No centenário de Florestan Fernandes, MST celebra 15 anos da Escola Nacional

Para Florestan Fernandes só existe uma força capaz de transformar a sociedade brasileira, “o movimento político das classes trabalhadoras”

Escola de formação política está localizada em Guararema, no interior de São Paulo (SP) / Foto: Michele Gonçalves/Brasil de Fato

Por Solange Engelmann
Da Página do MST

Nesta quarta-feira (22), celebra-se o centenário de nascimento do intelectual e um dos grandes pensadores do povo brasileiro, Florestan Fernandes. Um dia depois (23), o MST comemora os 15 anos de fundação da Escola Nacional, que leva o nome do pensador.

Formado em Ciências Sociais, Florestan foi professor titular de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP). No exílio, durante a ditadura militar brasileira, lecionou nas universidades de Yale, Columbia e Toronto, nos Estados Unidos e Canadá. De volta ao Brasil, foi eleito deputado constituinte pelo Partido do Trabalhadores (PT), em 1986, reeleito para a Câmara, em 1990, até sua morte em 1995.

Como um pensador das classes trabalhadoras, desenvolveu uma visão sobre o Brasil e a sociedade brasileira fundamental para entender o contexto atual, de aprofundamento das desigualdades sociais. Isso porque Florestan foi parte da classe trabalhadora, fazendo da sua própria vida seu legado. Filho de uma migrante portuguesa que prestava serviços domésticos, começou a trabalhar aos seis anos como engraxate e exerceu várias outras ocupações para ajudar a sustentar a família. 

O sociólogo Florestan Fernandes.
Foto: Domínio Público

O integrante do setor de formação do MST, professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) – campus de São Mateus e colaborador da ENFF, Adelar Pizetta, explica que para Florestan só haveria uma força capaz de transforma a sociedade brasileira, “o movimento político das classes trabalhadoras”.

A inspiração no legado de Florestan resultou em um trabalho voluntário e auto organizativo realizado pelas mãos de mais de mil trabalhadores Sem Terra do MST, com o apoio de outros movimentos sociais e uma campanha internacional de arrecadação de recursos, com a participação do músico Chico Buarque, do escritor José Saramago e fotógrafo Sebastião Salgado. Assim, há 15 anos era inaugurada a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF).

Na concepção do pensador, o estudo deveria estar ligado sempre a uma forma de ação política para transformar a realidade e criar uma sociedade mais democrática. Segundo a equipe da Coordenação Política Pedagógica (CPP) da escola, desde sua fundação, a ENFF tem se tornado em espaço de formação política-ideológica e técnica para a classe trabalhadora brasileira, compreendendo a função transformadora da educação.

“A ENFF busca ampliar o acesso da classe trabalhadora ao estudo e aos conhecimentos dos quais é historicamente excluída. E vincular esses conhecimentos e saberes a um projeto de país, uma concepção de transformação social em prol dos excluídos”, afirma a equipe.

Em homenagem ao Florestan Fernandes, segundo o coordenador do setor de formação do MST, Geraldo Gasparin, a Escola Nacional busca recuperar o legado político-teórico do pensador sobre a realidade e projetar a perspectiva de uma revolução brasileira.

“A escola também se coloca como um desafio nesses 15 anos de formar quadros políticos com o compromisso que teve Florestan Fernandes. Estudar a realidade brasileira para propor as mudanças e um projeto socialista de sociedade”, explica Gasparin.

Casa de Artes Frida Kahlo / Foto: Michele Gonçalves/Brasil de Fato

Por ser um profundo conhecedor da dureza e dinâmica de exploração das classes trabalhadoras pelas elites, Florestan formulou várias contribuições às classes trabalhadoras brasileiras. Inclusive algumas atuais, que auxiliam na compreensão da lógica de desenvolvimento do capitalismo, as características da burguesia nacional, e as perspectivas históricas de luta, para criação de instrumentos que possibilitem as transformações estruturais na sociedade.

“Para Florestan, as lutas reivindicatórias são importantes e necessárias, mas insuficientes. É necessário saber quais as forças vivas e potenciais que podem levar adiante processos organizativos e de lutas autônomas, que apontem os caminhos da emancipação humana e, portanto, da revolução brasileira”, argumenta Pizetta.

Porém, as estratégias que orientam as lutas dependem de período histórico, em que as classes trabalhadoras necessitam criar mecanismos autônomos e independentes para o acúmulo de forças, formações de consciência crítica, investigação da realidade e elaboração de ações, horizonte em que a ENFF tem procurado contribuir nos últimos 15 anos.

Espaço de referência internacional


A ENFF foi fundada pelo MST em dia 23 de janeiro de 2005, localizada em Guararema, no interior de São Paulo.

A história da construção da Escola Nacional Florestan Fernandes

Após 15 anos a escola tem se transformado em referência para classe trabalhadora internacional, com a passagem de militantes e dirigentes de várias organizações populares de vários países. Abrigando cursos, que ocorrem em regime de alternância de até três meses e outros mais curtos.

O local conta com aulas e espaços formativos, ministrados por educadores e intelectuais voluntários de universidades públicas, profissionais parceiros e representantes de movimentos, organizações e partidos populares. E oferece formação em temáticas como questão agrária, realidade brasileira, luta de classes, marxismo, feminismo, entre outros.

Inspirada em Florestan e Paulo Freire, a ENFF pratica a pedagogia coletiva do pensar e fazer cotidiano em várias frentes. Essa prática educativa permeia desde o processo de busca e produção do conhecimento, manutenção dos espaços coletivos, mística, produção de alimentos. Desenvolve-se assim o método do trabalho coletivo, a pedagogia Sem Terra fundamentada na realidade do campo e do saberes populares, o diálogo e a troca de experiências.

