Memória
88 anos do início da Guerra Civil Espanhola
Por Fábio Tomaz
Da Página do MST
Na noite do dia 17 de julho de 1936, na guarnição militar de Melilla (território espanhol no norte da África), oficiais declaravam um levantamento em armas contra o governo republicano da Espanha. O que aparentava ser um caso isolado se mostrou o início de uma trama há muito elaborada. Nas 48 horas seguintes, ocorreram levantamentos sob a mesma orientação em todo o território espanhol, endossados por generais e outras altas patentes do exército.
Esses acontecimentos dariam início a Guerra Civil Espanhola, que se estendeu entre 1936 a 1939, um conflito que se destacou na disputa entre autoritarismo e a democracia da primeira metade do século XX, marcado pela radicalização de forças políticas contraditórias, com visões e objetivos antagônicos.
Uma Espanha atrasada
A Espanha do início do século XX era um país atrasado em comparação às demais economias europeias. Derrotada na guerra contra os Estados Unidos em 1898 (na qual perdera os territórios de Cuba, Porto Rico, Guam e das Ilhas Filipinas), o país não passou por um processo de modernização, sendo marcada por violentas guerras internas. Se manteve como uma instável monarquia constitucional, sustentada por uma classe política de grandes latifundiários, militares e da cúpula da igreja católica.
Se ampliava exigências por maior representação política diante dos altos níveis de desigualdade, em especial das massas camponesas, dos trabalhadores urbanos e alguns setores liberais. Tomava cada vez mais força um movimento popular em prol de uma república democrática e laica.
Diante deste quadro de crescente insatisfação popular, o rei Alfonso XIII (que assumira o trono em 1902 aos 16 anos) apoiou um golpe de estado que estabeleceu a ditadura do militar Miguel Primo de Rivera em 1923. O desgaste gradual desta ditadura e o crescimento do movimento republicano forçaram o rei a convocar novas eleições municipais e provinciais em 1931. No dia 14 de abril, os resultados mostraram a vitória das forças republicanas com amplo apoio social.
No mesmo dia, sem abdicar formalmente, o rei Alfonso XIII abandona o país e parte para o exílio (primeiro em Paris e depois em Roma). É assim instaurada a Segunda República Espanhola, que prontamente estabelece uma nova Constituição para o país.
A República e a esperança democrática
Com o intuito de modernizar a Espanha, a nova Constituição buscava reformar a educação, ampliar a liberdade de expressão e o direito de reunião e manifestação. Destaca-se ainda neste campo o direito de voto das mulheres, além do estabelecimento de “direitos de entidades coletivas”, seguindo o caminho iniciado pela Constituição da Revolução Mexicana de 1917. A República também ampliou a autonomia das regiões catalãs, bascas e galegas do território espanhol, que eram demandas históricas desses povos.
Nos primeiros anos da República, os governos se mostraram moderados. Para algumas organizações da classe trabalhadora, não era radical o suficiente. Para as elites e os católicos mais conservadores, era radical demais. Porém, é evidente que todas essas reformas afetavam as classes dominantes de forma contundente.
O estabelecimento de um Estado laico afetava a cúpula do poder da igreja católica de então, que perdeu controle da educação pública, além de outros privilégios econômicos e políticos que usufruíam desde sempre na Espanha. Isso ampliou a ressonância de um conservadorismo católico cada vez mais radical. Artigos da nova Constituição regulamentavam a propriedade e estabeleciam nacionalizações “nos casos em que a necessidade social assim o exija”, confrontando interesses dos grandes proprietários, assim como as propostas de reforma agrária confrontavam diretamente o setor latifundiário. Parte destes setores, junto com elementos militares, convergem para a Falange, um partido de caráter fascista criado pelo filho do ex-ditador Primo de Rivera em 1933.
Em fevereiro de 1936, a Frente Popular (uma coligação de partidos de esquerda, progressistas e liberais formada em janeiro do mesmo ano) vence as eleições com mais de mais de 60% dos votos, sinalizando um aprofundamento das reformas da República. Se ampliaram as articulações entre setores militares, latifundistas, empresariais e da cúpula conservadora da igreja católica. Dessa conspiração que resulta o citado levantamento em Melilla de 17 de julho. E o início da Guerra Civil.
