Cortes na Merenda
Recursos da alimentação escolar parados em conta, enquanto mães solo quilombolas e rurais do Nordeste vivem insegurança alimentar
Por Adriana Amancio e Anelize Moreira
Especial para Gênero e Número e O Joio e O Trigo
“No início das aulas leva de dois a três meses para chegar a merenda na escola. Neste ano, chegou só em maio, depois de muita briga na Secretaria [Municipal] de Educação. Eles falam que é falta de dinheiro. Faltou alimentação na maioria das escolas rurais, tem criança que até passou mal por falta da merenda. Sem merenda é sofrimento, pobreza total e muita luta.” Esse é o relato da mãe solo e agricultora Maria de Jesus Laranjeiras, 37 anos, sobre a falta de merenda nas escolas Maria Salete Moreno e Maria Aragão, localizadas na zona rural de Itapecuru Mirim, a 108 quilômetros de São Luís, no Maranhão.
Um levantamento feito por Gênero e Número e O Joio e O Trigo constatou que R$ 714 mil em recursos públicos destinados à compra de alimentação escolar estavam parados em conta até setembro deste ano. Este saldo equivale a quase metade do R$ 1,450 mi repassado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento (FNDE), órgão do Ministério da Educação, via Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), no período entre fevereiro e setembro.
A merenda servida na escola ajuda a garantir a alimentação dos três filhos que vivem com a agricultora Maria Irani Correia da Silva, de 41 anos, moradora do Quilombo Carrasco, em Arapiraca, no Semiárido de Alagoas. “Ajuda bastante às mães solteiras que nem eu, que sou mãe e pai deles. A gente não tem o alimento em casa, até porque a renda do Bolsa Família não dá pra comprar lanche pra eles levarem para escola.”
A quilombola Maria Aparecida da Silva, de 33 anos, é mãe de Carlos Eduardo Silva Ferreira, de 9 anos. Ela também vive no Carrasco, local onde nasceram seus avós e pais, todos descendentes de quilombo. Segundo ela, o nome da comunidade vem da árvore Carrasco, usada pelos quilombolas como combustível para o cozimento dos alimentos.
Ela lembra que antigamente as famílias podiam cultivar milho, feijão, inhame e macaxeira, mas, agora, sem conseguir plantar, as refeições ficaram mais restritas. O dinheiro que recebe do programa social é destinado a comprar apenas o básico. “Arroz, feijão, fubá, um pedacinho de mistura, menos de um quilo, de tudo eu compro um pouquinho. Como somos nós dois, o gasto é menor porque ele fica na escola.”
Nossa investigação apontou que em Arapiraca, Alagoas, onde vivem Maria Aparecida e Maria Irani, há uma situação semelhante. Até setembro deste ano, o município mantinha em conta R$ 510 mil de pouco mais de R$ 2,059 mi repassados pelos FNDE de fevereiro a setembro. Esse montante representa um quarto do valor total do repasse feito ao município.
A analista de licitações com experiência em fiscalização na execução dos recursos do Pnae, Joana Barbosa, avalia que deixar recursos parados em conta destoa do que vive boa parte dos municípios que reclamam do baixo orçamento do programa, que, inclusive, não é reajustado desde 2017. “Ouço muitas pessoas reclamarem que o recurso que o FNDE repassa é pouco. Se é pouco, não é para ter nada na conta. No meu entendimento, é para estar zerada esta conta”, explica.
O valor diário por aluno repassado pelo governo federal aos estados e municípios é definido de acordo com a etapa e a modalidade de ensino, tendo como base o censo escolar do ano anterior. Varia de R$ 0,32 para a Educação de Jovens e Adultos a R$ 1,07 para o Ensino Integral. O valor é considerado baixo, especialmente neste momento no qual a inflação acumulada sobre os alimentos chegou ao pico de mais de 14%.
Em uma simulação, é possível constatar que, se todo valor repassado pelo Pnae, incluindo o que está parado em conta, fosse executado pela Prefeitura de Itapecuru Mirim, seria possível dobrar os valores per capita destinados a estudantes da pré-escola, de R$ 0,53 para R$ 1,06, e para a Educação de Jovens e Adultos, R$ 0,32 para R$ 0,64. Na prática, ocorre o contrário: mesmo com recursos em conta, os alunos tiveram menos merenda ou refeições mais precárias nas escolas citadas na reportagem.
O caso de Arapiraca chama ainda mais atenção. Para executar o valor per capita praticado pelo Pnae atualmente, atendendo a todos os estudantes matriculados, o município precisaria de um incremento de mais de R$ 600 mil. Entretanto, ele deixou de executar R$ 500 mil, o que certamente impacta em pratos com pouca comida ou comida precária.
