Independência

O legado da luta por libertação em Gana: uma experiência revolucionária e pan-africanista

Após um processo de luta da classe trabalhadora, no dia 6 de março de 1957 Gana tornou-se o primeiro país da África Negra a conquistar sua independência
Independência de Gana. Foto: Divulgação/Portal Por Dentro da África

Por Phillyp Mikell*
Da Página do MST

Quando em 6 de março de 1957, Kwame Nkruma, subiu ao púlpito para o seu discurso de libertação vestido com um Batakari, roupa tradicional dos trabalhadores camponeses do norte de Gana, muitos o criticaram, pois, suas roupas em nada se pareciam com os ternos dos antigos administradores ingleses.

Hoje o Batakari é usado por toda a população ganense, homens e mulheres o vestem em espaços públicos e privados. O traje feito a mão tornou-se um símbolo da cultura ganense tendo até um festival anual dedicado a continuidade desta tradição, mas este está longe de ser o único legado que o processo de independência de Gana deixou para as lutas no continente africano e no mundo.

O Império do Gana

Para entendermos a dimensão do processo de independência de Gana, convém retomar brevemente uma parte da história dos povos que viveram e fundaram poderosos Estados na região da África Ocidental, muito antes da chegada dos europeus.

O Império do Gana foi um Estado organizado com base na agricultura, mas que passou à história como símbolo do comercio de ouro e de sal extraídos das minas do Saara. Localizado ao norte do atual país de Gana, os povos do Império do Gana teriam migrado para o sul fugindo das invasões dos povos mulçumanos do Magrebe (norte do Saara) a fim de cultivarem sua religião e cultura.

A escolha do nome Gana rebatizou a então Costa do Ouro, após a conquista de sua independência. O nome remonta à cultura secular de um povo guerreiro que exerceu grande influência na África Ocidental (Sudão Ocidental em termos pré-coloniais).

Este pequeno relato dos processos de desenvolvimento autônomos de uma das muitas regiões do imenso continente africano ilustra o alto grau de organização política, econômica, militar e cultural que o continente alcançou antes do primeiro contato com as sociedades europeias.

A despeito da narrativa de que os povos africanos eram incapazes de se autodeterminar politicamente construída pelo colonialismo para justificar seus crimes, a história da África pré-colonial está repleta de exemplos de sociedades altamente desenvolvidas. O contato com os europeus serviu apenas para estagnar e impedir o livre desenvolvimento destes povos. Anos mais tarde um teórico panafricanista e marxista ganense apontou estes elementos em sua teoria sobre a necessidade da unidade africana.

Revolução Pan-africanista e independência da Costa do Ouro

É impossível falar da conquista da independência da Costa do Ouro, atual Gana, sem falar de Kwame Nkrumah (1909 – 1972), sua participação como liderança e teórico das lutas que culminaram na libertação de Gana foram decisivas, não apenas pelo impacto que tiveram em sua terra natal, mas também pela influência que exerceu na libertação de vários outros povos na África.

O pensamento de Nkrumah foi a semente que viria a germinar no chamado Ano da África, em 1960, quando 17 países se libertaram das amarras do colonialismo seguindo o exemplo do que havia ocorrido em Gana apenas três anos antes.

Em 1947 Nkrumah estava retornando à Costa do Ouro depois de concluir os estudos nos EUA e passar por Londres onde teve contato com pensadores do Pan-Africanismo e organizações socialistas e sindicais. Durante este período Nkrumah ajudou a organizar a WANS (sigla em inglês para Secretariado Nacional da África Ocidental). Esta organização foi responsável por canalizar as lutas por libertação em toda a África Ocidental e construir articulação entre os diferentes movimentos na região, inclusive unindo organizações de países ocupados por colonizadores ingleses e franceses.

Durante os anos que antecederam a conquista da independência, vários protestos foram realizados em Accra, capital de Gana). Em 1948 policiais dispararam contra manifestantes que protestavam pelo alto custo de vida, este episódio fez eclodir motins nas principais cidades do país, os administradores ingleses culparam a Convenção da Costa do Ouro Unida (UGCC – sigla em inglês), organização da qual Nkrumah era o Secretário Geral e o prenderam junto com outros dirigentes da Convenção.

