Juventude Sem Terra
Como a juventude do MST está respondendo à crise climática?
Por Camilla Hoshino
Da Lunetas
Já faz 32 anos que os pais da apicultora Aline Oliveira chegaram à fazenda Peba, no município de Delmiro Gouveia, no sertão de Alagoas. A ocupação, fruto da disputa entre fazendeiros e arrendatários locais, marca o início da história do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Estado, dando origem ao assentamento Lameirão. Diante da beleza cênica estampada às margens do Rio São Francisco, 30 famílias seguem arando a luta pela permanência de seus descendentes no meio rural. Se os mais velhos tiveram que viver debaixo de barracos de lona preta e se unir pela conquista de água, escola, postos de saúde e direitos básicos, cabe à atual geração da juventude do MST desenhar o futuro político de seus territórios, respondendo a novos desafios ambientais.
“Fui sem terrinha, estudei nas escolas do campo e, infelizmente, vivenciei a falta de políticas para a primeira infância nos assentamentos”, diz Oliveira, mestre em História pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), que, aos 28 anos, não conhece outro cenário além da Caatinga.
No sertão, terra de cultura pautada pela água, a desregulação das chuvas tem afetado cada vez mais os saberes herdados entre gerações de agricultores, como o cultivo do milho, plantado tradicionalmente no dia de São José (19 de março) e colhido no de São João (24 de junho). Se o calendário não coincidir com as festas religiosas, toda a cadeia produtiva é prejudicada, da conservação das sementes crioulas à geração de renda através da venda de derivados do cereal.
“A crise climática altera os ciclos da natureza, reduz a biodiversidade e impacta a agricultura familiar, afetando os modos de vida das pessoas que vivem no campo”, afirma Aline Oliveira.
Para enfrentar a emergência climática e seus impactos, garantindo segurança alimentar, o MST lançou, em 2019, o Plano Nacional “Plantar árvores, produzir alimentos saudáveis”. Oliveira explica que a meta é plantar 100 milhões de árvores em dez anos como estratégia para a recuperação florestal dos biomas brasileiros, como a Amazônia, Mata Atlântica, o Cerrado e a Caatinga. A ação massiva tem contado com o protagonismo da juventude do MST, dedicada à coleta e conservação de sementes, à preparação de mudas e à construção de uma rede nacional de Viveiros Populares.
O Lunetas conversou com a apicultora e integrante do coletivo nacional da juventude do MST, Aline Oliveira, sobre os impactos da crise climática no sertão, o Plano Nacional liderado por jovens e sobre como a nova geração de assentados da reforma agrária está promovendo a agroecologia, com foco na resistência econômica e na produção de alimentos saudáveis em seus territórios.
O que é a agroecologia?
A agroecologia alia o conhecimento tradicional e científico para orientar a adoção de tecnologias e práticas nos sistemas de produção, buscando sustentabilidade ecológica, econômica, social, cultural, ética e política. Ao imitar os mecanismos que ocorrem na natureza, ela oferece equilíbrio ecológico e estabilidade aos ecossistemas, garantindo a produção de alimentos livres de resíduos químicos, como agrotóxicos. Isso contribui para a segurança alimentar e para a conservação ambiental, já que evita a contaminação do solo, da água e do ar. Os sistemas de produção focados na agroecologia fortalecem a agricultura familiar, baseada na pequena propriedade e adaptada às condições e culturas regionais.
Confira a entrevista com Aline Oliveira!
Lunetas – Como as famílias do assentamento Lameirão têm sentido os impactos da crise climática ao longo dos anos?
Aline Oliveira – Tudo está desregulado. A crise climática tem afetado os invernos, trazendo escassez de chuvas e também as trovoadas – como chamamos quando as barragens e barreiros se enchem. Isso afeta tanto a produção pecuária, dos nossos pequenos animais, quanto nossos roçados de milho, feijão, algodão e hortaliças. Por exemplo, não estamos conseguindo mais plantar milho no dia de São José, pois não chove. Essa era uma tradição religiosa, mas também alinhada aos saberes tradicionais.
Com a desregulação das chuvas, os saberes que herdamos dos nossos avós, relacionados aos cultivos alimentares, estão se perdendo. Essa mudança também acarreta na falta de alimentos para os animais nativos da Caatinga nas áreas de reserva – como araras, raposas e macacos -, que começam a atacar as lavouras que sobram perto da agrovila do assentamento. A crise climática altera os ciclos da natureza, reduz a biodiversidade e, consequentemente, impacta a agricultura familiar, afetando os modos de vida das pessoas que vivem no campo há muitas gerações.
Como o MST tem respondido aos desafios referentes à crise climática?
AO – No final de 2019, o MST lançou o Plano Nacional “Plantar árvores, produzir alimentos saudáveis”, que tem como meta plantar 100 milhões de árvores em dez anos, nos territórios da reforma agrária em todo o país, nos entornos dos assentamentos e cidades vizinhas. Nesse período, as famílias sem terra vão plantar árvores nativas, frutíferas e cuidar das áreas de reserva, recuperar nascentes e áreas degradadas, produzir agroflorestas nos diversos biomas do país, quintais produtivos e bosques de resistência. Esse projeto, casado com a produção de alimentos saudáveis, garante não apenas a soberania alimentar dos assentamentos e acampamentos, mas também das cidades. Essa é uma resposta das famílias do campo às ações que privatizam os bens comuns e exploram em nome do lucro. É o semear de uma nova perspectiva de vida.
O debate sobre o Plano Nacional “Plantar árvores, produzir alimentos saudáveis” tem incluído crianças e a juventude do MST?
