Meio ambiente
Enfraquecer o licenciamento ambiental ampliará as desigualdades sociais
Por Julianna Malerba
Da Fase
O licenciamento ambiental significa uma conquista importante da sociedade do ponto de vista do planejamento e regulação estatal, especialmente para os grupos que sofrem diretamente os efeitos da implementação de obras e empreendimentos que causam grandes impactos socioambientais.
Mesmo que ainda insuficiente quanto à participação efetiva dos grupos atingidos, inclusive na decisão quanto à viabilidade do empreendimento, é preciso reconhecer que o licenciamento garante algum grau de envolvimento da sociedade e de debate sobre a implementação de uma obra e, sobretudo, garante uma avaliação e controle técnico dos possíveis impactos negativos. O licenciamento é, portanto, um mecanismo fundamental para que os interesses da coletividade – como a manutenção do meio ambiente
equilibrado, a proteção dos patrimônios culturais, históricos e socioambientais – sejam resguardados e protegidos dos interesses estritamente econômicos.
O Projeto de Lei que dispõe sobre o licenciamento ambiental aprovado em 2021 pela Câmara, agora em tramitação no Senado, no entanto, vai na contramão desse preceito e representa um retrocesso gravíssimo à possibilidade de proteção de bens comuns a essa e às gerações futuras.
A proposta cria um regime geral absolutamente abrangente de exceções que são injustificáveis. O licenciamento antes regra, passa a ser praticamente uma exceção para a liberação de empreendimentos que causam impactos significativos. O PL, por ex, dispensa a obrigatoriedade de licenciamento para várias atividades que possuem enorme impacto sobre a disponibilidade hídrica onde se instalam, como é o caso de obras de implementação de sistemas de tratamento de água e esgoto, de cultivos agrícola e para a pecuária extensiva, semi-intensiva e intensiva. O texto ainda cria a figura do autolicenciamento, que ao lado das dispensas, elimina o controle prévio dos relevantes impactos socioambientais dos empreendimentos, desobrigando a entrega de estudo ambiental e a análise específica pelo órgão ambiental.
O Projeto ainda delega a autoridades e órgãos estatais as definições complementares à lei, permitindo que em cada estado e município a aplicação do licenciamento possa vir a ocorrer de forma distinta, o que seguramente levará a uma corrida pela flexibilização, com as localidades diminuindo suas exigências ambientais a fim de atrair investimentos.
Ampliação das injustiças e desigualdades ambientais
Se aprovado pelo Senado será um passo decisivo ao desmonte de todo o aparato normativo e institucional do Estado de proteção do meio ambiente, com graves repercussões sobre os direitos de forma mais ampla, pois é impossível separar ambiente sociedade. E com consequências ainda mais graves aos grupos historicamente vulnerabilizados, pois sabemos que os custos da degradação ambiental não são distribuídos de forma equânime na sociedade. Ao contrário de um certo “senso comum” ambiental, a poluição não é democrática, não atinge a todos de maneira uniforme e não submete todos os grupos sociais aos mesmos riscos e incertezas. Os grupos que tem menos recursos políticos, financeiros e informacionais são os que sofrem de forma mais intensa os impactos de degradação e, consequentemente, da desregulação ambiental.
É preciso lembrar que para o mercado pouco importam os efeitos não mercantis de suas ações, mais ainda se eles recaem com mais intensidade sobre os mais despossuídos.
Não por acaso, 68,7% das pessoas que vivem nas áreas que poderão ser destruídas ou inundadas no caso de novos rompimentos de barragens em Minas Gerais são negras.
Trata-se, portanto, de uma invisibilidade que é politicamente configurada, por meio de escolhas locacionais discriminatórias, da minimização dos danos, da desinformação e do bloqueio à participação democrática. Mecanismos que deverão se acentuar com a diminuição da capacidade do Estado de atuar de forma preventiva.
Soma-se a isso o fato do projeto estabelecer que apenas os impactos sobre Terras Indígenas homologadas serão consideradas em um processo de demarcação, excluindo todas as demais terras indígenas em processo de demarcação. O mesmo vale para territórios quilombolas. Serão impostos sérios impactos sobre esses grupos sem que sequer devidamente avaliados ou previamente mitigados ou compensados.
É preciso aperfeiçoar o licenciamento em vez de flexibilizá-lo
Juntamente com os membros da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, da qual a FASE é parte, sempre defendemos que os processos de licenciamento ambiental precisavam ser aprimorados para evitarem injustiças ambientais. Temos defendido que as avaliações de impacto devem levar em conta a diversidade de usos e significados dados a ele pelos distintos grupos sociais que compartilham o território a fim, de justamente evitar que os empreendimentos produzam danos irreparáveis à reprodução econômica, social e cultural das coletividades diretamente afetadas.
Para isso, o processo de licenciamento e as avaliações de impacto devem considerar a perspectiva diferenciada que cada grupo social tem sobre o ambiente em que vive e garantir um envolvimento efetivo desses sujeitos – em todas as etapas pelas quais necessariamente passa o projeto – desde sua concepção no planejamento, até o processo de tomada de decisão.
O enfraquecimento do licenciamento ambiental retira uma possibilidade de que o Estado, de fato, garanta que nenhum grupo, seja ele definido por raça, etnia ou classe sócioeconômica irá arcar de maneira desproporcional com as consequências ambientais negativas de determinada obra ou projeto.
Portanto, uma das principais consequências do PL será ampliar os conflitos e as injustiças ambientais no país e, ao mesmo tempo, limitar o poder publico e as próprias organizações da sociedade civil a uma atuação permanente na contenção e reparação de danos, muitos dos quais, sabemos, que jamais poderão ser, de fato, reparados.
*Educadora do Grupo Nacional de Assessoria (GNA)