Ditadores e torturadores verão publicada a história das suas maldades

 

Por Jacques Távora Alfonsin*


A Comissão Nacional da Verdade e as Comissões estaduais estão ultimando os seus relatórios. Quem humilhou, torturou, matou e fez desaparecer brasileiras/os inconformadas/os com a ditadura implantada no país pelo golpe militar de 1964, verá publicada a história das suas maldades.

 

Por Jacques Távora Alfonsin*

A Comissão Nacional da Verdade e as Comissões estaduais estão ultimando os seus relatórios. Quem humilhou, torturou, matou e fez desaparecer brasileiras/os inconformadas/os com a ditadura implantada no país pelo golpe militar de 1964, verá publicada a história das suas maldades.

Um dos efeitos notáveis dessa violência toda, com o qual ela certamente não contava, foi o recrudescimento do poder das organizações populares de resistência contrária ao regime militar, à medida que esse aumentava a repressão. A lei de segurança nacional e os inquéritos policiais militares, por mais que ampliassem as suspeitas e os indiciamentos, não conseguiam conter o ímpeto libertário do povo, crescendo em diversos pontos do Brasil.

No Rio Grande do Sul, uma prova histórica desse fato deu-se na chamada Encruzilhada Natalino, região de Ronda Alta e Sarandi. Um contingente significativo de famílias sem-terra acampou naquela encruzilhada, no início da década de 80 do século passado, disposto a reivindicar o seu direito de acesso à terra, um bem indispensável à vida, e à reforma agrária prevista numa lei promulgada pela própria ditadura então vigente (o Estatuto da Terra).

O Estado terrorista de então escalou o major Curió para expulsar aquele povo pobre, do tal militar recebendo a promessa de que “em um mês”, o trabalho estaria concluído. Não foi por falta de empenho. Ele fez de tudo para sufocar aquele sinal visível de rebeldia contrária aos desmandos oficiais e às arbitrariedades violadoras dos direitos humanos do regime imperante.

Primeiro, tentou seduzir. Conseguiu dividir a multidão, com promessa de terra farta no Mato Grosso (Lucas do Rio Verde) e quantas/os caíram nessa armadilha, começaram a retornar, tristes e envergonhadas/os de terem sido enganadas/os. Depois, como essa tática não estava dando certo, passou a revelar o verdadeiro objetivo da sua missão repressiva. Apertou o cerco, restringiu ao máximo o direito de ir e vir, entrada e saída de acampadas/os, visitas de ONGs e outras organizações interessadas em dar apoio ao grupo de gente cercada, levar comida e remédios.

Contou com apoios públicos e extraordinariamente poderosos de latifundiários, de grande parte da mídia conservadora e reacionária e, até, de alguns bispos tementes da “ameaça comunista”.   

Padre Arnildo Fritzen, irmãs Aurelia e Carminha, todavia, prosseguiam alimentando a fé e a disposição do povo em não ceder a qualquer pressão destinada a desmanchar o acampamento, reclamando terra no Rio Grande do Sul mesmo. Ao contrário dos bispos conservadores, receberam a ajuda de, entre outros, Dom Pedro Casaldaliga e Dom Tomás Balduino.  

Como no livro bíblico do Êxodo, a decisão comunitária daquele povo era se libertar do jugo da pobreza e da miséria que lhe era imposto pelo faraó de então, rumo à “terra prometida” por Deus, não a da subalternidade do regime militar, mas aquela que ele mesmo iria conquistar.    

Nascia ali uma das sementes mais fecundas do MST. Se o Estado de exceção contava assustar aquela gente pobre, espalhando todo o tipo de propaganda contrária, acusando-a de ser criminosa, aproveitadora e “’subversiva”, deu-se muito mal.

Em agosto de 1981, Curió reuniu a parafernália toda montada para intimidar o povo acampado e expulsá-lo da Encruzilhada Natalino, partindo para outros Estados onde a ditadura não contasse com a tenacidade heróica das/os acampadas/os em Natalino. Ele deve amargar até hoje a ironia com que o povo assistiu sua saída vexatória: “Em terra de quero-quero, curió não canta”.

Essa foi uma das derrotas mais humilhantes da ditadura no Rio Grande do Sul. Livres daquele cerco, as/os acampadas/os, graças a uma área vizinha à encruzilhada Natalino, adquirida pela CNBB (Nova Ronda Alta), saíram da beira da estrada e, desse novo lugar, partiram, em grupos organizados pelo MST, para diversos lugares do Estado, onde prosseguiram suas campanhas por reforma agrária e terra. Muitos assentamentos rurais, hoje existentes no Estado, devem sua radicação à essa prestação de serviço ético-política.

Encruzilhada Natalino repetiu a história de Davi contra Golias, atestando, conforme estão demonstrando agora as Comissões da Verdade, que  a repressão ditatorial da força contra movimentos sociais populares, acaba por acentuar, mais cedo ou mais tarde, a sua estupidez, desatino, despropósito e a sua desmoralização.

O que era para ser uma lição ministrada pela força às/aos acampadas/os de Natalino, acabou por demonstrar ao país e ao mundo, mais uma vez, que nem a superioridade do poder das armas é capaz de dobrar a dignidade humana, a luta por liberdade, terra, cidadania e democracia.

* Jacques Távora Alfonsin, advogado do MST, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.