A situação dos dois municípios é uma amostra do que acontece no restante do país. Durante a apuração de dados, a reportagem constatou que, até maio deste ano, outros 2.946 municípios localizados nas cinco regiões brasileiras estavam com recursos parados em conta – mais da metade dos 5.518 municípios brasileiros. Nestes casos, além de não utilizarem a verba deste ano, ainda possuíam resíduos de recursos repassados durante a pandemia. Há municípios que mantinham em conta até seis vezes mais do que o valor repassado para a merenda escolar.
As vozes das Marias, mães solo, negras, nordestinas e rurais representam números alarmantes de territórios historicamente marcados pela miséria. O retorno de índices elevados de fome no Brasil e a alta dos preços dos alimentos, nos últimos anos, fizeram com que as mulheres e as crianças ficassem mais vulneráveis, sem ter certeza de como irão se alimentar no dia a dia.
As mulheres chefiam seis de cada dez lares que vivem em insegurança alimentar, de acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Para as mães negras, a situação é ainda pior: 64% das casas com pessoas pretas ou pardas enfrentam dificuldades para se alimentar e 60% dos lares rurais vivem sem a segurança do que irão comer.
As Marias de Alagoas e do Maranhão têm muito em comum. Elas dependem da renda do Auxílio Brasil – que seguem a chamar pelo nome anterior, Bolsa Família – e da merenda escolar para conseguir alimentar os filhos. Atualmente, apesar de serem agricultoras, a produção de alimentos para subsistência tem sido afetada pelos efeitos das mudanças climáticas.
A fome é mulher, mãe solo, negra e rural
A quilombola Maria Aparecida ressalta que só consegue sustentar ela e o filho de 9 anos porque a escola oferece alimentação. Ele estuda em tempo integral na Escola Manoel João da Silva, que fica na comunidade Carrasco. “Dá para quase um mês [Auxilio Brasil] devido aos dias que ele passa na escola. Ele faz a refeição completa, passa o dia todo na escola, só vem para casa de noite.”
Maria Aparecida reitera o papel da alimentação escolar. “A merenda é muito importante tanto para mim, quanto para ele [filho] porque, se faltar em casa, na escola ele tem. Porque a gente sabe que barriga seca não sustenta ninguém e não desenvolve nos estudos. É muito importante a alimentação, não só para mim, mas para todas as mães que passam dificuldade.”
Maria de Jesus está na mesma situação de Maria Aparecida. Ela mora no assentamento de reforma agrária Cristina Alves, onde vivem cerca de 90 famílias, a 16 quilômetros do município de Itapecuru Mirim – no último Censo, 9,1% da população se declara preta, e 72,7% como parda.
Maria de Jesus vive apenas da renda do Auxílio Brasil e é a única responsável por botar comida na mesa para ela e mais cinco filhos. “Fica difícil porque, quando as meninas vão para a escola e não tem merenda, elas pedem: ‘Mamãe, eu quero dinheiro para comprar merenda’, e não tenho nem cinquenta centavos para dar”, lamenta.
Com essa configuração, Maria de Jesus representa uma das 63,3% das famílias em insegurança alimentar do Maranhão, segundo dados do 2º Inquérito Vigisan. Este é o estado do Nordeste com maior número de famílias com crianças menores de dez anos em dificuldades para conseguir alimento. Elas vivem na condição de insegurança alimentar moderada ou grave, o que, na prática, significa que a família se alimenta hoje, mas não sabe se terá a mesma sorte no dia seguinte.
“Neste mês faltou merenda três dias. Disseram que não tinha lanche e ia largar cedo.” Essa é a estudante Géssica* (nome fictício), de nove anos, relembrando os últimos dias em que faltou merenda na Escola Maria Aragão. Quando perguntada sobre como se sentiu nos dias em que não teve merenda, ela respondeu: “Fraca!”.
Talita* de 11 anos, concorda. “Disseram que estavam aguardando a merenda chegar e estavam sem o gás. Nesses dias não era muito bom, não, a minha cabeça começou a doer”, comenta a estudante da escola rural do Maranhão.
Maria de Jesus acompanha de perto as demandas porque também é fiscal do Conselho de Alimentação Escolar (CAE), órgão que monitora a execução da alimentação nas escolas e é composto por representantes do poder Executivo, trabalhadores da educação, entidades civis e pais de alunos. “Seria bom que não faltasse merenda na escola com tanta frequência, porque às vezes as crianças se alimentam melhor na escola do que em casa, porque os pais não têm condições.”
Alagoas é o segundo estado do Nordeste mais impactado pela insegurança alimentar que atinge famílias com crianças menores de dez anos – são 59,9% no total. A cidade de Arapiraca é a segunda maior do estado, com população de mais de 230 mil habitantes, dos quais 5,6% se autodeclaram pretos e 56,8% pardos, de acordo com a estimativa do IBGE em 2018. O nome Arapiraca vem de uma árvore da espécie de angico branco, comum no agreste e no sertão.
A mãe solo Maria Irani não nasceu no Quilombo Carrasco, em Alagoas, mas tornou-se quilombola. Há três anos, ela foi morar na comunidade, onde estão 300 famílias, por necessidade. “A partir do momento que eu cheguei na comunidade, me sinto um deles. Abracei a comunidade como se fosse filha da terra e eles me abraçaram também. Hoje eu me sinto até uma mulher negra.”
Sem ajuda do pai de seus filhos e sem poder trabalhar por conta de problemas de saúde, na cidade ela teve de mudar várias vezes de casa, porque a renda como empregada doméstica era insuficiente para pagar aluguel e arcar com as outras despesas. Foi morar no Carrasco, porque o aluguel era mais baixo. “Na realidade faço o que eu posso, compro o que der, e vamos vivendo do jeito que dá. De vez em quando tem uns vizinhos que me ajudam, me dão umas coisinhas, e cozinho mais na lenha pra economizar”, conta Maria Irani.
Se sobra dinheiro, tem comida saudável no prato?
A má gestão dos recursos do Pnae pelos municípios respinga nas famílias que contam com a merenda escolar. O último Inquérito Vigisan apontou que metade das famílias com crianças menores de dez anos da região Nordeste tem dificuldade de conseguir alimento. Considerando que essa faixa etária envolve a idade escolar, grande parte dessas famílias são atendidas pelo Programa de Alimentação Escolar (Pnae).
A nutricionista Jeanice de Azevedo Aguiar, que trabalha na área de alimentação escolar desde 1989, inicialmente elaborando cardápios das escolas e, hoje, na formação de gestores e merendeiras, explica que em alguns territórios a alimentação escolar é parte das refeições diárias das crianças e dos adolescentes. “A alimentação escolar não é o objetivo principal da escola, mas acaba sendo em alguns locais, porque a insegurança alimentar é grande. Além disso, a alimentação escolar também é imprescindível para o aprendizado adequado.”
Quando falta merenda nas escolas rurais Salete Moreno e Maria Aragão, em Itapecuru Mirim, no Maranhão, geralmente os alunos são dispensados mais cedo. Além da pandemia, essa perda de uma hora por dia sem aula é um prejuízo para as crianças.“Na verdade, falta merenda, porque falta organicidade da secretaria [municipal de educação]. Eles falam que estão aguardando chegar material”, explica Leonilde Aguiar, responsável pelas escolas Maria Salete Moreno, que fica na comunidade 17 de abril, e Maria Aragão, na Vila Cabanagem, dois pólos que recebem alunos de diversas comunidades do entorno.
Segundo ela, a justificativa da Secretaria de Educação é que a demora se deve às dificuldades em finalizar a licitação, e isso inclusive impacta na aquisição de alimentos dos pequenos agricultores. No final de outubro (25, 26 e 27), a situação se repetiu e os alunos ficaram, mais uma vez, três dias sem merenda. “Tudo que a gente conquistou até hoje, aqui nas escolas, foi com muita luta, embate e resistência. Porque na verdade a escola do campo fica sempre por último”, reforça a gestora.
De acordo com a nutricionista Jeanice Aguiar, apesar da evolução no papel de orientações técnicas e de gestão da alimentação escolar, ainda há municípios que, por falta de gestão pública e probidade administrativa, não servem alimentação adequada e saudável para as crianças. E é mais comum nas escolas que ficam nos rincões do país, mas também nas capitais, como São Paulo, que possuem um volume maior de recursos.
“É um grande erro de planejamento. De acordo com a legislação desta área de licitações, todo órgão público tem que ter um plano de contratações anual coerente com a realidade escolar. A licitação pode ter tido problemas e pode ter sido impugnada pelo Ministério Público ou Tribunal de Contas. De qualquer forma o gestor vai ter que dar justificativas e recorrer a licitações emergenciais, o que é permitido. O que ele não tem é justificativa para não atender essa criança de acordo com o que a legislação preconiza”, diz Jeanice.
Biscoito e suco
No cardápio semanal, Géssica e a mãe afirmam que é servido, duas vezes por semana, “biscoito [tipo maizena] e suco de polpa”. Uma refeição comum é arroz, feijão, frango, macarrão e salada de couve. Antes de sair para escola, a garota costuma tomar café e comer cuscuz. Mas, segundo a mãe da criança, “às vezes, ela toma só café, pois não tem nada para comer”. Géssica conta que, nos dias em que sai só com o café na barriga, “chego ruim na escola! Eu fico quieta no meu canto, espero dar 9h [hora do lanche]. Eu queria que tivesse logo comida para comer quando chegar”.
