Em contraste à política de ódio, mulheres do campo e da cidade semeiam resistência nas ruas de Brasília

As 3.500 participantes do I Encontro Nacional das Mulheres Sem Terra se juntaram às companheiras da cidade na marcha do Dia Internacional das Mulheres, em Brasília
Foto: Matheus Alves

Por Lizely Borges (Terra de Direitos), Thays Puzzi (Unicopas) e Juliana Barbosa (MST)

As longas vias da Esplanada, em Brasília (DF) foram coloridas, neste domingo (08), pela diversidade de vozes, bandeiras e origens. Marchantes em ato alusivo ao Dia Internacional das Mulheres, integrantes de diferentes movimentos populares e organizações sociais do Brasil e de fora trouxeram à capital federal cor e a reafirmação da urgência da efetivação dos direitos humanos. Em tempos no qual o ódio, a misoginia e a adoção de um modelo de desmonte social são práticas institucionais – em especial pelo Legislativo e Executivo, a alegria das mulheres marchantes contrasta com a sisudez dos tempos atuais.

integrante da Direção Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Ceres Hadich. Foto: Danielle Melo

O ato realizado nesta manhã reuniu mais de 5 mil mulheres e inaugura o conjunto de mobilizações nacionais realizadas em março. No dia 14 as ruas devem ser tomadas novamente pela denúncia dos dois anos do assassinato da vereadora Marielle Franco (Psol) e o motorista Anderson Gomes. Um pouco depois, no dia 16, o objeto das marchas é a denúncia do desmonte da educação, com uma greve nacional.

“O março, para nós, simboliza a inauguração de um período de lutas, como se fosse o desabrochar de uma primavera. A luta que as mulheres têm a capacidade de colocar como pauta serve como impulso para outras lutas”, aponta a integrante da Direção Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Ceres Hadich.

A presença no ato das mais de 3,5 mil trabalhadoras rurais participantes do I Encontro Nacional da Mulher Sem Terra colabora para um amplo diálogo entre campo e cidade. Para Hadich, esse diálogo se coloca como ainda mais urgente diante da retração dos direitos, como o aumento da miséria e do desemprego. 

Foto: Andressa Zumpano

“Neste período de tanta dificuldade, de necessidade de resistência e de tantos limites para a classe trabalhadora, conseguir se organizar e colocar suas pautas [durante o ato], a gente fazer um 8 de março bonito, massivo, simbólico, com conteúdo, mas também com luta, aqui, com mulheres Sem Terra, é bastante importante. A gente recoloca na pauta da sociedade brasileira a reforma agrária e as pautas das mulheres trabalhadoras brasileiras”, destaca. 

“Vivemos um desmonte da políticas de reforma agrária e as demais políticas sociais, depois de tantas lutas e conquistas feitas por mulheres. Esse governo quer nos silenciar, principalmente o povo do campo, e as mulheres ainda mais”, complementa a integrante da direção nacional do Movimento de Mulheres Campesinas (MMC), Mirele Diovana. 

Desmonte das políticas públicas e machismo 

O desmonte das políticas públicas destinadas para o combate à violência sofrida por mulheres é exemplar da pouca prioridade conferida à pauta pelo governo federal. No primeiro ano de mandato de Jair Bolsonaro (sem partido) a Secretaria da Mulher, órgão vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, empenhou R$ 5,3 milhões para investimento na execução de políticas. O valor contrasta, por exemplo, com o  total de R$130 milhões empenhados para a mesma política durante o penúltimo ano sob gestão de Dilma Rousseff, em 2015 (Portal da Transparência). 

Não apenas a baixa execução orçamentária revela sobre a política institucional do governo. As frequentes manifestações misóginas do presidente e dos parlamentares do campo conservador, como as dirigidas contra a jornalista Vera Magalhães, demonstram uma prática institucional de violência contra as mulheres. 

Foto: Lizely Borges

“Nós somos criminalizadas justamente porque gritamos pela liberdade das mulheres. Para que as mulheres possam fazer suas próprias escolhas”, aponta a militante do Assentamento Martir de Abril, Jane Cabral, localizado em Belém (PA). “Vir para as ruas é conseguir colocar em pauta a políticas para mulheres, mostrar para a sociedade isso e que nós queremos que essas políticas sejam retomadas. Vemos o aumento do feminicídio no Brasil inteiro. Aqui no Distrito Federal é um dos estados que mais mata mulheres”, denuncia a integrante da coordenação nacional do Levante Popular da Juventude, Katty Helen.

Nossa arma é da alegria, das cantorias, da cultura, da produção agroecológica”, diz Jane Cabral, trabalhadora Sem Terra.

Em novembro a Câmara Legislativa do Distrito Federal instaurou uma Comissão Parlamentar Inquérito (CPI) do feminicídio. O DF contabiliza 60 crimes de feminicídio apenas em 2019, um aumento de 27% em relação ao ano anterior, quando registrou 47 assassinatos de mulheres. “A gente sabe que as trabalhadoras rurais pegam na enxada e labutam junto com seus companheiros e quando elas trazem essa discussão para a cidade é para mostrar que no campo também existe feminicídio, mas que é silenciado”, relata a assessora parlamentar do deputado distrital Fábio Felix (Psol), Daniele Sanches. Félix é relator da CPI.  