A guerra e o avanço autoritário
Os levantamentos militares de julho de 1936 não se deram na totalidade das forças armadas. Junto com as tropas fiéis à República (que ainda possuíam críticas aos desejos de radicalidade das organizações trabalhadoras), se somaram na resistência ao golpe todas as forças políticas, partidos e organizações que apoiavam a Frente Popular. Pode-se destacar como componentes da resistência ao golpe: Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), Partido Comunista da Espanha (PCE), Partido Operário de Unificação Marxista (POUM), Esquerda Republicana (IR), União Republicana (UR), União Geral dos Trabalhadores (UGT) e Confederação Nacional do Trabalho (CNT). Não se tratava da defesa de um governo, mas da defesa da própria democracia espanhola, que se radicalizava cada vez mais. Essa unidade em defesa da República conseguiu inicialmente derrotar o golpe em cidades importantes como Madri, Barcelona, Bilbao e Valencia.
Neste contexto, três componentes serão cruciais para dar vantagem aos golpistas. Primeiro, os falangistas se autoproclamaram Nacionalistas, e passaram a propagandear que a vitória da República seria o fim o Estado espanhol, claramente exagerando o Estatuto de Autonomia de algumas regiões conforme estabelecido na Constituição republicana de 1931, se alimentado de tensões e rancores históricos.
Outro fator foi o papel da cúpula da igreja católica, que pregava junto à população que uma vitória República na guerra significaria o fim da religião cristã e da liberdade religiosa. Cumpriu grande papel neste sentido a Opus Dei (uma prelazia católica criada ainda na monarquia), que se tornou mais conservadora e radical. Essa propaganda buscava tornar a guerra civil em uma guerra de caráter religioso. Esse apelo aos componentes identitários criou um ambiente de medo entre parte da população, que sem compreender as reais causas do conflito e os reais interesses por detrás dele, imaginava que o mesmo fosse uma questão de vida ou morte de sua identidade nacional e religiosa.
Talvez o elemento de maior impacto no rumo da guerra se relacionava com o cenário internacional. França e Inglaterra se declararam neutros no conflito, assim como os EUA. Declarando-se nações neutras na guerra, impuseram um embargo de armas total ao país. Portugal (sob a ditadura de António Salazar), Alemanha (Hitler) e Itália (Mussolini) passaram a apoiar os nacionalistas, reconhecendo seu líder, o militar Francisco Franco, como governante legítimo da Espanha. Mussolini e Hitler rompem o embargo de armas e passam a dar suporte econômico e militar aos falangistas. Apenas México e União Soviética declaram apoio a República.
Itália e Alemanha se envolvem diretamente na guerra. Mussolini envia milhares de fascistas italianos (das milícias conhecidas como camisas negras) para fortalecerem as ações do exército nacionalista. Já Hitler utiliza sua força aérea para bombardear indiscriminadamente as cidades controladas pela República. Os bombardeios alemães à cidade de Guernica, no País Basco, serão imortalizados no quadro homônimo do artista Pablo Picasso. A Alemanha desenvolve a tática da Blitzkrieg (guerra relâmpago), que seria depois utilizada pelos nazistas ao longo da Segunda Guerra Mundial.
Em março de 1938, um decreto de Franco apoiado pela cúpula da igreja católica estabelece o fim da liberdade de expressão e de reunião em todos os territórios controlados pelos nacionalistas. A Grã-Bretanha estabelece relações comerciais com o governo nacionalista e depois de intensos bombardeios em 1939, caem as cidades de Barcelona (fevereiro) e Madri (março). Os golpistas conseguem cumprir todos os seus objetivos e em 1º de abril é decretado o fim da guerra e o começo de uma ditadura que duraria 36 anos. Segue ao longo de muitos anos o chamado Terror Branco: o assassinato em massa de prisioneiros, apoiadores e simpatizantes da extinta República.
Resistência, solidariedade e internacionalismo
A Segunda República Espanhola era vista como uma esperança pelos setores progressistas e pela classe trabalhadora. Fugindo principalmente do nazismo alemão e do fascismo italiano, militantes progressistas, socialistas, comunistas e anarquistas residiam no país, onde havia uma real democracia em construção.
No primeiro ano da guerra a República estabeleceu as Brigadas Internacionais (BI), unidades militares de voluntários dentro do exército republicano. Formaram-se sete Brigadas, cada uma com no mínimo três batalhões, algumas chegando a seis. Nas BI se incorporaram mais de 35 mil homens e mulheres, vindos voluntariamente de 53 países, em um gesto de solidariedade internacional poucas vezes visto na história. Muitos outros combatentes internacionalistas também se somaram em forças irregulares fora das BI. Além dos combates, esses internacionalistas criaram importantes redes de apoio e de logística. As BI foram essenciais nas batalhas em defesa de Madri, Teruel, Guadalajara, Zaragoza, Aragón, Valencia e muitas outras.