AO – Os jovens são protagonistas do Plano Nacional dentro e fora dos territórios dos assentamentos. Nesse período, estamos produzindo experiências locais, regionais e nacionais que possam ser espaços de conspiração e de elaboração de uma resistência ativa em relação à crise climática. Temos começado esse trabalho a partir dos Viveiros Populares, cujo objetivo é produzir mudas nativas, frutíferas, medicinais e ornamentais, para que possamos escoar a produção para assentamentos, cadeias produtivas e para as cidades. Essa também é uma forma de resistência econômica para que as novas gerações possam permanecer nas terras de forma autônoma e participativa.
“A partir da coleta de sementes, dos viveiros, da produção de alimentos saudáveis e de mel que os jovens dos assentamentos têm se tornado atores de um novo projeto de país”
Qual a importância de trabalhar desde cedo, com crianças e adolescentes, a ideia de que novos modelos são necessários para enfrentar os desafios futuros?
AO – Para que o Plano Nacional seja um grande polinizador, precisamos trabalhar em conjunto com as escolas do campo, especialmente com as crianças. Primeiro, é necessária uma matriz curricular que compreenda a conservação do meio ambiente de uma forma não conservadora, pois preservação não significa ausência da presença humana. As escolas são fundamentais para a compreensão de justiça ambiental, pois sem famílias cuidando do meio ambiente em harmonia com seus roçados, com a produção de alimentos saudáveis e de árvores nativas, não há preservação. Os modelos de conservação de parques nacionais e estaduais não têm dado certo, pois já se observa o avanço de grandes produções e empreendimentos, ocasionando destruição. As áreas que se mantêm preservadas são aquelas que têm produzido conhecimento, junto a comunidades que alinham suas práticas e culturas à preservação dos bens comuns. É uma forma coletiva de compreensão da realidade.
“Preservação não significa ausência da presença humana”
Há décadas, a agroecologia tem sido uma diretriz do MST nas áreas de reforma agrária. Você poderia explicar como ela responde a desafios sociais, econômicos e ambientais dos assentamentos?
AO – A agroecologia pode ser pensada para a produção de alimentos sem veneno, mas também para o fortalecimento da agricultura familiar. Ao longo dos anos, foi ocorrendo um processo de transição nos modos tradicionais dominantes de produção dos assentamentos, com foco na agroecologia.
A partir dos anos 2000, o MST realizou parcerias com institutos federais, universidades e centros de formação para avançar na capacitação teórica e prática dos assentados, com o objetivo claro de construir um corpo técnico que pudesse dominar o conhecimento da agroecologia nas áreas da reforma agrária. Hoje, estamos colhendo os frutos dessa proposta.
Em todos o país, conseguimos comercializar os nossos produtos a partir de políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), das feiras agroecológicas em várias cidades e dos Armazéns do Campo (lojas do MST, com produtos da agricultura familiar). Aqui no sertão, vendemos macaxeira, cenoura, beterraba, abóbora e melancia para o restaurante universitário da UFAL, através da política do PAA. O PNAE garante que parte da merenda escolar dos alunos do município venha do nosso assentamento.
Essa comercialização é uma maneira de gerar renda para as famílias assentadas e de dizer às pessoas da cidade que o alimento consumido é fruto da luta pela terra e de uma perspectiva diferente de país, que preza pela alimentação saudável, pela preservação do meio ambiente e por novas relações sociais capazes de gerar soberania alimentar nesses territórios. É uma tarefa histórica.
Você acredita que a agroecologia seja capaz de garantir segurança alimentar?
AO – Acredito que, durante a pandemia, o MST tenha dado uma boa resposta à sociedade e não apenas para as famílias do campo com a doação de alimentos de norte a sul do país. E não foram alimentos que sobravam dos roçados, mas os melhores vindos da nossa produção agroecológica. Ficou evidente a importância da divisão de terras e de novas relações sociais no espaço rural para sair da crise sanitária e econômica.
MST vence prêmio da Organização Internacional do Trabalho
Em outubro de 2021, o MST ganhou o Esther Busser Memorial Prize, prêmio promovido pela OIT, das Nações Unidas, pela luta por justiça social. O movimento se destaca pela produção de alimentos saudáveis, pela preservação do meio ambiente e pela defesa dos direitos humanos, como universalização da saúde e da educação. Até julho de 2021, suas campanhas de solidariedade durante a pandemia haviam destinado mais de um milhão de marmitas (cinco mil toneladas de alimento) a periferias urbanas e rurais de todo o país.
Diante dos desafios estruturais do campo, você vê perspectivas de que os jovens se mantenham nos assentamentos trabalhando com a terra?
AO – Os desafios estão cada vez mais acentuados, não apenas para os jovens que vivem no campo, mas também nas grandes cidades. Não há perspectiva de trabalho e, durante a pandemia, ficou evidente que estamos diante de uma crise estrutural. Nos assentamentos, as pressões pela expulsão dos jovens é grande, seja com o fechamento de escolas do campo, seja pela falta de investimento em saúde, educação ou infraestrutura. Essas são algumas armadilhas que projetam o meio rural como um lugar ruim para sobreviver.
Apesar disso, temos a perspectiva de permanecer no campo, trabalhar com a terra e viver em harmonia com a produção de alimentos saudáveis e o plantio de árvores. Esse projeto pode nos trazer autonomia econômica e experiências diferentes de nossos pais, mães, tios e assentados mais velhos.
Hoje, temos consciência que, para permanecer nos assentamentos, precisamos não só de terra para plantar, mas de arte, de cultura, de novas relações sociais e humanas, de afetividade. Queremos territórios livres de racismo, homofobia e de todos os preconceitos que afetam nossa identidade. Cabe a nós construir tudo isso que desejamos.