Teatro Político
Antígona na Amazônia contra a monstruosidade do homem
Encenação da Marcha Interrompida no Massacre de Eldorado do Carajás, para a peça Antígona na Amazônia. Foto: Nelson Almeida / AFP
Por Douglas Estevam / Coletivo de Cultura do MST
Para Página do MST
“Muitos são os monstros, mas nada é mais monstruoso que o homem”. Essa é uma das frases mais conhecidas da clássica tragédia grega Antígona, de Sófocles. A formulação do clássico da cultura europeia é confrontada à realidade brasileira na versão Antígona na Amazônia, produção realizada entre o MST e o NTGent, grupo teatral dirigido pelo suíço Milo Rau.
Na versão produzida numa das regiões de maior conflito agrário e devastação ambiental da região Amazônica, o sudeste do Pará, o texto ganha sua atualidade. “Nada é mais monstruoso que o homem, ele corta com máquinas, energia e fogo as florestas na busca gananciosa de ouro e minério, ele apanha a energia dos rios em barragens, força os filhos das florestas a esquecer sua terra natal, chama de propriedade privada os lugares onde viveram seus ancestrais”. Essas são algumas das monstruosidades dos homens que são anunciadas já no prólogo da versão amazônica da tragédia e entoada pelo coro composto por militantes do MST.
Com esse novo trabalho, Milo Rau empreende uma tomada de posição contra a destruição planetária, ambiental e humana provocada pelo modelo de produção capitalista. Ele associa o nascimento do capitalismo moderno à colonização europeia do continente latino-americano.
Segundo Rau, ainda hoje, a relação entre Europa e América Latina permanece quase a mesma. Ele se coloca questões sobre “como podemos mudar a situação da propriedade que foi criada com o capitalismo moderno, que nasceu há seis séculos com a colonização? Como podemos democratizar o acesso à terra e como podemos chegar a uma consciência econômica e política que esteja acima da ideia de propriedade e exploração”.
Para o diretor, estamos em uma época de mudança onde deveríamos retomar a ideia original de economia, no sentido de casa, numa concepção de relação entre o ser humano e a natureza. Ele defende a criação de “uma outra estratégia de desenvolvimento humano em oposição à estratégia do capital, criada pelos povos da África e América Latina, mas também com EUA e Europa, o desenvolvimento de uma outra estratégia de colaboração ao nível planetário”.
O maranhense Laurindo Ferreira da Costa, de 63 anos, oriundo de comunidades quilombolas, militante do MST e um dos sobreviventes do Massacre de Eldorado do Carajás que atua na peça, diz que sua motivação fundamental para participar do processo foi porque ele acredita “que isso pode vir a contribuir com a Amazônia. Nosso Movimento tem a bandeira de uma Amazônia viva, e por isso nós temos o projeto de plantar 100 milhões de árvores em 10 anos, e, em segundo lugar, porque isso vai contar nossa história, e é o que defendemos, que a nossa história de Eldorado do Carajás e de muitas outras não vire cinzas, que nossa memória não seja apagada”.
Seu Laurindo, sobrevivente do Massacre de Eldorado do Carajás. Foto: Moritz von Dungern
Maria Raimunda, da Coordenação Nacional do Coletivo de Cultura do MST, afirma que o trabalho tem um importante significado como uma nova forma de denúncia e fortalecimento da memória. “Fazemos muitas denúncias sobre o massacre, sobre o assassinato de lideranças, de povos indígenas, de povos quilombolas e povos tradicionais. Fazer a denúncia de toda e qualquer forma de violência contra o ser humano e contra a natureza, na nossa região da Amazônia, vinculado com o projeto de construção de alternativas, passa também pela arte e pela cultura, isso também foi fundamental para nós. A arte e a cultura são dimensões estruturantes do nosso projeto de sociedade, de luta e organização”, destaca.
