Fruto de Luta Social
Título de terra para mulheres: Bolsonaro trata como “inovadora” política conquistada há 19 anos
Por Gabriela Moncau
Do Brasil de Fato/São Paulo (SP)
Desde que as campanhas presidenciais deram a largada para o segundo turno, a primeira dama Michelle Bolsonaro encabeça a tarefa de tentar minimizar a rejeição do eleitorado feminino ao presidente Jair Bolsonaro (PL). Realizando eventos pelo país voltados principalmente para mulheres evangélicas, uma das estratégias de Michelle – ao lado de figuras como a senadora eleita Damares Alves (Republicanos) e a deputada Bia Kicis (PL) – tem sido argumentar que, preocupado em “cuidar” da majoritária população feminina no Brasil, o governo está emitindo títulos de terra no nome de mulheres.
Essa narrativa está distorcida em ao menos três aspectos. Em primeiro lugar, os títulos de terra não são entregues exclusivamente às mulheres assentadas. No caso de pessoas casadas ou em união estável, o Decreto nº 9.311/2018 obriga que o registro seja feito no nome de ambos, conjuntamente. Em caso de titularidade para uma pessoa, a mulher, por força de lei e não por vontade do presidente, tem preferência.
Em segundo, não se trata de algo novo, mas de uma obrigação estabelecida em 2003, a partir da conquista de uma reivindicação histórica das mulheres camponesas organizadas na Marcha das Margaridas.
Por fim, dos 370 mil documentos de titulação de terra para assentados expedidos pelo governo Bolsonaro, 88% são provisórios e entregues a famílias assentadas em governos anteriores.
Durante as quatro semanas que separam o primeiro e o segundo turno das eleições, não foram poucas as investidas do próprio presidente alimentando a imagem de misógino a ele atrelada. Entre os episódios, estão aquele em que ele disse que “pintou um clima” entre ele e adolescentes de 14 anos e aquele em que minimizou as denúncias de assédio sexual contra o ex-presidente da Caixa Econômica Federal.
Buscando apagar fogos como estes, as mais conhecidas figuras públicas femininas do bolsonarismo cumprem, por meio da campanha “Mulheres com Bolsonaro”, agendas similares a de candidatas. Michelle Bolsonaro vem reiterando, em falas públicas, que “perfeito é só Jesus”, “não olhem para o meu marido, olhem para mim”, que o governo aprovou cerca de 70 leis voltadas às mulheres e que dá, para assentadas, títulos de propriedade de terra.
Fruto de luta, camponesas conquistam o direito em 2003
“Fico indignada quando tratam sobre titulação das terras em nome da mulher como se isso fosse uma dádiva deste governo”, salienta Cleia Anice Porto, diretora da Associação Brasileira de Reforma Agrária.
Porto, que participou da luta para conquistar este direito, conta que ela começou a ser travada ainda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). “Não foi fácil, inclusive para quebrar as resistências nas primeiras elaborações sobre como poderia ser essa norma reguladora”.
Até 2003, os títulos de terra para beneficiários da reforma agrária eram entregues exclusivamente ao homem. A reivindicação para que isso mudasse apareceu na primeira Marcha das Margaridas em 2000. O ato, coordenado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), reuniu 20 mil mulheres – entre camponesas, ribeirinhas, quilombolas, agricultoras e marisqueiras – em frente ao Congresso Nacional.
Foi na segunda edição da manifestação, em 2003, durante o governo Lula (PT), que a demanda foi acatada e, por meio de uma portaria do Incra, a concessão do título passou a ser, também, no nome da mulher assentada. A obrigação, nos anos seguintes, constou em diversas outras normas até ser incorporada no Decreto nº 8.738/2016, assinado pela então presidenta Dilma Rousseff (PT).
“Isso foi determinante para diminuir a violência doméstica, aprimorar o acesso a crédito e às políticas públicas”, avalia Kelli Mafort, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “E agora Bolsonaro faz essa grande fake news e se aproveita de uma política que ele não criou”.
Nada além do cumprimento da lei
“Essas conquistas foram fruto da pressão dos movimentos sociais”, salienta a geógrafa Yamila Goldfarb, vice-presidente da Abra: “Inclusive, temos casos de casais homoafetivos também recebendo o título no nome das duas pessoas. Então quando o governo Bolsonaro fala que está titulando em nome da mulher, ele não está fazendo nada além da sua obrigação. Isso é algo que todos os governos já fazem desde 2003”.
Também doutora em Ciências Humanas pela USP, Goldfarb avalia que o que se vê, de novo, é uma “estratégia da campanha de Bolsonaro se apropriar dos feitos de outros governos, mentir em cima dos números e colocar como se fosse algo do seu governo – e não é”. Neste caso, finaliza, “é uma conquista do movimento social e, particularmente, das mulheres”.
Edição: Thalita Pires