Solidariedade Sem Terra
Brigada de militantes do Paraná fortalece no trabalho de reconstrução do Rio Grande do Sul
Por Jade Azevedo
Da Página do MST
A primeira brigada chegou em Nova Santa Rita (RS), no sábado, 25 de maio. No primeiro ônibus muita determinação e apoio à quem mais precisava naquele momento, mas também incertezas e angústias por acompanhar pelas notícias a cobertura do desastre climático no Rio Grande do Sul.
A chuva que começou no dia 27 de abril se prolongou por mais de 10 dias sem parar, sobrecarregando as bacias dos rios Taquari, Caí, Pardo, Jacuí, Sinos e Gravataí, que transbordaram, inundando municípios inteiros. Tanto no interior do estado, quanto na capital Porto Alegre, tudo ficou debaixo d’água. Uma sequência de tragédias inundou os noticiários brasileiros e internacionais. A chuva levou casas, bairros, pessoas, crianças, animais, escolas, cooperativas, plantações inteiras ao ponto de no dia 04 de maio ser considerada a maior tragédia da história.
>> Confira aqui o vídeo sobre a situação no RS: https://youtu.be/YFPljf_MR68?si=LFJD-xOE5l5uwjOK
Por mais que o noticiário desse mais atenção ao cenário das regiões urbanas, mais de 500 famílias Sem Terra foram afetadas e perderam tudo nos nove assentamentos do MST no Rio Grande do Sul. Na região metropolitana de Porto Alegre os assentamentos ficaram totalmente submersos, caso do Sinos, em Nova Santa Rita, e o Integração Gaúcha, em Eldorado do Sul. Segundo estimativa, após 10 dias de chuva, os assentamentos e acampamentos do MST perderam todas as lavouras de arroz que já haviam sido colhidas. Uma perda de 1.500 hectares. Algumas famílias tiveram que ir para abrigos e outras foram realocadas em outros assentamentos. Camponeses e camponesas não perderam somente suas casas e plantações. Cooperativas, escolas, igrejas e cozinhas, padarias, estruturas produtivas, galpões, armazéns, estufas, agroindústrias foram todas inundadas deixando tudo em situação de emergência.
No dia 25 de maio saiu do Paraná a primeira brigada de solidariedade que levou 45 militantes para as regiões de Nova Santa Rita e Eldorado do Sul. Adriana Oliveira, integrante do MST e dirigente estadual do MST no Paraná, convocou movimentos e trabalhadores urbanos que fazem parte do Coletivo Marmitas da Terra para se somarem à brigada do Movimento. Era um grupo de pessoas que saíram do Encontro das Águas em Pinhão, do Maila Sabrina em Ortigueira, Comunidade Padre Roque em Ponta Grossa, assentados do 8 de Abril, em Jardim Alegre, e trabalhadores urbanos de Curitiba e do Movimento por Moradia (MPM).
Segundo Adriana, a brigada contava com militantes de várias áreas: professores, camponeses, assentados, acampados, psicólogos, dirigentes urbanos, engenheiro civil, pedreiro, carpinteiro, juventude, cozinheiros etc., que com muitas mãos e vários talentos individuais e coletivos apoiaram companheiros e companheiras no Rio Grande do Sul na reconstrução de suas vidas. Para ela, a presença de uma brigada trouxe força para a direção do território. “É com ela que reafirmamos pertencer a uma organização política comprometida com a coletividade, que dá amparo político e humano”, diz.
Elza Dissenha, professora aposentada e voluntária do Marmitas da Terra conta que foi com muita expectativa sobre o que iria encontrar. “No noticiário a gente via todo dia imagens de uma terra totalmente arrasada o que me gerava uma expectativa de como as pessoas estariam e como eu ia lidar com isso. Chegando lá você percebe que quando você faz o enfrentamento de maneira coletiva, você faz o problema ser do tamanho da gente, então fomos, com toda a abertura para enfrentar a situação”, conta.
Ela conta que o plano inicial era ir para Eldorado Sul, mas como a água ali ainda não havia baixado o grupo foi para Nova Santa Rita, que estava um pouco mais estruturado. “Nós ficamos num barracão que tinha cozinha e estava acondicionando as doações, alimentos e água. Era nesse mesmo espaço que nós fazíamos a comida para levar a algumas comunidades. Foi uma experiência interessante, porque nós tínhamos um jeito de trabalhar e eles tinham outro, aí fomos entendendo e encontrando o jeito de trabalhar juntos”, afirma.
