Aromas de Março
Marias e as fronteiras da morte
Por Coletivo Foguera/ Mulheres Militantes da Região Amazônica
Da Página do MST
Nós vemos Maria Zelzuíta. Ela agita uma bandeira. Ela nina uma criança invisível às margens do rio Tocantins nesse 8 de Março. Muitas vezes Maria. Os olhos estacionados numa linha suspensa entre o passado massacre e o agora que sobrevive. Ela estende essa linha do Tempo diante de nós. Ficamos todas transportadas. Transpassadas. Transtornadas. Ela fala.
E nós vemos. Vemos as mulheres desesperadas, numa casinha, protegendo umas às outras, as crianças, enquanto lançam pra algum céu orações-lamúrias com os nomes de seus. Maridos, pais, filhos, amores.
Nós vemos quando contam os feridos, os mortos. Vemos o tremor. O horror. Ouvimos o som dos tiros. O som da mutilação. Os sons incompreensíveis de um massacre.
Não atira! Só tem mulher e criança aqui! Nós vemos quando a jornalista grita.
Nós vemos quando as mulheres decidem proteger Oziel da sanha assassina dos policiais.
Nós vemos quando, na pista, ensanguentado, um jovem grita com toda a vida que lhe resta naquele instante infinito: Viva o MST! Vemos como ele é lacerado e executado. A coragem dele nos assusta quase.
A essa altura, estamos todas feridas. Todas enfurecidas. Todas queremos abraçar Maria, que sobreviveu, que não se rendeu. Todas queremos compartilhar a vida com essa Maria que não nos deixará esquecer o que significa um massacre.
O medo pinta o rosto dela. Porque para nós um massacre é sempre a continuidade de outro. Jura de morte que ecoa, que não acaba nunca mais. Dorothy. Fusquinha. Josimo. Zé Claudio e Maria, Chico Mendes. As curvas, a mata, as crateras, as estradas de ferro da Amazônia guardam nosso choro. Devem saber que planejamos, dia a dia, uma revanche. A liberdade.
A Vingança de Maria é seguir na luta. A Vingança de Maria é ensinar aos que ainda não sabem. É construir, ali naquele chão cravejado, a vida digna que os trabalhadores de Eldorados dos Carajás buscavam naquele dia, em 1996. É não abaixar a cabeça. Não. Nunca. Mesmo com lágrimas nos olhos. Mesmo que o horror seja tão grande quanto essa terra cercada de Latifúndio. Quanto as valas da mineração. Não. Nunca.
Nós vemos Maria Zelzuíta. E vemos naquele olhar as mulheres que não suportaram a dor. Vemos os trabalhadores que desistiram da marcha. Nós entendemos porquê. Um massacre é sempre a promessa de outro. Nós sabemos.
Maria Zelzuíta, sustenta o tempo num portal aberto entre os olhos e a boca, chora. Ela chora. Maria chora. Chora dor. Chora medo. Chora amor. Chora muita fúria.
Todo ano Maria. Todo dia Maria. Maria Zelzuíta que sobreviveu. E que não sucumbiu. Maria.
Todo ano encontramos sobreviventes na curva do S. Cumprindo um ritual de indignação e memória coletiva, forjando jovens em acampamento. Contando aos mais novos sobre essas feridas abertas da nossa história.
Maria está sempre lá, está sempre na luta. Sobreviver foi sua chance de continuar o sonho dos seus. E de lutar por eles. Por ela. Por nós.
Nós vemos Maria. Nós vemos todas elas.
Quem é essa camponesa Sem Terra, que não se curva na fronteira da morte?
Mulher negra, mãe solo, sempre disposta e aberta a contribuir. Maria solidária, de olhar infinito e de sentimento acolhedor. Não se sabe de suas dores, mas ela está sempre com enorme sorriso no rosto, quando se trata de acolher e fazer algo para qualquer um ou para o coletivo. Entre o trabalho da roça e o trabalho coletivo, Maria vai tecendo seu caminho. Plantando e colhendo sonhos, flores, afetos por uma vida melhor. Maria colhendo pão e ervas, cuidando de todos e todas, lutando cotidianamente, transformando a fronteira da morte em possibilidade de vida coletiva.
*Editado por Fernanda Alcântara