Ameaça aos Biomas

Pesquisadores da Embrapa denunciam projeto que altera a lei que protege Vegetação Nativa

Manifesto aponta o grave impacto aos ecossistemas não-florestais e à sustentabilidade da agricultura brasileira
O PL torna as vegetações não-florestais de todo o território nacional em áreas rurais consolidadas, passíveis de conversão de uso do solo – Foto: Ernestino Guarino

Do Brasil de Fato

A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou, no último dia 20, o Projeto de Lei n. 364/2019, que pretende alterar a Lei de Proteção da Vegetação Nativa (Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012). Essa norma reconhece a existência de área rural consolidada — área de imóvel rural com ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008 — em Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal ou de Uso Restrito.

Pesquisadores e analistas da Embrapa lançaram um manifesto repudiando a aprovação na CCJ. Segundo o documento, como resultado da possível aprovação do PL 364/2019, boa parte das vegetações não-florestais, em todos os biomas brasileiros, poderão ser convertidas em outros usos com redução significativa na evapotranspiração, disponibilidade e qualidade da água, na biodiversidade e no estoque de carbono.

“Somos o país mais biodiverso do planeta e isso se dá pela soma de todos os seus biomas e ecossistemas; florestais e não-florestais. O PL 364/2019 relega e desqualifica a proteção dos ecossistemas nativos não-florestais a uma condição inferior, quando comparado às florestas, ou quando foca somente nas árvores. Isso demonstra o enorme desconhecimento daqueles que pautam essa proposição equivocada e destrutiva”, destacam.

Os pesquisadores denunciam que “esse PL é uma proposta insustentável, mal refletida, mal embasada e que ignora a diversidade dos biomas brasileiros e a importância destes para o desenvolvimento do Brasil”.

Leia na íntegra

O impacto deletério da possível aprovação do PL 364/2019 aos ecossistemas não-florestais e à sustentabilidade da agricultura brasileira

Os pesquisadores e analistas da Embrapa, abaixo assinados, vêm a público manifestar total repúdio à aprovação, em 20 de março de 2024, do Projeto de Lei/PL nº 364/2019 pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania/CCJ da Câmara dos Deputados, que pretende alterar a Lei de Proteção da Vegetação Nativa (Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012). O PL 364/2019 sugere que isto se dê “na forma do Substitutivo da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, com subemenda substitutiva, nos termos do Parecer do Relator, Deputado Lucas Redecker”.

A Lei de Proteção da Vegetação Nativa reconhece a existência de áreas rurais consolidadas – área de imóvel rural com ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008 – em Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal ou de Uso Restrito. Esta Lei define os casos e condições passíveis de exploração das áreas rurais consolidadas, localizadas em locais da propriedade onde o uso seria restritivo.

A proposta do PL 364/2019 altera a Lei, ampliando a tipificação das áreas rurais consolidadas, ao incluir nesta categoria áreas de vegetação nativa não-florestal, utilizadas para o pastoreio antes de 22 de julho de 2008. O PL 364/2019 indica que “a consolidação do uso nessas áreas ocorre independentemente de ter sido a vegetação nativa efetivamente convertida”.

Desta maneira, o PL torna as vegetações não-florestais de todo o território nacional em áreas rurais consolidadas, passíveis de conversão de uso do solo, desde que tenham sido usadas por atividades agrossilvipastoris antes de 2008. Ora, campos e savanas em diferentes biomas brasileiros têm sido historicamente usados para o pastoreio do gado, sem que tenham sido convertidos. Trata-se de uso sem alterações significativas na estrutura e funcionamento do sistema e na diversidade de espécies. Portanto, é errado enquadrar o pastoreio em ecossistemas naturais como uma modalidade de área rural consolidada, como edificações, benfeitorias ou atividades agrossilvipastoris onde foi realizada supressão da vegetação nativa.

O Brasil possui seis biomas oficiais (Amazônia, Mata Atlântica, Cerrado, Caatinga, Pantanal e Pampa). A maior parte do nosso território compõe-se de biomas genuinamente florestais, representados pela Amazônia (~50% do território) e pela Mata Atlântica (~13%). Formações naturais não-florestais ocorrem com relevância em todos os biomas. Em savanas e campos, elementos arbustivos e herbáceos dominam a vegetação, constituindo assim parte importante do extraordinário conjunto ambiental que caracteriza a nossa biodiversidade e contribuem para o fluxo de serviços ambientais fundamentais para a sociedade brasileira. Como resultado da possível aprovação do PL 364/2019, boa parte das vegetações não-florestais, em todos os biomas brasileiros, poderão ser convertidas em outros usos com redução significativa na evapotranspiração, disponibilidade e qualidade da água, na biodiversidade e no estoque de carbono.

Se cerca de 63% do território brasileiro compõe-se dos dois biomas florestais, a porção complementar (~37%) e, obviamente, uma porção igualmente importante, não é composta por florestas e isso é genuíno nos biomas Cerrado (~24% do território nacional), Caatinga (~10%), Pampa (~2%) e Pantanal (~2%). Esses biomas, e suas biotas, são riquíssimos em biodiversidade e no fornecimento de serviços ambientais, plenamente equiparados aos dois biomas essencialmente florestais. Eles agregam elementos que não estão presentes naqueles biomas. Sendo assim, há enormes diferenças biológicas que não podem e não devem ser desconsideradas.

Assim como foi dito que nos biomas abertos há trechos de florestas, é preciso lembrar que a Amazônia e a Mata Atlântica também contemplam em sua biodiversidade trechos representativos e riquíssimos de áreas abertas. Não há apenas florestas e árvores nesses biomas. Campos e savanas da Amazônia, Campos de altitude ou de Cima da Serra na Mata Atlântica, são exemplos bem conhecidos de áreas abertas nesses biomas, onde é encontrada rica diversidade em espécies, incluindo elevado grau de endemismos (entenda-se espécies exclusivas). No cenário nacional, dados do Mapbiomas mostram que remanescentes de formações naturais não-florestais ocupam 93,6% da Caatinga, 80,6% do Pantanal, 74,1% do Pampa, 73,7% do Cerrado, 13,5% da Mata Atlântica e 4,8% da Amazônia.  

Somos o país mais biodiverso do planeta e isso se dá pela soma de todos os seus biomas e ecossistemas; florestais e não-florestais. O PL 364/2019 relega e desqualifica a proteção dos ecossistemas nativos não-florestais a uma condição inferior, quando comparado às florestas, ou quando foca somente nas árvores. Isso demonstra o enorme desconhecimento daqueles que pautam essa proposição equivocada e destrutiva.

O Cerrado, por exemplo, bioma que comporta a savana mais rica do planeta, possui cerca de 12,5 mil espécies de plantas angiospermas nativas (angiospermas são plantas com flores), uma cifra equivalente ao que é encontrado na Amazônia brasileira (lembrando que a Amazônia, no Brasil, ocupa o dobro do território do Cerrado). Todo o país possui cerca de 35 mil espécies de plantas nativas. Não são as árvores o grupo mais rico de plantas do Cerrado, do Pantanal, do Pampa ou da Caatinga. No Cerrado, por exemplo, para cada espécie de árvore, há cerca de sete espécies de arbustos e ervas.

No Pampa, aproximadamente 12,5 mil espécies de diferentes organismos coexistem. Espécies com diferentes aptidões, características e importância que não devem ser ignoradas. Campos e savanas nativos são essenciais na produção de água, recurso tão solicitado pelas atividades agrícolas desenvolvidas nesses biomas abertos.

Ao permitir a substituição da vegetação nativa em áreas nativas não-florestais, estamos comprometendo frontalmente as perspectivas positivas de crescimento do próprio agronegócio, amplamente baseado em irrigação e disponibilidade de água. São as áreas abertas que guardam as águas do país e alimentam os aquíferos, os quais vêm sendo usados na agricultura, algumas vezes de modo predatório.

Cada vez mais precisamos utilizar água de maneira racional, equilibrada e inteligente. Não é eliminando os ecossistemas produtores de água, representados pelos campos e savanas do Brasil, e toda a riqueza vegetal que eles compreendem, que avançaremos de maneira sustentável com o agronegócio. Além do impacto ambiental, tal descaracterização dos ecossistemas não-florestais afetará principalmente sua gente, seus modos de vida e sua cultura. Ressalta-se que grande parte da vegetação remanescente não-florestal no Brasil está localizada em propriedades rurais. Estes remanescentes desempenham papel crucial para a conservação dos biomas.