A voz coletiva de um teatro político
A concepção cênica da peça tem como centralidade o personagem coletivo, o coro, a voz coletiva. Um dos momentos mais intensos do processo de criação e filmagens foi a reencenação do massacre de Eldorado do Carajás, um dos principais temas da peça. A cena foi elaborada em vários dias de ensaios, com a reconstituição dos fatos sendo construída com os próprios sobreviventes. Essa mesma cena também se tornou a mística do ato realizado na própria Curva do S, local do massacre, no último 17 de abril.
Mais de 500 pessoas que participavam do ato acompanharam a cena. Muitos sobreviventes, também presentes naquele dia, participaram do coro final, entoando o canto “que benção, fazer a prece derradeira, dizer adeus a sua maneira, cada grão de terra sobre o corpo é luz”.
Para o diretor da encenação o processo teve muita simbologia: “pela primeira vez uma questão se tornou clara para mim, o nascimento do teatro antigo, com um personagem coletivo, com uma voz coletiva, que é o coro. Nós esquecemos na Europa a consciência do coro. Eu nunca tinha compreendido o coro no teatro Europeu. Nós estudamos como falar no ritmo mas nós nos perguntávamos por quê? Eu só via indivíduos nesses coros. Aqui foi a primeira vez que eu compreendi que era lógico que o coro, o personagem coletivo seja o protagonista porque há um movimento coletivo, que se reúne, que se organiza em uma ideia, uma utopia política e econômica que se encontra na ideia do coro”.
Apontando os limites do teatro pautado pela lógica mercantil, ele afirma que “aqui eu creio que a utilização da arte é muito mais política do que acontecem frequentemente nos círculos artísticos. E é uma força que é baseada na ideia de que queremos estimular a compreensão de alguma coisa, que nós queremos nos desenvolver nós mesmos, e isso encontramos nesse movimento, no MST”.
O projeto contou com militantes que vieram de várias partes do Brasil. A exemplo da jovem militante do MST de Santa Catarina, Tisiane Kilian. “Eu tive que superar certos estigmas que eu tinha contra a tragédia, contra essa forma clássica de arte. Foi um desafio tirar esse preconceito. Hoje eu consigo vê-la como um caminho para manter viva nossa memória, para resgatar as histórias, para provocar problematizar situações, e isso principalmente pela ação dos militantes do MST”, reflete Tisiane.
Tisiane Kilian, militande do MST em Santa Catarina e participante do coro em Antígona na Amazônia. Foto: Moritz von Dungern
“Eu me lembro de nossas leituras do texto, de nossas problematizações sobre passagens romantizadas, da construção coletiva. Então a Antígona é um processo que ganha uma nova forma e uma profundidade estética a partir da relação com os militantes do MST, ela se transforma, ela ganha um novo sentido. Para mim, em vários níveis, eu acho que ela supera uma forma de tragédia clássica que por vezes nos parece como elitista, construída e acessíveis somente para determinados públicos. Quando ela vem pra o Pará, ela é feita por Sem Terras, por indígenas, por militantes, pelo povo, e isso ajuda a superar estigmas e paradigmas. Essa transformação se dá porque o MST não é passivo nesse processo, ele é ativo, transformador e constrói a Antígona na Amazônia”, comentou a jovem.
A peça estreia no dia 13 de maio no teatro NTGent na Bélgica. É uma data de importante simbolismo no Brasil por marcar o “fim”, no plano jurídico e formal, da escravidão. Os inúmeros casos de trabalhadores encontrados em situação análoga à escravidão tornados públicos recentemente evidenciam que a estrutura colonial e escravocrata que configura nossa sociedade segue prevalecendo.
A peça também será acompanhada de uma campanha de denúncia contra a ação de empresas transnacionais que controlam a produção agrícola no mundo, pela defesa da floresta Amazônica e apresentando as soluções representadas pela agricultura camponesa baseada na agroecologia. Produtos agroecológicos das cooperativas do MST serão promovidos com a peça. Antígona na Amazônia será um importante fórum de debate para questões centrais de nossa sociedade e para afirmar que a luta pela terra se mantém como uma pauta de extrema relevância social, política e ambiental.
*Editado por Gustavo Marinho