“A vida de Pedro permanece como um testemunho de denúncia”, afirma Pedro Tierra
Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST
Poucas pessoas teriam tanta legitimidade para esta homenagem a Dom Pedro Casaldáliga. Em um texto após a morte de Casaldáliga, o poeta Pedro Tierra fez um tributo ao companheiro lembrando que sua morte nestes tempos tão difíceis tem uma simbologia própria de um defensor da vida. “Assim fazem os profetas. Não permitem que palavra e gesto se distanciem. Testemunho na vida, testemunho na morte.”
E foram as palavras que os aproximaram durante a ditadura militar. Proibido de escrever, Tierra, enquanto preso político, usou um lápis e o lado interno de um maço de cigarros para compor seus primeiros versos. Conseguiu enviar os poemas para fora do presídio, publicados clandestinamente na Itália, e só publicados depois no Brasil, em 1979.
Sempre ao lado dos mais humildes, Cadaldáliga e Tierra escreveram juntos Ameríndia, morte e vida (disponível pela Expressão Popular), entre outras obras.
A Missa dos Quilombos, celebrada em 20 de novembro de 1981, que se transformou numa cerimônia de fé, comunhão, música e ritmo, foi criada por Dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra, com músicas de Milton Nascimento, para denunciar as consequências da escravidão e do preconceito no Brasil.
Neste 8 de setembro, é dia de celebrar a existência de Dom Pedro Casaldáliga, em um encontro que irá reunir amizades, familiares e artistas numa prosa com música, história e poesia sem fronteiras! A transmissão será feita via canal de YouTube e páginas de Facebook do CIMI, da CPT e MST. Confira abaixo a entrevista exclusiva com Pedro Tierra, que relembra esta parceria e legado.
No texto de homenagem “Pedro Passagem”, o você fala sobre a simbologia da morte de Pedro Casaldáliga em “resgatar-nos da indiferença que nos aprisiona” diante desta pandemia. Qual a leitura que você faz sobre essa banalização da morte de mais de 120 mil pessoas pela Covid-19 no Brasil?
Pedro Tierra – Quem banaliza a morte dos mais de 120 mil brasileiros é quem não perdeu nenhum familiar, amigo, companheiro, ainda. A pandemia chega cada vez mais perto de nós. Castiga sobretudo os mais pobres. Diante da indiferença criminosa do governo Bolsonaro. Para a mídia corporativa esses brasileiros que morrem diariamente vítimas do coronavírus são números apenas, não contam como gente. Como os jovens negros mortos pela Polícia Militar nas periferias do Brasil. Aqui e ali, ressaltam um morto com nome e sobrenome, com uma cara, um rosto. As dezenas de milhares têm como destino a vala comum, a estatística e o silêncio. Como escapar dessa indiferença: pela solidariedade, pelos gestos concretos de ajuda às vítimas do Covid-19, seja pela distribuição de alimentos como tem feito o MST, seja participando de campanhas de informação, de esclarecimento, de educação, ensinamentos de higiene. Temos que lutar contra esse mal tão contagioso quanto a Covid-19: a indiferença diante da dor do outro, do sofrimento do outro.
Em “Um par de sandálias para o peregrino”, você fala do primeiro encontro com Pedro Casaldáliga de forma poética. Qual a importância de Casaldáliga para história do país e para sua própria trajetória?
Penso que Pedro tratou, ao longo da vida, de três temas fundamentais para a vida dos trabalhadores do Brasil: o monopólio da terra, a escravidão dos negros e o extermínio dos povos indígenas. Esses três crimes – a apropriação indevida de um bem de todos, a terra, a escravização dos negros durante mais de 300 anos – são crimes continuados, são traços inseparáveis da história do nosso país, nesses cinco séculos. E não foram resolvidos até esse início da terceira década do século XXI.
Fiel à sua fé, Pedro não os tratou como um “tema de estudo”, mas como um compromisso de vida, ao lado dos pobres, lutou contra eles. A palavra de Pedro, a vida de Pedro permanecerão como um testemunho de denúncia enquanto a sociedade brasileira não der uma solução justa e generosa para esses três desafios. Quanto ao significado da presença de Pedro em minha vida, penso que ofereceu uma possibilidade concreta de participar das lutas em defesa dos trabalhadores do campo, dos povos indígenas, no período em que trabalhei no CIMI [Conselho Indigenista Missionário] e na CPT [Comissão Pastoral da Terra] e contribuir – com o trabalho de compor as Missas – para trazer para a pauta do país um tema interditado: o racismo, a chaga da escravidão que nos marca.
Como foi a experiência de conceber e escrever, em parceria com Pedro Casaldáliga, Martin Coplas e Milton Nascimento as obras Missa da Terra sem Males e Missa dos Quilombos?
Do ponto de vista humano um marco fundamental para um militante que deixava a prisão depois de cumprir uma longa pena. Tanto a Missa da Terra sem Males como a Missa dos Quilombos me levaram a uma pesquisa histórica sobre o massacre dos povos indígenas e a escravidão em Angola, Guiné, Benin, Moçambique, Congo.
Para fazer com que um povo profundamente religioso como o nosso se aproximasse desse drama social pelas portas de uma liturgia católica, mas profundamente aberta às expressões culturais dos povos indígenas e dos afro-brasileiros. A música de Martin Coplas é de uma sensibilidade ímpar e se serve dos instrumentos musicais andinos, dos pampas, do chaco para tocar os nossos corações. A composição do Milton para a Missa dos Quilombos assentada numa poderosa percussão que nos toma conta do peito quando ouvimos é um momento de afirmação da “metade negra do nosso rosto”, como escrevi numa apresentação, do texto. Foram ambas decisivas para meu mergulho no coração de nossa gente e para seguir escrevendo a poesia que escrevo.
E como você vê o legado dessas obras hoje? Qual a importância delas na atual conjuntura?
Penso que ambas contribuíram para “o Brasil conhecer o Brasil”… Num certo sentido podemos dizer que as Missas levantam um espelho onde podemos mirar nosso próprio rosto, diverso, generoso, pobre, belo, lutador. Creio que nesse momento em que os meios de comunicação tentam nos impor uma percepção negativa sobre nós mesmos, as Missas nos permitem dizer que o povo brasileiro não é essa calamidade e o gangsterismo que assaltaram o poder nos últimos anos. Pela indignação que despertam e pela esperança que anunciam, as Missas nos ajudam a mobilizar o que de melhor o povo brasileiro traz consigo na sua cultura para resistir ao neofascismo que nos atormenta nesses dias.
“Não há resistência democrática, sem resistência cultural”, Pedro Tierra.
Sobre poesia e política, o que diria aos jovens estudantes dessa geração?
Digo-lhes que não há resistência democrática, sem resistência cultural. Nenhuma nação se liberta da tirania sem afirmar seus valores culturais. Por isso, lhes peço que se mobilizem para todas as atividades que reforcem a cultura de resistência. Nenhuma música, nenhum poema, nenhuma tela, nenhum vídeo, meme, gravação, recado seja produzido que não denuncie o fascismo, os vendilhões do Brasil, os violadores da democracia. Em memória de Pedro!
*Editado por Solange Engelmann