A prisão foi explorada pela UGCC e deu grande notoriedade a Nkrumah, forçando os colonizadores a libertá-lo rapidamente, após este momento a Convenção organizou viagens por todo o país sob o lema de ‘autogoverno já’. Neste período sindicatos e trabalhadores do cacau se uniram em uma grande base de apoio à luta pela libertação, criando a Convenção do Partido Popular (PPC – sigla em inglês).

Entre greves, boicotes e uma prolongada campanha de desobediência civil e não cooperação com os colonizadores, o PPC conseguiu chegar à administração do governo e sob a bandeira do sufrágio universal aprovou-se uma Assembleia Legislativa em 1952. A luta ascendente da classe trabalhadora, sob a liderança de Kwame Nkrumah progrediu até que no dia 6 de março de 1957 Gana tornou-se o primeiro país da África Negra a conquistar a sua independência.

Para Nkrumah e os intelectuais do Pan-Africanismo marxista a luta por libertação de uma nação africana deveria necessariamente implicar na libertação de toda a África. A ideia de uma luta continental, internacionalista, de caráter socialista, anti-imperialista e anticolonial foi a espinha dorsal do movimento que libertou Gana do colonialismo inglês.

A estratégia apontava para a necessidade da conquista da emancipação política dos povos africanos e neste processo garantir as reformas econômicas e sociais que permitissem o livre desenvolvimento do continente. Sob o governo de Nkrumah, Gana tornou-se um polo político de solidariedade com as lutas por independência em todo o continente, a exemplo do Congo e da sua luta por libertação sob a liderança de Patrice Lumumba.

Organização da Unidade Africana

Um dos maiores legados do processo de libertação em Gana foi a fundação em 1963 da Organização da Unidade Africana (OUA), hoje União Africana. Em sua constituição de fundação a OUA apontava para a necessidade de articular as lutas por independência em todo o continente, bem como construir uma política de cooperação política e econômica entre os povos da África para garantir a soberania e o desenvolvimento nestes territórios.

Contudo, o passo decisivo a ser dado no continente era sem dúvidas a total erradicação de todos os processos de colonialismo ainda vigentes na época. Esta perspectiva buscava abarcar o caráter anti-imperialista e anticapitalista da luta por emancipação política e social da África. A OUA teve papel importante na luta contra o apartheid em Estados como Rodésia do Sul (atual Zimbabwe) e África do Sul.

Nkrumah e toda uma geração de lutadores na África, identificados com o Pan-Africanismo marxista lutaram por uma independência que pudesse dar conta das diversas tarefas e demandas necessárias para a emancipação humana dos povos africanos. Estes lutadores e intelectuais entendiam que a saída para a libertação dos respectivos povos era por uma via socialista que superasse os limites do Estado burguês dependente cultural e economicamente dos países centrais do capitalismo.

kWAME Nkrumah tomou posse como Presidente em 01/07/1966. Imagem: divulgação

Muitas experiências socialistas foram construídas como única via possível para a libertação destes povos, contudo, as garras do imperialismo colonial e racista permaneceram e permanecem na África. Após uma larga política de Reforma Agrária e mudanças estruturais na economia ganense, o governo Nkrumah foi deposto por um golpe militar com o apoio da CIA em 1966, Nkrumah nunca mais voltou a Gana e viveu no exílio até a sua morte.

Sob o regime militar a memória e a obra de Nkrumah sofreu um processo de apagamento em todos os níveis da sociedade ganense. Atualmente o Movimento Socialista de Gana empreende um enorme esforço para resgatar seu pensamento revolucionário, divulgando sua obra e o seu legado por meio de várias iniciativas.

O aniversário da independência de Gana representa a memória de uma África possível, liberta e autônoma, com potencial para demonstrar ao mundo o caminho para uma verdadeira emancipação sociocultural. O legado destas lutas ainda vive em todos os movimentos e partidos populares que lutam para superar a sociedade opressora e dependente que o capitalismo e a divisão internacional do trabalho impõem aos povos do sul global.

As lutas populares da África são as mesmas lutas de todos os povos oprimidos do mundo e como diz um grito de ordem muito difundido pelas organizações populares em todo o continente; A Luta Continua!

*Brigada Internacionalista Samora Machel

**Editado por Solange Engelmann