Denúncias e as resistências reafirmadas pelas mulheres Sem Terra

Bandeiras, vassouras, colheres de pau, batuques e cantorias se misturaram aos gritos de ordem das mulheres Sem Terra. Denúncias e anúncios seguiram em fileira durante toda a marcha. As manifestações das mulheres Sem Terra foram organizadas em alas, com temáticas de forte presença nas suas vidas, como a reforma agrária popular e a contaminação da terra e alimentos pelos agrotóxicos.

Foto: Letícia Vieira

“Nós somos as bruxas que vocês não conseguiram matar. Queimaram muitas mulheres, mas nós estamos aqui. E nós estamos aqui para continuar a luta de todas essas mulheres”, reforçou Jane Cabral. A ala carregada de ancestralidade, trouxe a história daquelas que desafiaram e que desafiam o patriarcado. “Gritamos para que a gente possa ter vida. E o que nós queremos é viver uma vida de alegria, de amor e de poesia”, completou.

Foto: Matheus Alves

A busca por essa sociedade em que a mulher possa viver, de fato, em liberdade requer ainda mais resistência em tempos em que o próprio presidente da República reforça um discurso machistas, sexista e misógino. A ala “Ela quer dar” veio em protesto às falas machistas de Bolsonaro. “Ele tem várias falas machistas e preconceituosas e, por isso, nós decidimos fazer essa ala com esse nome. Se ela quer dar, qual é o problema?”, questionou Eliandra Fernandes, da Direção Nacional do MST pelo Espírito Santo.  

A certeza de que o patriarcado precisa ser destruído para que uma sociedade realmente livre possa nascer foi um dos sentimentos que moveu as milhares de mulheres que coloriram a capital do Brasil neste 8 de março. “Nós sabemos que para construir essa sociedade serão muitos calos nos pés de caminhada, muitas terras ocupadas. Aqui, para nós, é o corte do arame e a construção do dia de amanhã mais bonito, onde a gente seja livre para cantar e amar”, destacou Lucinea Duraes, do pré-assentamento Fábio Henrique Prado, na Bahia, e da Direção Nacional do MST. Trazendo o anúncio dessa nova sociedade, a ala “Nós que amamos a revolução resistiremos”, contou com muita alegria e beleza o mundo que as mulheres Sem Terra pensam para toda a classe trabalhadora.

“Um mundo onde a gente tenha uma alimentação saudável e com fartura para todos os trabalhadores e trabalhadoras. Um mundo onde a gente consiga distribuir as riquezas para que todas e todos tenham acesso a todos os bens. Que a gente tenha educação. Que a gente tenha comida. Que a gente seja livre para cantar e amar!”, diz Lucinea Duraes, do pré-assentamento Fábio Henrique Prado, na Bahia, e da Direção Nacional do MST.

Catarina Lima, do assentamento Egídio Bruneto, de Cuiabá (MT). Foto: Danielle Melo

Cada passo dentro da marcha representou um passo a mais contra esse sistema que reforça e promove práticas genocidas pelo agronegócio, estimula o feminicídio e oprime mulheres do campo e da cidade. “Em Mato Grosso, por exemplo, a cada dois, três dias, uma mulher é assassinada. É atacada e violentada”, relatou Catarina Lima, do assentamento Egídio Bruneto, de Cuiabá (MT). Ela que caminhava na ala “Os esfarrapados da pátria amada Brasil”, reafirmou a proposta de construção da Reforma Agrária Popular. “Estamos nesta batalha. Somos mulheres em luta semeando resistência”. 

Uma resistência ativa capaz de estremecer as estruturas. Levando nos punhos a agroecologia como uma das armas, as mulheres camponesas também denunciaram o uso abusivos de agrotóxicos. “Com a agroecologia, o alimento saudável, nós vamos conseguir avançar e fazer essa unidade entre campo e cidade acontecer”, observou Catarina.

Sob atual comando de Teresa Cristina (DEM-MS), ruralista ex-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) tem usado dos seus expedientes para avanço do registro de insumos químicos. Em um ano de governo de Bolsonaro, o Ministério liberou a marca recorde de 503 registros de agrotóxicos.

Unidade

Para a representante da Via Campesina Nacional, Etelvina Maria Masioli, a pluralidade de expressões presentes no ato demonstram a bem sucedida construção de unidade, de organizações conectadas pelo reconhecimento das pautas e lutas em comum. “Entendemos com muito mais força o momento histórico que estamos vivendo e a necessidade da construção da unidade, de encontrar os elos que nos unificam para enfrentarmos esse projeto de morte, enfrentarmos tanto ódio, o fascismo e enfrentar esse governo de tantos retrocessos”, destaca. Para ela a força do ato está também na diversidade presente. “A diversidade que nós temos só traz grandeza e riqueza porque cada movimento, cada organização, tem um acúmulo histórico”, complementa.


Foto: Wellington Lenon

Ainda que o ato contenha denúncias e memórias sobre as mulheres que tombaram – pela violência do Estado e da misoginia – para a liderança indígena Sônia Guajajara o tempo é de encontros na luta. “Estamos presentes porque o momento é de unidade. Unidade das lutas, das mulheres do campo e da cidade. Nós, indígenas, estamos juntas nesse processo de enfrentamento desse governo que só destrói, só viola direitos e que autoriza o genocídio indígena. Para nós é momento de luta”, destaca.