Todos os dias o grupo acordava cedo, se reunia para planejar o dia, dividir as equipes, mas também para compartilharem o que estavam vivenciando em cada uma das frentes: cozinha, limpeza e infraestrutura. Antônio Simões Nunes, acampado no Pinhão, contou que enquanto limpava a Padaria Sino, dentro do Assentamento Sino, uma senhora agradeceu até pelas brincadeiras. “Nesse momento é importante que a gente consiga trazer a mística da esperança para dar alegria para essas pessoas que só estão chorando nos últimos dias”. Ele conta que os assentados comentavam que se não fosse a solidariedade deles, iriam demorar uns 60 dias para fazer a limpeza dos espaços. “Isso aqui é MST, isso é o Movimento, você trazer a esperança de novo”, ressalta emocionado.
Cláudio Ferreira Klass, companheiro de Ponta Grossa, conta que só estando lá e vendo como está para ter dimensão do estrago que a água fez. Enquanto caminhava pelo Assentamento Sino, onde as 13 famílias que vivem lá perderam tudo, conta que o nível da água chegou a mais de quatro metros de altura e que para cruzar para o outro lado só de bote. A estrada virou rio e a água está contaminada, com odor muito forte”, contou.
Cada militante da brigada ressalta, emocionado, como foi importante ser parte desta ação de solidariedade. Para Adriana, fazer parte desse momento é o que aproxima os militantes de maneira objetiva do grave que é o colapso do sistema capitalista que estamos vivenciando. “Ver a crise climática de perto, conhecer e sentir os problemas do povo, ser solidário, militante, nos faz entender e sentir para onde o sistema capitalista está nos levando. É impossível não sair diferente da experiência de ver, ajudar, ser ombro, ser abraço, ser fortaleza, ser humano. Nenhum curso de formação trará maior aprendizado”, explica.
O Assentamento Sino, por exemplo, ficou totalmente submerso, assim como o Integração Gaúcha em Eldorado do Sul. Todos os nove assentamentos da região metropolitana de Porto Alegre, localizados em Nova Santa Rita, Eldorado do Sul, Manoel Viana e Viamão perderam moradias e produções das mais de mil famílias, além das estruturas produtivas como galpões, armazéns, estufas, padarias e agroindústrias.
No trabalho na cozinha, Elza conta que para ela foi muito simbólico partilhar uma marmita colorida com quem estava vivendo tudo aquilo. “Tudo estava muito cinza lá, por conta da lama e do clima, e na comida a gente tinha o laranja da cenoura, o roxo da beterraba, o vermelho da carne, o branco do arroz e o preto do feijão, todas essas cores eram um alento para o corpo e alma, naquele contexto de destruição”, explica emocionada.
André Reese, psicólogo voluntário do Marmitas da Terra, que também ficou no trabalho da cozinha, conta que quando chegava nos lugares para entregar as marmitas as pessoas abriam um sorriso.
Nos primeiros dias em Santa Rita a equipe de trabalho produzia e entregava cerca de 1.250 marmitas para o Restaurante Popular e duas escolas da prefeitura de Canoas que estavam funcionando como abrigo. Enquanto os outros dois grupos, com cerca de 30 militantes, limpavam e consertavam a igreja Santa Luzia e a padaria no Assentamento Sino. Depois de uma semana, o grupo foi para Eldorado do Sul e encontrou outra realidade.
Eldorado do Sul, 12km de Porto Alegre, pequeno município de 40 mil habitantes, também foi devastado pelas chuvas de maio. A prefeitura estima que 97% da área urbana e 80% da área total do município ficaram submersas. Em Eldorado ficam os assentamentos Integração Gaúcha, Apolônio de Carvalho, Padre Jósimo e o Irga, sede da Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (Cootap), responsável por boa parte do trabalho que faz do MST o maior produtor de arroz orgânico da América Latina.
Assim que a chuva fez uma pausa e a água começou a descer, a comunidade do Assentamento Irga limpou e estruturou a Cootap para implementar a outra cozinha solidária. A brigada então começou a atender os dois municípios. O ônibus fazia o percurso diariamente levando e trazendo a equipe, um percurso que duraria cerca de uma hora, devido às condições da estrada, acontecia em três horas.
Segundo a Agência Brasil, em algumas das ruas de Eldorado ainda é possível ver, mais de 45 dias após a enchente, montanhas de entulhos, carros arrastados pelas águas, abandonados no meio da rua e até casas inteiras de madeira que foram deslocadas com a força da correnteza.
Elza conta que no caminho tudo o que se via era destruição. “É muito diferente de ver pela TV, te dá um certo desalento, de pensar na luta dessas pessoas para tentar ter o mínimo de dignidade. Você chega e encontra os locais destruídos, entulhos na rua e animais mortos em meio aos escombros. As pessoas enfrentam diariamente o risco de infecções, doenças como a leptospirose e a dificuldade de conseguir água”, descreve. Eldorado do Sul ainda tem 5,4 mil pessoas desalojadas e outras 557 em abrigos da cidade ou de municípios vizinhos.
