Contra as LGBTIfobias

Transexualidade, Travestilidade e Reforma Agrária Popular

Coluna Aromas de março deste mês reafirma a importância do respeito à diversidade das/os sujeitas/os LGBTI+ nas construção de relações humanas livres de violências
Foto: MST

Por Coletivo LGBTI+ Sem Terra/Setor de Gênero
Da Página do MST

 Ao Capital interessa a violência, a nós interessa a emancipação.”  

Falar sobre o campesinato no Brasil nos remete a um discurso hegemonicamente masculinizado, heterossexual e conservador, reafirmado sobretudo nestes tempos de ascenso de ideologias ultraconservadora e negacionistas. No entanto, o campesinato é formado por uma diversidade de sujeitos sociais, atravessados pela identidade de gênero e orientação sexual e um conjunto de modos e visões de vida que apontam a necessidade de pensarmos sua conformação, com afinco e sensibilidade, a partir de pautas humanas e sociais emancipatórias. 

O Brasil tem sua história permeada pela violência contra os povos e contra a natureza, pela desigual distribuição de renda e concentração das terras. Esse domínio das riquezas brasileiras pelos colonizadores deixou marcas que se arrastam desde a Colônia até os dias atuais e acentuam ainda mais as desigualdades sociais e as crises civilizatórios que a sociedade brasileira vem enfrentando, em que as soluções propostas continuam fundamentadas na expropriação, no lucro e na financeirização da vida às custas de muita violência. 

Esse processo histórico evidencia a dimensão da luta pela terra no Brasil, como parte da luta de resistência histórica desses povos e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é herdeiro dessa luta e resistência. Formado em 1984, esse sujeito nasce com caráter de ser uma construção das massas, se consolidando com três objetivos mobilizadores que perduram até hoje: a luta pela terra, por Reforma Agrária e por transformação social. 

Passados 40 anos de sua fundação, o MST, embora ainda não tenha realizado por inteiro os objetivos estabelecidos desde a sua criação, tem cumprido um importante papel nos processos de organização das lutas e resistências ao modelo hegemônico de agricultura, do agronegócio, que é uma das expressões do capital nacional e internacional no campo, denunciando a mercantilização e financeirização da vida, e recolocando o campo, a Reforma Agrária e a agricultura familiar camponesa na pauta da sociedade. Nesta trajetória, também fomos compreendendo que “só a terra não basta!” e que para alcançarmos nosso terceiro objetivo, a “transformação social”, teríamos que ampliar nossos horizontes emancipatórios. 

Em 2014, em nosso VI Congresso Nacional do MST, aprovamos nosso Programa de Reforma Agrária Popular, programa este construído com o empenho e a mística revolucionária de milhares de sujeitos Sem Terra acampados e assentados, das escolas do campo, das cooperativas e de todos os demais espaços organizativos das áreas da Reforma Agrária. Um programa que mostra um amadurecimento na nossa análise sobre o agronegócio e as dinâmicas do capital no campo e deste em sua interrelação com a cidade, apontando a insuficiência da Reforma Agrária clássica para dar respostas às lutas do povo e afirmando a Reforma Agrária Popular, como uma proposição estratégica para esse tempo histórico. 

O Programa Agrário delimita sete eixos centrais para nossa atuação, sendo eles: Terra, Natureza, Sementes, Produção, Energia, Educação e Cultura, os Direitos Sociais o debate dele nos fez olhar com maior sensibilidade para nossa organicidade e, a partir dela, fomos tomando consciência de que a materialidade da Reforma Agrária Popular só se daria em nossos territórios se houvesse, nesta construção coletiva, espaço para todas as/os sujeitas/os que constroem juntos os processos da luta e resistência, pois é aí que se reafirma o caráter popular da proposta Sem Terra de Reforma Agrária.

A base social do MST é composta pela diversidade de sujeitos sociais – são mulheres, homens, jovens, crianças, idosos\as, negros/as, indígenas, brancas/os, LGBTI+ e outros. E, assim também é composto o povo do campo, das águas e das florestas. Quando se reafirma o caráter popular da luta, também se faz necessário compreender que, para que este se efetive, é imprescindível dar visibilidade a essas sujeitas e sujeitos diversos e Sem Terra. É bem verdade que este foi, e ainda é, um processo desafiador, mas as sujeitas/os diversos dessa organização seguem se desafiando, já que a visão binária, patriarcal, heterossexista e racista, que são pilares do modo de produção capitalista, se expressa cotidianamente em nossas relações e colocando-se como contradição aos movimentos que pautam a transformação da sociedade que devemos enfrentar. 

