Vitória

Cícero Vive! Famílias Sem Terra conquistam assentamento Cícero Guedes, em Campos (RJ)

Em portaria publicada esta semana, área com conflitos desde 1998 finalmente pertence aos trabalhadores/as rurais no Rio de Janeiro
Portaria do INCRA representa marco para 185 famílias camponesas, que poderão se dedicar à produção de alimentos no local. Foto: Tarcísio Nascimento

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST

Foram muitos anos de luta, suor e esperançar das famílias Sem Terra, que finalmente puderam comemorar a conquista do direito à terra nesta quarta (23). O decreto de criação do assentamento, publicado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) no Diário Oficial da União, vem da portaria que cria Projeto de Assentamento Cícero Guedes, em Campos Goytacazes, no Rio de Janeiro.

A área de 1.319,8148 hectares foi desapropriada em 2021, pela Justiça Federal, e destinada a assentar famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que ocuparam e lutam pelo local desde 1998, quando um decreto presidencial considerou as terras improdutivas, por não cumprir função social.

O caminho até essa conquista foi marcado por desafios e obstáculos. Só nos últimos anos do acampamento, os ocupantes enfrentaram ameaças, intimidações e tentativas de desmobilização por parte de várias forças, incluindo um superintendente que atuou ativamente para desestruturar a organização das famílias.

A história da Usina Cambahyba é a expressão da formação da grande propriedade, com a exploração de trabalho escravo, dívidas previdenciárias e destruição do meio ambiente no Brasil. A região também ganhou destaque em 2012 com a publicação do livro “Memórias de uma guerra suja”, que trouxe à tona a utilização dos fornos da usina para incineração de corpos de militantes durante a ditadura. Foram pelo menos 12 corpos, incluindo líderes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), levando à sua desapropriação após 21 anos.

Uma área que foi utilizada para incinerar corpos durante a ditadura hoje ali pulsam famílias, pulsam vidas, pulsa a produção de alimentos saudáveis”

— Eró, da direção nacional pelo Rio de Janeiro.

As famílias que participaram da ocupação para o acampamento Cícero Guedes são oriundas de diversos territórios de resistência da região, de processos de lutas atuais e anteriores, como agricultores de São João da Barra despejados no Porto do Açu, trabalhadores do corte de cana de Floresta, Ocupação Nova Horizonte em Guarus, do bairro da Codin. São pessoas que passaram anos embaixo da lona preta em acampamentos como: Mário Lagos, Oziel Alves, Madre Cristina, 17 de Abril e Luís Maranhão.

Anos depois, no dia 24 de Junho de 2021, nasce o acampamento Cícero Guedes, construído com o apoio de diversas organizações, sindicatos, entidades de Direitos Humanos, religiosas, partidos políticos, movimento estudantil, movimentos sociais do município de Campos dos Goytacazes e também entidades nacionais. Cerca de 300 famílias ocuparam uma das fazendas que pertence ao Complexo de Fazendas Cambahyba no Rio de Janeiro, após esta ser desapropriada, no dia 05 de maio, oficialmente para fins de Reforma Agrária pela justiça da 1ª Vara Federal de Campos.

Foto: Tarcisio Nascimento

Campo dos Goytacazes é uma das cidades mais ricas do país, com cerca de 80 latifúndios. Esse contexto de concentração de renda e disputa fundiária ajuda a entender essa onda de violência que atinge a região pois a cidade recebe muito dinheiro dos royalties, o que não representa mudanças sociais e econômicas para os segmentos menos favorecidos da população. Ainda hoje, a cidade tem maioria da população que vive de cestas básicas e programas de compensação social.

Homenagem a Cícero Guedes

O acampamento presta homenagem a Cícero Guedes, líder e lutador assassinado covardemente em 25 de janeiro de 2013, nas terras da Cambahyba. Cícero dedicou sua vida à luta pela Reforma Agrária e pelo acesso à terra. Seu legado inspira as famílias presentes no acampamento, fortalecendo sua determinação em construir um futuro melhor para os camponeses e deu origem ao nome do assentamento que agora honra sua memória.

Nascido em Alagoas, Cícero Guedes enfrentou uma infância marcada por condições precárias, vivenciando fome e trabalho infantil. Em busca de melhores oportunidades, mudou-se para Campos dos Goytacazes, onde encontrou trabalho nos campos de cana-de-açúcar. Sua trajetória também o levou a contribuir nas obras da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), desempenhando o papel de operário na construção civil.

Cícero Guedes. Foto: Arquivo MST

Após participar do primeiro assentamento local e conquistar sua própria terra, Cícero não se afastou da causa que tanto o inspirou. Permaneceu engajado, fortalecendo o MST e oferecendo apoio constante às diversas áreas de luta pela terra na região.

“Cícero se libertou da escravidão; foi alfabetizado somente com mais de 40 anos idade, e conseguiu ter essa liberdade a partir de estar assentado”, lembra Eró sobre Cícero. “Ele acreditava na luta pelas outras e pelos outros que estavam diante da exploração do capital”.

