a organização social, exercer esse direito. Todos os movimentos sociais sofrem de alguma maneira violência institucional. O MST, desde sua origem, sofre violência direta das milícias armadas privadas do latifúndio ou da própria polícia quando despeja os Sem Terra dos latifúndios ocupados. Se falarmos de violência física, registramos altos índices de mortes, massacres de trabalhadores… Mas existe também uma violência psicológica, para evitar a organização popular. É a satanização do movimento organizado, tachando de baderneiro quem faz parte dele. Este tipo de violência é feita principalmente pelos meios de comunicação de massa. Além disso, sofremos a criminalização dos movimentos sociais e de seus dirigentes. Agora está tramitando no Senado e na Câmara federal uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra o MST para impossibilitar qualquer colaboração com instituições governamentais em favor dos trabalhadores.
Como vocês tratam as relações com os movimentos sociais urbanos?
Um dos grandes desafios que temos como classe trabalhadora brasileira é a unidade entre campo e cidade. De fato, o MST está construindo relações políticas com diferentes movimentos urbanos. Achamos que são grandes defensores da luta pela terra, especialmente as centrais sindicais. Também é complexo falar sobre isto, porque no Brasil há uma divisão enorme entre as organizações de trabalhadores. No campo, por exemplo, existem pelo menos 90 movimentos sociais, e nas grandes cidades aproximadamente sete centrais sindicais, além de sindicatos e movimentos autônomos.
Que linhas de ação o MST têm previstas?
São muitas e em diferentes frentes. Em primeiro lugar, construir o Projeto Popular para o Brasil. Para isso, defendemos não só a democratização da terra, mas também um novo modelo de agricultura que produza alimentos saudáveis para o povo, cuide das sementes e substitua os agrotóxicos pela agroecologia e a produção cooperativa. Outra luta é elevar o grau de escolarização no campo, desde a infância aos cursos de ensino superior. Ampliar a força social do Movimento em número e em aumento da consciência política e ideológica é outra linha, nos articulando com a classe trabalhadora da América Latina – especialmente na construção da Via Campesina Internacional.
Quais são para ti os motivos para a esperança?
Gostaria de responder a esta pergunta com um poema de D. Pedro Casaldáliga, chamado “Confissões do latifúndio”: Por onde passei/ plantei a cerca farpada/ plantei a queimada/ Por onde passei plantei a morte matada/ Por onde passei matei a tribo calada/ a roça suada/ a terra esperada… Por onde passei/ tendo tudo em lei/ plantei o nada. Os motivos para a esperança são os contrários às Confissões do latifúndio de Casaldáliga: a terra para os sem-terra, o cuidado à natureza, o respeito às etnias, os alimentos saudáveis… plantar a vida.
Publicado em 23 de outubro de 2009