Alojamentos dos militantes que estudam na ENFF, construído pelas mãos de mais de mil Sem Terra em 2005 / Foto: Michele Gonçalves/Brasil de Fato

Conforme, a equipe da CPP da ENFF, desse modo, a prática pedagógica da escola ultrapassa a simples apropriação da teoria e concentra esforços na aplicação do método de análise materialista histórico e dialético, com base na análise da realidade.

“O centro desse esforço dialético é voltado para a apropriação dos conhecimentos da história, da formação social do nosso país e seus abismos sociais, as quais só com as mudanças estruturais, feitas pelos trabalhadores auto-organizados, sob a unidade com os deserdados da terra e da cidade, a luta dos de baixo poderão garantir dignidade ao povo brasileiro”, afirma a CPP da ENFF.

Evidencia, portanto, como a ENFF busca manter viva a memória e a obra de Florestan Fernandes a partir das suas práticas de espaços formativos, educativos e na organização das vivências nos seus espaços coletivos.

Florestan Fernandes sempre lutou por justiça social, liberdade e igualdade. Foto: Arquivo MST

O integrante do setor de formação do MST e professor da UFES, Pizetta, destaca que entre as várias lutas de Florestan na sociedade brasileira, uma das principais foi pelo direito da classe trabalhadora ao acesso à educação pública e de qualidade. “Uma educação que ao criar a consciência crítica pudesse colocar os trabalhadores em uma posição ofensiva nas lutas de classes. Não era qualquer escola, nem qualquer educação, mas, aquela que ajudasse “os debaixo” a entrarem na arena e disputas políticas fazendo a história”, argumenta.

Inserção de militantes no processo formativo da ENFF


Com origem no MST do estado de Goiás, a militante Ana Lúcia Duarte hoje integra a coordenação operativa da escola, e relata que o processo formativo que experiencia no dia a dia da ENFF tem sido fundamental para sua capacitação em atividades cotidianas e na formação política.

“Todo o tempo aqui é formativo e abrange várias dimensões da vida humana, desde o estudo, a vivência da mística, os valores, as questões de gênero. Me possibilita ter uma abrangência maior de mundo, de concepção política, prática na vivência dos valores socialista e humanista e no trabalho coletivo”, pontua Ana.

No filme “Escola Nacional Florestan Fernandes na batalha de ideias”, temos uma apresentação das principais concepções no campo da formação política que a ENFF desenvolveu nos seus primeiros 10 anos de atividades, os desafios para a continuidade do processo formativo e o seu significado para a luta de classes.

A militante atua no MST há 18 anos, quando se inseriu no acampamento Chê Guevara, próximo a cidade de Crixás, em Goiás. No início de 2017, Ana se mudou para ENFF e atualmente integra a coordenação operativa da escola e a Brigada Apolônio de Carvalho, que reúne os trabalhadores responsáveis pelo funcionamento da escola.

Na visão de Ana Lúcia, a ENFF cumpre um papel importante ao ser um pilar na formação política ideológica de militantes, dirigentes e quadros das organizações populares, movimentos da classe trabalhadora do Brasil, da América Latina e do mundo. “O processo de formação está ligado ao projeto popular de transformação social, que se constrói a partir das experiências das organizações sociais e das ações concretas, possibilitando ao sujeito (coletivo) intervir na sua própria realidade e transformando-a”, defende ela.

Porém, quais os ensinamentos de Florestan Fernandes aos desafios das classes trabalhadoras na pandemia do Coronavírus?


No contexto atual de pandemia no Brasil, Gasparin e Pizetta concordam ao apontar que uma das principais contribuições da obra de Florestan traz justamente a necessidade de unidade e solidariedade de classe entre as classes trabalhadoras, do campo e cidade, para enfrentar o desgoverno brasileiro e a classe dominante, que tem aproveitado a crise sanitária para aumentar a exploração e piorar a vida dos mais pobres.

Foto: Arquivo MST

“Na história a classe dominante nunca se preocupou com os dilemas, os problemas, a vida do povo. Somente a classe trabalhadora poderá cuidar de si mesma e proteger-se transgredindo os interesses do capital. Isso significa também travar uma luta cotidiana e coletiva, para pressionar e exigir do governo políticas de enfrentamento e combate ao coronavírus”, analisa Pizetta.

Nesse cenário, a ENFF segue tendo fundamental importância no desenvolvimento de processos formativos e educativos com foco na realidade atual, aliando a teoria e a prática do cotidiano de luta dos trabalhadores do MST e da classe trabalhadora brasileira, para formação política e técnica crítica e elevação do nível cultural e da consciência popular.

“O espaço físico, pedagógico e o programa de formação da ENFF cumpre esse papel na atualidade, de ser um difusor, um espaço de produção de conhecimentos, mas sobretudo de formação política e ideológica, que instrumentalize a classe trabalhadora na construção de uma sociedade socialista”, conclui o coordenador do setor de formação do MST, Gasparin.

Ao organizar a formação política-ideológica dos militantes e dirigentes de movimentos, organizações e partidos populares das classes trabalhadoras brasileira, na concepção da equipe da CPP da ENFF, a escola viabiliza o sonho de Florestan de acesso ao estudo e ao conhecimento de forma democrática e de qualidade pelos trabalhadores e trabalhadoras, e cultiva a perspectiva de transformações estruturais na sociedade. “A escola materializa-se como um espaço possível de cultivar a práxis revolucionária e vivenciar os princípios e valores socialistas”, ensina a equipe da CPP.

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*Editado por Fernanda Alcântara