Sua habilidade na produção agroecológica e no uso de técnicas sustentáveis de cultivo, livres de agrotóxicos, tornou-o uma referência. Além disso, sua influência se estendeu à concepção das feiras de Reforma Agrária do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Assim, com sua história de superação e dedicação à causa da terra e da agricultura sustentável, Cícero Guedes permanecerá como um símbolo de inspiração para as gerações futuras

A conquista da terra

Desde o primeiro mês da ocupação já era possível encontrar alface, alface roxa, cebolinha, rabanetes, milho, tudo consorciado e de forma orgânica, assim como melancia, aipim e alguns pés de frutas. Agora, a portaria publicada pelo INCRA representa um marco significativo para as 185 famílias camponesas que poderão se dedicar para a produção de alimentos sem o uso de agrotóxicos, fomentando uma abordagem mais sustentável e saudável para a agricultura.

Foto: @Camillashaw

Após a ocupação em 2021, as famílias se organizaram em equipes que desempenharam diferentes funções. As primeiras atividades concentraram-se na construção de espaços coletivos, como cozinhas e galpões. Posteriormente, as famílias começaram a trabalhar nas áreas de produção de alimentos, unindo esforços para arar as áreas coletivas.

“O assentamento é hoje também uma referência para que possamos avançar no combate da fome e da miséria no campo, e entender que nosso debate sobre a Reforma Agrária Popular é um processo que traz a perspectiva de desenvolvimento a partir de ações sociais, ambientais e econômicas também”, lembra Eró.

O acampamento conta com uma área preparada e cultivável de 1 hectare com projeção de expansão, além das 2500 mudas de hortaliças e 500 mudas de árvores frutíferas distribuídas e plantadas no Bosque Marielle Franco. A produção tem como sistema de irrigação automática “bailarina”, além de um viveiro para produção de novas mudas. Já a juventude do acampamento construiu uma quadra que já realizou campeonatos de futebol Cícero Guedes.

Plantio de mudas no acampamento Cícero Guedes, do MST no Rio de Janeiro. Foto: MST-RJ

A ocupação teve ainda um desafio adicional referente ao contexto da pandemia de Covid-19. Para garantir a segurança e o bem-estar de todos os envolvidos, o setor de Saúde do MST realizou diversas formações sobre os cuidados e medidas de saúde que precisavam ser adotadas coletivamente. O uso de máscaras, o distanciamento social, a higienização frequente das mãos e a limitação de aglomerações tornaram-se práticas essenciais para prevenir a propagação do vírus. A conscientização e o comprometimento de cada Sem Terra foram fundamentais para assegurar a saúde de todos/as, ao mesmo tempo em que mantiveram a luta pela terra e a busca por melhores condições de vida.

Com a área finalmente conquistada, a perspectiva para o futuro é de união e cooperação. A participação de todos, incluindo a universidade, deve impulsionar o desenvolvimento do local e fazer valer sua função social.

O assentamento Cícero Guedes permanece como um símbolo da perseverança das famílias Sem Terra e de sua determinação em construir um futuro melhor através do trabalho na terra que agora chamam de lar.

Essa vitória não é apenas do MST e de suas famílias Sem Terra no RJ, mas também um passo em direção a um futuro mais justo e igualitário. A luta pela terra continua, com a participação ativa das famílias e o apoio de instituições educacionais, visando construir um caminho de sustentabilidade e prosperidade para todos os envolvidos.

Foto: Tarcisio Nascimento

Confira a cronologia da área*

30 de novembro de 1998 – INCRA emite um decreto de desapropriação das fazendas do Complexo de Usinas Cambahyba, em Campos dos Goytacazes.

02 de dezembro – Advogados da Usina entram com Ação de Nulidade da vistoria.

17 de abril de 2000 – Integrantes do MST ocupam algumas fazendas do Complexo de Usinas Cambahyba, consolidando o acampamento Oziel Alves.

2002 – Usineiros mobilizam um novo pedido de reintegração de posse.

08 de julho de 2005 – Dr. André Luis Martins da Silva determina que se realize o despejo, emitido em 2002.

2006 – Polícia Federal, oficiais de justiça e contratados da Usina despejam os trabalhadores, destroem as casas, apreendem os maquinários e destroem a plantação.

2012 – Livro “Memórias de uma guerra” suja revela que os fornos de Cambahyba foram utilizados para incineração de corpos de militantes de esquerda durante o período ditatorial.

07 de agosto de 2012 – Juiz Dario Ribeiro Machado Junior, da 2ª Vara Federal em Campos, decide pela continuação do processo de desapropriação da Usina de Cambahyba, solicitada pelo INCRA em 1998.

02 de novembro de 2012 – MST realiza nova ocupação no Complexo de Cambahyba com cerca de 200 famílias acampamento Luis Maranhão.

25 de janeiro de 2013 – Cícero Guedes dos Santos, da direção estadual do MST, é assassinado com dez tiros na cabeça dentro da Usina Cambahyba.

15 de fevereiro de 2013 – INCRA ajuíza ação de desapropriação do conjunto de fazendas pertencentes à antiga Usina Cambahyba (fazendas Cambahyba, Saquarema e Flora). A área total é de 1.319 ha, possibilitando assentar 111 famílias.

24 de junho de 2021 – MST ocupa área e cria o acampamento Cícero Guedes.

23 de agosto de 2023 – INCRA publica portaria que determina projeto de Assentamento Cícero Guedes.

* Com informações do Mapa de Conflitos – Injustiça ambiental e saúde no Brasil

Confira algumas imagens da ocupação: