Guardiãs da Vida
Pesquisadora destaca protagonismo e luta das mulheres contra a crise ambiental
Por Solange Engelmann
Da Página do MST
Ondas de calor intensas, fortes chuvas e secas, inundações, desligamentos, nuvens de poeiras, pessoas desabrigadas e muitas mortes devido aos efeitos climáticos extremos, essas e outras consequências são parte da crise ambiental que atinge o planeta e já faz parte do cotidiano das pessoas no campo e nos centros urbanos.
Como resultado dessa crise, a população mais atingida são famílias que vivem em condições de vulnerabilidade e pobreza nas periferias urbanas, próximas de córregos, rios, encostas etc e os povos do campo, das águas e das florestas, que dependem das condições do clima, da terra, da biodiversidade e dos bens comuns para se alimentar, sobreviver e resistir nesses territórios.
Mas entre essa população, quem são as pessoas que primeiro percebem e tem as suas vidas impactadas pelos efeitos da crise ambiental? São elas, as mulheres, e nesse caso, especialmente as camponesas, indígenas e quilombolas, que são responsáveis pela reprodução da vida nesses espaços e, geralmente também são aquelas que cultivam os alimentos consumidos pelas famílias.
“Nós mulheres, percebemos essas transformações de maneira mais precoce, pela dedicação que temos aos cuidados com a reprodução da vida. A redução das condições para a reprodução da vida nos machuca especialmente. No entanto, nossa percepção nos coloca em movimento para lutar contra o desastre ambiental, para bolar jeitos de contornar ou adiar suas consequências mais funestas”, explica a professora da UNESP e da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) e amiga do MST, Silvia Beatriz Adoue.
Em entrevista exclusiva para a Página do Movimento, Silvia enfatiza o protagonismo das mulheres na luta ambiental, e destaca ainda que as mulheres também são as primeiras a denunciar a destruição e os efeitos nefastos do agronegócio e se opor às cadeias de integração agrícolas propagadas por ele, que acabam levando destruição e desunião para as comunidades rurais.
A crise ambiental também é chamada de crise climática. Nesse contexto, há ainda um debate central sobre o racismo ambiental no Brasil, pois a crise ambiental também atinge as populações de forma desigual a partir das desigualdades históricas já impostas no Brasil, como o racismo estrutural, a desigualdade de gênero e a pobreza; um conjunto de fatores que atingem principalmente as mulheres negras.
Ver mais AQUI: Racismo ambiental, mudanças climáticas e impactos para o povo brasileiro
Confira entrevista na íntegra:
Página do MST: Quais os prejuízos da crise ambiental na vida das mulheres Sem Terra, quilombolas, indígenas e da agricultura familiar?
Silvia: A crise ambiental traz prejuízos para todos os seres do planeta, provocando escassez e reduzindo a diversidade da vida. A espécie humana corre sérios riscos, por conta da velocidade com que as mudanças ambientais acontecem, sem poder se readaptar em tempo a novas condições. Existem regiões inteiras que estão se tornando inabitáveis para muitos seres vivos e a espécie humana se encontra nessa lista. Já estamos testemunhando migrações motivadas por essas causas.
Nós mulheres, percebemos essas transformações de maneira mais precoce, pela dedicação que temos aos cuidados com a reprodução da vida. A redução das condições para a reprodução da vida nos machuca especialmente. No entanto, nossa percepção nos coloca em movimento para lutar contra o desastre ambiental, para bolar jeitos de contornar ou adiar suas consequências mais funestas. A luta pela transição agroecológica está mais presente entre as camponesas. A defesa de práticas de equilíbrio são próprias das comunidades tradicionais, mas são as mulheres destas comunidades quem menos têm sido seduzidas para a integração às cadeias de extração movidas pelo lucro, preferindo a autonomia alimentar que a renda. E isto ocorre em todo o mundo.
Como o avanço do agronegócio no Brasil prejudica o meio ambiente e impacta a vida das mulheres camponesas?
O agronegócio, com os efeitos funestos do desmatamento, o esgotamento do solo e da água e a contaminação com venenos, não apenas afeta as áreas onde atua diretamente. Ao se tratar do padrão hegemônico, apresentado como modelo produtivo, envolve as áreas preservadas e as impacta filtrando veneno nos lençóis freáticos, espalhando seus agrotóxicos e suas “sementes de morte” no vento e assim, contamina os territórios que estavam resguardados. Mas também espalha uma outra “semente”: a ideia sedutora e ilusória de acesso à renda e à ascensão social pelo aumento do consumo. A tentação de imitar esse padrão, se integrar às cadeias de extração agrícola e partir para um “agronegocinho”.
Essa tentação encontra solo mais fértil entre os homens. E não apenas entre os agricultores familiares, como os que produzem laranja para a Cutrale ou tabaco para a Souza Cruz, se tornando proletários no próprio lote; ou os assentados pressionados a arrendar ilegalmente para o setor sucroalcooleiro ou produzindo para a cadeia da soja. Também vemos situações de pressão por arrendamento em Terras Indígenas, em que os laços dentro das comunidades são destruídos pela pressão das cadeias agrícolas.
E é significativo que são as mulheres indígenas ou camponesas as primeiras a se oporem a essa integração.
Qual o papel dos cientistas e das universidades públicas em relação à crise ambiental e na criação de estratégias para diminuir os impactos dessa crise na vida da população camponesa no Brasil?
A universidade, como instituição, não tem condições para traçar estratégias que diminuam o impacto da destruição ambiental. O capital em sua atual dinâmica precisa acelerar a acumulação e isso leva a que mais e mais segmentos das cadeias de acumulação operem por espoliação e destruição. Os Estados tendem a criar condições para a expansão das cadeias extrativas. Em Brasil, o Estado tem aprofundado a matriz exportadora e as instituições de ensino, pesquisa e extensão tendem a pesquisar para aumentar a produtividade dentro desse modelo.
No caso da UNESP, que é a instituição na qual trabalho, se multiplicaram as parcerias público privadas, em que a empresa privada utiliza os laboratórios e grupos de pesquisa para produzir o que eles chamam de “inovação”. Os quadros acadêmicos estão também submetidos ao trabalho alienado.
As iniciativas de pesquisa que se realizam na contracorrente dessa linha, não apenas não contam com os recursos, mas a maioria delas estão desvinculadas das forças sociais capazes de aplicar estratégias que combatam a destruição ambiental. São essas forças, esses movimentos da sociedade os que realmente podem elaborar estratégias para levar adiante. O papel dos cientistas é acompanhar e contribuir com seu trabalho de pesquisa militante com o que os movimentos da sociedade traçarem como estratégia.
Você pode citar algum exemplo nesse sentido?
A Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) faz muitos convênios com universidades públicas para a qualificação técnica e científica de quadros dos movimentos populares. Um desses convênios, realizado com a UNESP resultou no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (TerritoriAL), no qual estou credenciada. A intenção é a produção de pesquisas de interesse dos territórios, e a formação de quadros desses territórios que tenham autonomia para realizar essas pesquisas. Não se trata de uma política afirmativa, de inclusão de indivíduos que provêm de grupos sociais excluídos. É um caso bem singular, como proposta, com muitas dificuldades práticas, que não muda o caráter da universidade como instituição.
Parece-me ingênuo achar que o combate à destruição ambiental seja uma questão de persuasão pela razão. As corporações não agem de maneira racional, senão respondem a seus interesses, às cegas à destruição à qual nos arrastam a todos.
Como a massificação da Agroecologia e as ações do Plano Nacional do MST Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis têm incentivado o protagonismo das mulheres na luta ambiental e nos avanços da Reforma Agrária no país?
São excelentes iniciativas. No entanto, trata-se de uma tarefa hercúlea. A área tomada pelo agronegócio é enorme… não apenas a terra que ocupa, mas a área de controle do que se faz na terra, pela sedução que exerce. Por isso, essas iniciativas são excelentes, mesmo quando tenham um efeito ainda pequeno e, às vezes, de caráter propagandístico.
As alianças entre os povos dentro de cada território, em defesa da autonomia alimentar e a recuperação da terra são tarefas necessárias. As mulheres e os povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, camponeses e também as mulheres trabalhadoras das cidades, que se viram para pôr um prato de comida na mesa, mesmo que silenciosamente, têm sido os setores mais dinâmicos nesse sentido.
Durante a pandemia, isso ficou bastante exposto. Quando parecia que não tinha nada, que era o salve-se quem puder… lá estavam elas e eles, mas sobre todo elas, garantindo a vida. Essa luta é na terra e no território… mas o território implica também o jeito de ser e de pensar. É uma luta pelos corações das pessoas.
Na sua opinião, como a Jornada Nacional das Mulheres Sem Terra realizada na semana do 8 de março deste ano no Brasil trouxe à tona o tema da crise ambiental, suas consequências e alternativas?
As ações dos 8 de março sempre chamam a atenção, pela sua criatividade, porque “correm a cerca” do que é possível. É preciso persistência e presença em todos os territórios e estender a mão, para fazermos juntas. Quem não faz, não aprende só vendo os outros fazerem.
Entre as ações que foram feitas na Jornada Nacional de 8 de Março, me chamou a atenção a ocupação da fazenda Aroeiras, em Lagoa Santa [Minas Gerais], por um motivo que pode parecer distante, uma curiosidade.
Em Lagoa Santa, em 1974, foram encontrados os restos fósseis de uma mulher de 20 anos de idade, que viveu faz 11.500 anos. Os arqueólogos deram a ela o nome de Luzia. Há uma controvérsia sobre os ancestrais de Luzia. Alguns investigadores dizem que o grupo ao que pertencia teria parentesco com os povos nativos de Austrália e Nova Guiné. Outros dizem que, pelos estudos genéticos, parece ser um antepassado dos povos da bacia do rio Doce.
Em todo caso, essa continuidade indica que ela fez parte de um povo que manteve e reproduziu a vida e o equilíbrio com o ambiente.
As mulheres Sem Terra que ocuparam a fazenda Aroeiras, onde o padrão civilizatório trazido pela invasão produziu degradação ambiental, renovam e projetam para o futuro um outro modo de vida, como aquele de Luzia. Como diz a canção Aroeira, de Geraldo Vandré, elas podem dizer: “vim de longe, vou mais longe”.
*Editado por Fernanda Alcântara