O trabalho de cozinha, limpeza e saúde de cada brigada dura em torno de 15 dias e na sequência é substituída por outra equipe, assim, pouco a pouco e com muitas mãos a solidariedade vai acontecendo. Até metade da primeira quinzena de junho, três grupos já se revezaram, assentados e acampados do Paraná se dividem na cozinha, limpeza, saúde e infraestrutura.
No último dia 17 de junho a escola do Assentamento Eldorado voltou às aulas, “a primeira escola a voltar funcionar, graças a nossa solidariedade, não tem preço, povo de guerra”, conta Joabe Mendes de Oliveira, integrante do MST que estava na brigada de limpeza e infraestrutura.
No último dia 31 de maio, os 60 militantes que estavam na brigada no momento participaram de um curso de formação no Assentamento Irga, durante sua estadia no local. A iniciativa foi organizada pelo Setor de Formação do Movimento junto aos militantes vindos do MST no PR, trabalhadores e trabalhadoras da COOTAP e a Brigada Nacional de Saúde Popular, reforçando que as enchentes no RS é o resultado da ação do sistema capitalista. O desmatamento, a agricultura com base na produção de commodities, em especial para produção de soja, vem causando a destruição da vegetação nativa, bem como dos biomas Pampa e Mata Atlântica e, consequentemente, afetando a capacidade de absorção do solo e o assoreamento dos rios; ocasionando o aquecimento global, que gerou a massa de calor no Sudeste e que bloqueou o avanço das chuvas que se concentraram no RS.
NEGACIONISMO AMBIENTAL
Segundo Otávio Sampaio, professor universitário aposentado e engenheiro florestal com Doutorado em Conserva da Natureza, integrante do Marmitas da Terra e do CEFURIA no projeto de Horta Comunitária, na comunidade Nova Esperança, e que também esteve na brigada, “as causas dessa tragédia são estruturais e conjunturais. Estrutural porque é o resultado do agronegócio que trabalha com desmatamento em larga escala, revolvimento de solo que fica desprotegido acarretando o carregamento pela chuvas e assoreamento dos rios. Dessa forma os rios ficam cada vez mais rasos e qualquer chuva contribui para que haja um transbordamento das enchentes”, afirma.
Para ele, “é necessária a recomposição das matas ciliares, das áreas de preservação permanente, que os leitos dos rios sejam desobstruídos, portanto tem que cavar para que a água tenha fluxo, importante que as construções não sejam feitas em locais próximas aos rios, em áreas de preservação permanente e nas áreas baixas necessariamente as habitações precisam ser elevadas artificialmente”.
Há anos especialistas vêm debatendo e alertando sobre as mudanças climáticas e o agravamento das crises climáticas, resultado do aumento de temperatura do planeta e dos constantes desmatamentos, assoreamento de rios, que o sistema capitalista insiste em chamar de avanço tecnológico, investindo contra a natureza, com foco somente no lucro. Em 2014 a presidenta Dilma já havia recebido um relatório climático, o Brasil 2040, que previa enchentes no Rio Grande do Sul, mas foi considerado alarmista e ignorado. O governo local do Rio Grande do Sul também ignorou e foi negligente com investimentos em possíveis mecanismos de enfrentamento às crises climáticas que já estavam previstos no planejamento estadual desde 2017. Em 2019, o governo estadual também modificou e limitou o Código Ambiental do Rio Grande do Sul.
Diante deste cenário de destruição, mais uma vez a solidariedade Sem Terra deu início a um plano de ações de reconstrução e cuidado de trabalhadoras e trabalhadores do campo. Iniciou-se campanhas de arrecadação, coberturas de comunicação e brigadas de reconstrução, limpeza e também de cozinha para que as famílias Sem Terra e urbanas recebessem alimentação e apoio na reconstrução de suas comunidades.
Para Adriana, a desestruturação total dos órgãos responsáveis pelo controle ambiental, revogação e flexibilização das leis e multas ambientais, crimes do agronegócio, com queimadas e o uso indiscriminado de veneno são o resultado da crise climática que vem dia a dia fortalecendo os desastres com chuvas excessivas, secas e outras respostas extremas da natureza. “Nós das organizações políticas organizadas, tratamos a tragédia no Rio Grande do Sul com solidariedade para com os trabalhadores e trabalhadoras. Porém, a indignação nos toma, pois passamos esses últimos anos sucateados de políticas de preservação de meio ambiente e pelo negacionismo, não tem como a natureza não se revoltar”. Ela ressalta ainda que a crise ambiental continua a matar trabalhadores e trabalhadoras atingindo o povo mais pobre, assim como a Covid-19.
Editado por Maria Silva.