Porém, a participação cada vez maior de combatentes de outros países aumentava a pressão vinda de países “neutros” na guerra. Por estes foi proposto um acordo de repatriação dos combatentes estrangeiros. A República, debilitada pelas intervenções alemãs e italianas, viu no acordo uma possibilidade de fragilizar o exército nacionalista. Assim, as BI foram dissolvidas em agosto de 1938.
Juan Negrín, então líder da República, proferiu que todos brigadistas teriam, uma vez terminada a guerra, o direito a cidadania espanhola. Disse ainda: “Espanha será sempre uma pátria de vocês. E os espanhóis, seus irmãos”. Na última homenagem aos brigadistas organizada pelo povo de Barcelona, Dolores Ibarruri, militante revolucionária conhecida como La Pasionaria, discursa em agradecimento:
Abandonaram tudo (…) e vieram a nós para dizer: “Aqui estamos! Sua causa (…) é a causa comum de toda a humanidade avançada e progressista.” Não os esqueceremos; e quando a oliveira da paz florescer, entrelaçada com as láureas da vitória da República Espanhola, voltem!
Já Francisco Franco, chefe do exército nacionalista, não cumpriu sua parte nos acordos. Tropas alemãs e italianas seguiram na Espanha meses após o fim da guerra. Estima-se que cerca de 10 mil brigadistas foram mortos em combate. Uma parte conseguiu retornar a seus países, muitos não podiam voltar a seus países controlados por regimes autoritários. Aqueles capturados pelo exército nacionalista eram torturados e executados. No caso dos que provinham da Alemanha e Itália, eram entregues a Hitler e Mussolini.
E tratando-se das Brigadas Internacionais, é sempre importante destacar o nome de Apolônio de Carvalho, que se somou nas BI, junto a outros 20 brasileiros. Com o fim da guerra, Apolônio fugiu para a França, onde foi preso em um campo de refugiados. Ao conseguir escapar, não retornou ao Brasil, mas se somou na resistência francesa contra a ocupação nazista, inclusive tornando-se comandante.
Considerado herói na França, foi condecorado com a Legião de Honra. Participou da resistência a ditadura militar no Brasil (foi perseguido e preso), conseguiu chegar à Argélia, onde seguiu seu trabalho internacionalista. Certamente, Apolônio de Carvalho é o maior exemplo de internacionalismo e compromisso com a liberdade da história brasileira.
Conhecer a história
A história da Guerra Civil Espanhola, com suas tragédias e suas glórias, é um marco para o entendimento do século XX. Como todo processo histórico, se moveu a partir de muitas contradições, em especial dos setores populares. Porém não se imaginava que o simples sonho de uma democracia em um país atrasado despertasse forças tão violentas e custasse tantas vidas. Simboliza o conflito entre a democracia e o autoritarismo, entre a liberdade e a intolerância. Contém em si a marca do nazifascismo, como um preâmbulo terrível do que essas ideologias seriam capazes de fazer. Expressa o horror da guerra e a natureza daqueles que as provocam. Mas traz também todo o exemplo de resistência popular, de valores comuns e de uma solidariedade que não encontra fronteiras.
Passados tantos anos, muitas questões da Guerra Civil Espanhola ainda são pertinentes. Democracia e autoritarismo são debates extremamente atuais. A história se repete como tragédia ou farsa, disse Marx. Conhecer a história é essencial para compreender o presente. E compreender o presente é condição para transformá-lo.
Estudar e conhecer mais a fundo a complexidade desse momento histórico é uma tarefa essencial para as lutas por democracia e justiça em qualquer parte. Aproximar-se da Guerra Civil Espanhola é sim lamentar suas tristezas. Mas também é o exercício – e isso é o mais necessário – de celebrar suas belezas.
Algumas sugestões para começar um estudo sobre o assunto:
Livros históricos
A Guerra Civil Espanhola, de Josep Buades. Editora Contexto, 2013.
A Guerra Civil Espanhola, de Francisco Romero Salvadó. Editora Zahar, 2008.
O Século de Sangue (1914 -2014), de Emmanuel Hecht e Pierre Servent. Editora Contexto, 2015.
Mulheres Livres: a luta pela emancipação feminina e a Guerra Civil Espanhola, de Martha Ackelsberg. Editora Elefante, 2019.
A solidariedade antifascista: brasileiros na Guerra Civil Espanhola, de Thaís Battibugli. Editora Autores Associadas, 2004.
Literatura
Por quem os sinos dobram. Ernest Hemingway. Editora Bertrand Brasil, 2014.
Longa pétala de mar, de Isabel Allende. Editora Bertrand Brasil, 2019.
Documentário
Vale a pena sonhar. Direção de Stela Grisotti.