A gestora das escolas no Maranhão explica que quando não há os itens do cardápio, o jeito é improvisar para servir a merenda. “Tem uma nutricionista do município que elabora os cardápios das escolas, mas nem sempre vem o que está no cardápio. Aí a gente vai usando da criatividade. Vem frango, carne, charque, macarrão, óleo, arroz, feijão. Polpa de fruta e verdura só tem quando as cooperativas do município entregam. A gente vai elaborando de acordo com o que vem”, relata Leonilde.
O cardápio da merenda precisa estar atrelado ao processo de compras: uma nutricionista faz a lista dos itens que devem ser comprados, mas, no processo de licitação, nem sempre esse pedido é respeitado “É preciso observar se o cardápio está de acordo com o que o FNDE preconiza: quatro dias na semana de carne vermelha, porque ela tem o ferro e vitamina B12, responsáveis por combater a anemia; alimentos fontes de vitamina A; frutas, verduras e legumes todos os dias e 30% dos alimentos da agricultura familiar, além da qualidade sanitária”, explica Jeanice.
Para garantir a alimentação saudável no prato das crianças nas escolas, a Lei nº 11.947, de de 2009, determina que 30% do valor repassado a estados, municípios e Distrito Federal pelo FNDE para o Pnae deve ser utilizado na compra de alimentos diretamente da agricultura familiar, priorizando assentamentos da reforma agrária, comunidades tradicionais indígenas e quilombolas.
A execução de 30% do orçamento com compras da agricultura familiar é obrigatória. Caso o município não execute este valor, terá de devolvê-lo aos cofres públicos ou reprogramá-lo, ou seja, solicitar ao FNDE autorização para executá-lo no ano letivo seguinte.
Por exemplo, em Itapecuru Mirim, os 30% da agricultura familiar correspondem a R$ 430 mil. Segundo nosso levantamento, o município havia comprado R$ 294 mil. Caso esse montante que restou não seja executado até o fim do ano letivo, deverá ser devolvido ou reprogramado. As compras da agricultura familiar em Itapecuru iniciaram em julho deste ano, portanto sete meses após o início do ano letivo.
Em Arapiraca os gestores locais aderiram ao cartão Pnae, então não foi possível identificar despesas com a agricultura familiar na compra de alimentos in natura. No sistema do FNDE, consta apenas o valor do débito realizado via cartão.
Para chegar a essa estimativa tanto em Itapecuru quanto em Arapiraca, comparamos o valor repassado pelo FNDE para o Pnae com a soma das despesas realizadas na compra da merenda, entre janeiro e setembro. No caso de Itapecuru Mirim, calculamos o valor que restava ser gasto com a agricultura e, por isso, deveria estar em conta para ser devolvido ou reprogramado. O cálculo foi feito com base nas informações disponibilizadas no setor de liberações e na seção extratos e movimentações bancárias do portal do Fundo, no dia 16 de novembro.
Tem ultraprocessado no prato
Segundo Jeanice, com a verba do FNDE a escola só pode comprar 25% dos valores em ultraprocessados e no máximo 5% em ingredientes (sal, açúcar, óleo). Ela ressalta que em locais de difícil acesso é onde se concentram os maiores problemas da alimentação escolar. Muitas vezes essas escolas não têm a infraestrutura mínima para garantir a merenda, como, por exemplo, não ter merendeiras ou equipamentos suficientes, o que dificulta trabalhar com alimentos in natura.
“Por que os ultraprocessados entraram tão fortemente na alimentação escolar? Na maior parte das vezes, porque é fácil de trabalhar com eles. Quantas vezes não trouxeram nuggets para fazer um teste de aceitabilidade com as crianças? É claro que as crianças gostaram, mas aí, se for ver o modo de preparo, os ingredientes que tem ali, se fosse só carne, tudo bem, mas tem farinha, soja, aditivos. Não era aquilo que a gente queria trazer para alimentação escolar”, completa a nutricionista.
A qualidade da merenda também preocupa as mães quilombolas e rurais do semiárido. “Gostaria que melhorasse a merenda, porque tem uma carne moída que eles trazem que não é muito agradável, a gente não sabe como foi produzida. A gente tenta manter os alimentos saudáveis, sem agrotóxicos, aí fica dificil!”, queixa-se a agricultora Maria de Jesus.
“Normalmente eles falam bastante que tem suco e biscoito, mas o governo deveria melhorar a merenda, não só para os meus filhos, mas para todos os alunos. Porque os meus não veem a hora de ir para escola pra ter o lanche”, ressalta Maria Irani.
A reportagem entrou em contato com as Prefeituras de Itapecuru Mirim e Arapiraca, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem.