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“Criminalizar o MST é criminalizar o campo”

Artigo destaca o papel da Reforma Agrária para o desenvolvimento do país e posiciona a luta contra a criminalização do MST

Por Fernando Silveira Franco* e Raul Amorim**

O Núcleo de Agroecologia Apete Caapuã (NAAC) atua desde que surgiu, em 2009 no campus Sorocaba da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar-SO), na construção de conhecimento e tecnologias sociais, na ecologia de saberes entre o conhecimento ecológico, social, cultural e econômico tradicional local, presente nas comunidades de agricultura familiar na região, e o conhecimento sistematizado na academia reconhecido como técnico-científico. Proporciona a criação de novos espaços de diálogo dentro e fora dos limites da universidade, a partir do princípio da indissociabilidade do ensino-pesquisa-extensão e do compromisso com a formação cidadã baseada em justiça social. O NAAC promove, a partir do intercâmbio das ideias presentes em ambientes díspares, a formação de biólogos, geógrafos, professores, agrônomos e engenheiros florestais conscientes da diversidade cultural, econômica e social brasileira, bem como comprometidos e dispostos a utilizar os modos de produção econômica e socialmente sustentáveis apresentados pela Agroecologia.

Um dos territórios prioritários de atuação do NAAC na região Sorocabana é o município de Iperó, onde estão os assentamentos de Ipanema e Horto Bela Vista, no entorno da Floresta Nacional de Ipanema. O Assentamento Ipanema foi oficializado em 1995, contudo seu histórico de ocupação data de 15 de maio de 1992, marco em que cerca de 700 famílias de 13 municípios da região Sorocabana e de Campinas ocuparam o terreno que pertencia ao Poder Público, permanecendo no assentamento 151 famílias. A área foi cenário de diversos enfrentamentos desencadeados por diferentes eventos, entre eles a criação da FLONA de Ipanema, pelo então Presidente da República, Fernando Collor. O Assentamento possui uma área total de 1.712 ha, sendo 1.210 ha cedidos pelo IBAMA e 502 ha provenientes do até então Ministério da Agricultura e da Reforma Agrária, com 150 famílias que se dividem entre a área I e a área II. O Assentamento Horto Bela Vista foi reconhecido pelo Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP) em 1999, mas seu histórico de ocupação data de 1997, resultando em lotes com 887,88 ha, distribuídos para 31 famílias. O Assentamento faz divisa com o município de Tatuí e com a Zona Industrial de Iperó, além de se localizar na zona de amortecimento da FLONA Ipanema.

Ambos os Assentamentos possuem, desde sua formação, um potencial produtivo muito alto: localizados próximos a um grande centro urbano estadual (Sorocaba), com fácil acesso à rodovias e vias municipais e com proximidade do maior entreposto agrícola do interior do estado, CEAGESP. Este potencial se revelou agroecológico, a partir de ações que estimularam e consolidaram projetos para transição agroecológica respaldadas por várias iniciativas da sociedade civil organizada da região (NAAC, Instituto Terra Viva, ABD, CSA-BRASIL). Potencial este que culminou, em 2009, na criação de um curso de graduação em Agronomia com ênfase em Agroecologia pelo PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, que formou 44 assentados/as da reforma agrária do interior do estado de São Paulo, sendo 6 dos assentamentos de Iperó

Um dos projetos que beneficiou agricultores e agricultoras dos dois assentamentos foi o projeto Plantando Águas. Realizado pela Iniciativa Verde entre 2013 e 2015 com financiamento da Petrobras (Programa Petrobras Ambiental), foi uma ação nacional e territorializada que teve como objetivo principal zelar pela conservação, recuperação e manutenção dos recursos hídricos, por meio de unidades demonstrativas de saneamento e Sistemas Agroflorestais (SAF), de modo a impactar ambiental e socialmente a vida dos/as agricultores/as beneficiados/as. O projeto deixou como legado Sistemas Agroflorestais nas propriedades onde foi implementada, que se mantém em atividade até hoje. Outro projeto significativo foi o Projeto de Desenvolvimento Rural Sustentável – Microbacias II – Acesso ao Mercado (PDRS), realizado entre 2010 e 2016, foi desenvolvido pela Secretaria de Agricultura e Abastecimento (SAA) do estado de São Paulo, com intuito de levar aos/às agricultores/as assistência técnica no que tange ao uso de práticas de produção sustentáveis em suas propriedades.

Outra iniciativa agroecológica importante na região é o Instituto Terra Viva de Agroecologia, que, em 2016, criou o Armazém Terra Viva, em conjunto com os/as agricultores/as dos assentamentos. A principal frente do Armazém é a Agroecologia, unindo o campo e a cidade por meio do escoamento de produtos da agricultura familiar e ecológica para a região e para outras regiões metropolitanas paulistas. Além disso, o Armazém também presta assistência técnica para as famílias agricultoras com as quais trabalha, facilitando os processos de transição agroecológica, certificação orgânica, aquisição de sementes e insumos e auxiliando as famílias a programarem suas produções. A atuação do Armazém é a partir de princípios de Economia Solidária, permitindo que os/as agricultores/as participem ativamente de decisões e estratégias para o escoamento de sua produção.

A Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA) é outra aliada no processo de escoamento da produção das famílias, principalmente, do Assentamento Horto Bela Vista, que fazem parte de duas CSAs: CSA Coração (Boituva/SP) e CSA Sorocaba. A CSA é uma iniciativa que trabalha com a premissa do desenvolvimento rural sustentável e com o escoamento de produções orgânicas de modo a aproximar o/a agricultor/a do/a consumidor/a. De forma geral, os/as consumidores/as que se aliam a uma CSA têm o compromisso de cobrir os gastos com a produção, durante um ano, daquela(s) família(s) agricultora(s) e, em contrapartida, os/as consumidores/as recebem os alimentos tendo segurança e ciência de quem produz e como produz. Por essa natureza participativa nos processos de produção, passam de consumidores/as a coagricultores/as.

Alguns agricultores e agricultoras em ambos os assentamentos trabalham com agricultura biodinâmica e possuem certificação biodinâmica (Demeter), a partir da atuação da Associação Brasileira de Agricultura Biodinâmica (ABD), que organiza o Sistema Participativo de Garantia (SPG). São os únicos no mundo a conseguirem esse processo de forma participativa, não havendo outra iniciativa semelhante, ressaltando o papel da reforma agrária de vanguarda na construção de alternativas para a produção de alimentos saudáveis. Outros países (Chile, Colômbia, Argentina e África do Sul) estão em processos iniciais, sendo o Brasil modelo assim como a Certificação Participativa, iniciada pela Rede Ecovida. Além da certificação, e com apoio do NAAC também, são realizadas diversas oficinas de preparados biodinâmicos, biofertilizantes, Apicultura Biodinâmica, entre outras.

Todos esses exemplos citados e outros tantos, além de estudos dos impactos dos mesmos, do ponto de vista ecológico, econômico, cultural e social, estão sistematizados em um número grande de trabalhos científicos, artigos publicados em revistas nacionais e internacionais, capítulos de livro, teses de doutorado, dissertações de mestrado, trabalhos de conclusão de curso, realizados por estudantes e cientistas da UFSCAR e outras instituições da região. Demonstram o potencial da reforma agrária enquanto política de Estado para garantir a dignidade de homens e mulheres que lutam por condições melhores de vida a partir do acesso à terra, direito constitucional de todas e todos os brasileiros. E reforçam a importância de políticas públicas para a viabilidade de processos de manutenção da reprodução social dessas famílias além do lote de terra, como assistência técnica e extensão rural, apoio à comercialização, apoios ao acesso à insumos e equipamentos necessários à produção. Cabe lembrar que as iniciativas aqui citadas não constituem políticas públicas diretas e perenes, mas sim editais apoiados com recursos públicos e privados acessados por organizações não governamentais, que são importantes mas possuem limitações.

O cenário presente coloca diversos desafios de curto, médio e grande prazo para o Brasil. De um lado, a crise climática agrava as condições de vida do povo brasileiro, e reflete no campo com a alteração profunda do regime de chuvas e de temperaturas, que impacta na produção de alimentos do campo. Do outro, o desmantelamento de políticas de soberania alimentar fez do Brasil refém de um modelo de agronegócio para exportação que não alimenta o país, contamina o solo e as pessoas de forma não vista em nenhum lugar no mundo e colocando de volta no mapa da fome uma nação que dele havia saído. E para ambas as questões a reforma agrária e a produção de base agroecológica se despontam como saídas viáveis, possíveis, de alto custo benefício e de um poder imensurável de transformação social. Pois temos experiência diversas pelos assentamentos; temos condições de formar recursos humanos qualificados, de gerar trabalho decente no campo, de combater a pobreza rural, de criar sistemas alimentares resilientes, de recuperar biomas degradados e produzir comida para alimentar cada casa de norte a sul do país. E é por isso que nós, do Núcleo de Agroecologia Apetê Caapuã, defendemos veementemente a reforma agrária e a agroecologia, assim como defendemos todas e todos que as constroem por meio dos movimentos sociais, com destaque para o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST, vítima de mais uma tentativa de criminalização por parte de grupos econômicos que não possuem compromisso com os interesses do povo brasileiro. Foi a luta de trabalhadoras e trabalhadores sem terra organizados no MST que permitiu que centenas de milhares de famílias pudessem estar hoje produzindo alimentos saudáveis, de qualidade e a preço justo para a mesa, inclusive em Iperó. A tentativa de criminalização por meio de narrativas mentirosas e distorcidas abre espaço para a criminalização daquelas e daqueles que diariamente plantam e colhem os alimentos que correspondem a 70% do que o brasileiro consome. Criminalizar o MST é criminalizar o campo, a agricultura familiar, a agroecologia e o direito fundamental de cada cidadão deste país de acessar a terra, a alimentação e a dignidade.

*Professor Associado UFSCAR Campus Sorocaba – Coordenador do Núcleo de Agroecologia Apetê-Caapuã
**Biólogo – Núcleo de Agroecologia Apetê-Caapuã