No Pampa, Pantanal e Caatinga, apenas 2,3%, 4,6% e 5,2% da vegetação nativa encontra-se protegida em Unidades de Conservação (UCs), respectivamente, excluindo Áreas de Proteção Ambiental (APAs).

Esse PL é uma proposta insustentável, mal refletida, mal embasada e que ignora a diversidade dos biomas brasileiros e a importância destes para o desenvolvimento do Brasil. Ignora as diferenças geográficas, climáticas, edafológicas, geomorfológicas, hidrológicas, hidrográficas e até culturais do nosso continental país. Ignora que pesquisadores já comprovaram que ecossistemas não-florestais são imprescindíveis para a vida e a sustentabilidade. Ignora que a realidade do Rio Grande do Sul é diferente da realidade de São Paulo, que é diferente da realidade do Pará, ou qualquer outro ente da federação brasileira.

O PL 364/2019 abre flancos para a destruição de inúmeros ecossistemas do país. Ameaça biodiversidade, cultura, serviços ambientais e, por conseguinte, a agricultura nacional. Além disso, o PL vai na contramão do que está proposto no Programa Nacional de Conversão de Pastagens Degradadas, recentemente lançado pelo Governo Federal, que preconiza a utilização racional e eficiente das extensas áreas de pastagens degradadas presentes no país, evitando a expansão agropecuária em áreas de vegetação nativa. Ataca diretamente acordos internacionais os quais o Brasil é signatário e mancha sua imagem como organizador e protagonista da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP) que será realizada em 2025 na cidade de Belém, Pará. Por todos os seus malefícios, fáceis de serem previstos, este PL deve ser rejeitado.

O que diz o PL:

Subemenda substitutiva ao substitutivo da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável ao Projeto de Lei nº 364, de 2019

Altera a Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, para dispor sobre a utilização e proteção da vegetação nativa dos Campos de Altitude associados ou abrangidos pelo bioma Mata Atlântica.

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º Esta Lei altera a Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, para dispor sobre a utilização e proteção da vegetação nativa dos Campos de Altitude associados ou abrangidos pelo bioma Mata Atlântica.

Art. 2º A Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 3º……………………………………………………………………………….

§ 1º…………………………………………………………………………………..

§ 2º Nos imóveis rurais com formações de vegetação nativa predominantemente não florestais, tais como os campos gerais, os campos de altitude e os campos nativos, para os fins do inciso IV do art. 3º, é considerada ocupação antrópica a atividade agrossilvipastoril preexistentes a 22 de julho de 2008 ainda que não tenha implicado a conversão da vegetação nativa, caracterizando-se tais locais, para todos os efeitos desta Lei, como área rural consolidada.” (NR)

…………………………………………………………………………………………

“Art. 82-B. As disposições relativas à regularização ambiental de imóveis rurais previstas nesta Lei se aplicam a todo o território nacional e podem abranger fatos pretéritos à edição desta Lei, inclusive no que se refere à utilização produtiva de áreas rurais consolidadas, às Áreas de Preservação Permanente, à Reserva Legal e às áreas de uso restrito, não se aplicando disposições conflitantes contidas em legislações esparsas, inclusive aquelas que se refiram apenas à parcela do território nacional.

§ 1º Uma vez cumpridas as obrigações de que trata esta Lei, inclusive no âmbito do PRA, o imóvel rural será considerado ambientalmente regularizado no que se refere à utilização produtiva de áreas rurais consolidadas, às Áreas de Preservação Permanente, à Reserva Legal e às áreas de uso restrito, além de outras matérias de fato e de direito constantes no respectivo termo de compromisso ou instrumento congênere.

§ 2º A regularização ambiental indicada no § 1º viabiliza a utilização da área rural consolidada para quaisquer atividades, admitindo-se a substituição daquelas atualmente realizadas por outras atividades produtivas.

§ 3º Não havendo a conceituação, o conselho estadual fará a avaliação via decreto ou legislação pertinente.”

* Assinam esse manifesto Daniel Luis Mascia Vieira, Bruno Machado Telles Walter, Marcelo Fragomeni Simon, Aldicir Scariot, Ernestino Guarino e outros 35 pesquisadores e analistas da Embrapa com conhecimento técnico sobre vegetação nativa, manejo de ecossistemas, biodiversidade e Lei de Proteção da Vegetação Nativa.