Combate à fome
No Dia de Luta por Soberania Alimentar, movimentos mostram alcance de ações de solidariedade
Por Afonso Bezerra
Do Brasil de Fato
Em um encontro virtual, dezenas de militantes, dirigentes de movimentos populares, representantes das pastorais sociais, pesquisadores e coordenadores de campanhas de solidariedade se reuniram, neste sábado (16), para destacar e detalhar o papel crucial de projetos sociais de combate à fome. Os participantes pontuaram que, desde março de 2020, são estas mobilizações espalhadas em todas as regiões do país que têm representado uma reação sólida ao aumento da insegurança alimentar e da pobreza.
O evento, intitulado Conferência contra a Fome, foi organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Mídia Ninja e o 342 Artes, como parte da programação do Dia Internacional de Luta pela Soberania Alimentar. Os participantes debateram a relevância de uma unidade política das diversas organizações e movimentos em torno de iniciativas solidárias no combate à fome.
Eliana Silva, do projeto Redes da Maré, entidade que atua junto à população do conjunto de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, destacou a importância de unir o campo e a cidade nestas mobilizações contra a fome, e apresentou dados sobre o trabalho da organização durante a pandemia. “Na questão da segurança alimentar, nossa campanha Maré Diz Não ao Coronavírus, conseguiu atingir 18 mil famílias e distribuir quase 40 mil toneladas de alimentos”, contou Eliana.
Outra das participantes foi Adriana Salay, pesquisadora, historiadora e integrante do projeto Quebrada Alimentada, que distribui refeições e cestas básicas na Vila Medeiros, na zona Norte de São Paulo. Salay realçou o caráter revolucionário das ações de combate à insegurança alimentar e solidariedade: “Não dá para lutar por um mundo melhor e mais justo de estômago vazio. Precisamos ter força para alimentar nossa comunidade”.
O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), também fez parte da atividade. Ana Paula Ribeiro, integrante do movimento, apresentou os números atualizados do projeto Cozinha Solidária, que já tem 21 unidades construídas – oito apenas em São Paulo – e tem a meta de chegar em 26 até o final do ano. A iniciativa já conseguiu distribuir 109 toneladas de alimentos para, pelo menos, 14 mil pessoas. “É desse jeito que vamos reagir a este projeto de fome. As nossas periferias estão clamando por justiça. As nossas cidades estão abandonadas. E a nossa reação é com solidariedade”, destacou a militante.
A fome como projeto político
Segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, conduzido pela Rede PenSSAN, no final de 2020, mais de 19 milhões de brasileiros passavam fome. Outro levantamento, feito por um grupo de pesquisadores da Universidade de Berlim, aponta que 59,3% dos brasileiros – 125,6 milhões – não comeram em qualidade e quantidade ideais desde o início da pandemia. A pesquisa, denominada “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, foi coordenada pelo Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia.
Enquanto isso, o agronegócio bate recorde de exportações e lucros, mesmo neste período de crise econômica por causa da pandemia. Em junho deste ano, o setor faturou mais de R$ 12 bilhões com venda de commodities para o exterior. É isso que faz com que estudiosos e militantes, como Francisco Paes, do Serviço Franciscano de Solidariedade, perceba esta desigualdade como resultado da própria arquitetura do sistema econômico. “A fome é um projeto político. Por isso, a importância da nossa unidade política para criar um novo projeto”.
“Como enfrentar isso? Com o programa de Soberania Alimentar, que na essência é o entendimento de que não basta os governos terem políticas pra distribuir comida (que seria dar o peixe), é preciso ter políticas que ensinem a pescar, para que o povo em cada território, seja no município, estado ou país, produza todos os alimentos que a população precisa”, explicou o dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stedile.
O dirigente listou algumas das ações necessárias para garantir o desenvolvimento desse projeto: “temos que garantir o acesso à terra, para que os camponeses possam trabalhá-la; garantir a adoção da tecnologia da agroecologia, que são as técnicas que permitem a produção de alimentos saudáveis sem veneno; precisamos de políticas que estimulem a formação de agroindústrias na forma cooperativada; difundir a mecanização agrícola para a escala dos camponeses em pequenas unidades de produção, e universalizar o acesso ao conhecimento”, explicou Stedile.
Em seu compromisso de combate à crise humanitária no Brasil sob governo de Jair Bolsonaro, o MST já doou, desde o início da pandemia, mais de 1 milhão de marmitas e mais de 5 mil toneladas de alimentos em diversos estados.
Encontro com o Papa
Como parte das atividades do Dia Internacional de Luta pela Soberania Alimentar, pela manhã o Papa Francisco participou do IV Encontro Mundial com os Movimentos Populares. Ele fez um apelo “aos poderosos da terra” para trabalhar por mais justiça e cancelar este “sistema de morte”. O líder católico também defendeu o cancelamento da dívida dos países pobres, criticou a política armamentista e sugeriu a quebra das patentes para que todos tenham acesso às vacinas contra a covid-19.
Em outro trecho do discurso, o Papa chamou os ativistas e militantes dos movimentos populares de “poetas sociais”. “Chamo-os assim por terem a capacidade e a coragem de suscitar esperança onde reinam rejeição e exclusão”, declarou. Por fim, o pontífice endureceu as críticas ao sistema econômico que, segundo ele, “nos leva para o abismo”: “Este sistema, com sua lógica implacável de ganância, está escapando a todo domínio humano. É hora de frear a locomotiva, uma locomotiva descontrolada que está nos levando ao abismo. Ainda estamos em tempo”.
*Edição: Mauro Ramos e Maria Silva