No entanto, como um movimento de direção coletiva, a auto-organização dos sujeitos é sempre uma possibilidade histórica, tanto que, em 2015, realiza-se na Escola Nacional Florestan Fernandes o primeiro Seminário Nacional “O MST e da diversidade”, um importante espaços para debater o papel dos sujeitos diversos na organização, desde a sua identidade de gênero e orientação sexual. Como encaminhamento, constitui-se o Coletivo Nacional LGBTI+ Sem Terra, que nasce com o desafio político de aprofundar o debate, os processos de formação e a inserção destes sujeitos, desde a base, buscando elementos de aprofundamento entre o debate da diversidade e a questão agrária, vinculado ao debate de classe e território, pois, as/os sujeitas/os LGBTI+ Sem Terra são, antes de mais nada, camponeses/as e devem também compor nossas instâncias políticas. Assim, reafirma-se que é inadmissível que para ser quem é, e amar quem se deseja amar, as sujeitas/os necessitem sair de seus territórios, esconder-se ou se desvincular de sua organização e identidade.

Pode-se afirmar que já temos certo acúmulo no debate geral sobre a diversidade sexual dentro do MST, mas ainda é preciso avançar, principalmente na luta por pautas históricas das LGBTI+ e no reconhecimento a uma identidade de gênero específica e revolucionária, que a história e os movimentos reacionários forçam ao apagamento: travestis e transexuais. Estas/es sujeitas/os nunca tiveram trégua no Brasil, sempre estiveram na ponta de lança dos preconceitos e das discriminações. Essa afirmação é possível de ser feita porque, embora grande da população LGBTI+ ostente uma identidade de gênero que difere da imposta pelos padrões heteronormativos, em que o homem tem que ser “homem” e que a mulher tem que ser “mulher”, apesar do estranhamento, isso pode ser suavizado, pois o padrão cisgênero (identificar-se com o sexo biológico de nascimento) pode ter mais passibilidade (aceitação) aos olhos das pessoas. Já no caso de transgêneros e travesti, esse estranhamento costuma se traduzir em múltiplas facetas de violências e até mesmo no assassinato dessa população. 

Daiane Vasconcelos, integrante do Coletivo LGBTI+ Sem Terra do Mato Grosso do Sul. Foto: MST

Em maio de 2024, ocorreu o primeiro encontro de Travestis e Transexuais do MST, na cidade de Fortaleza, Ceará, fruto de um esforço coletivo do MST, reuniu 70 travestis e transexuais Sem Terra para debater sobre suas vivências e experiências de vida nas áreas da Reforma Agrária, apontando caminhos para a emancipação humana, no marco histórico dos 40 anos do MST, mesmo que sua trajetória seja atravessada por tantos algozes. 

O Encontro foi importante, na medida em que evidenciou que, ainda hoje, Travestis e Transexuais Sem Terra convivem com violências fruto de preconceitos, como do senso comum de que abdicaram do sexo atribuído no nascimento para se identificarem com o sexo oposto. Em uma sociedade machista como a brasileira, a população trans e travesti é alvo fácil de discriminação, violência, transfobia e assassinato também no campo e em nossos territórios. 

Transexuais e travestis rompem com padrões cis-hétero-normativos ao assumirem sua identidade e, por isso, são colocadas/os à margem da sociedade. O que é expresso no acesso aos processos de educação e escolarização, à saúde, segurança, ou seja, lhes são negados os direitos humanos básicos reconhecidos pela Constituição Federal, dificultando muito sua inserção social.

O avanço de uma direita ultraconservadora tem revitalizado o discurso de ódio e a marginalização desta comunidade, em que até os termos “travestis e transexual” adquirem significado pejorativo e a violência se expressa de forma alarmante. Se nosso Movimento enuncia que “o sangue LGBTI também é sangue Sem Terra”, na construção da sociedade e da sociabilidade que queremos, as sujeitas/os e o próprio MST, enquanto organização política, precisam reafirmar esta identidade e fortalecer a participação destes/as sujeitos/as. 

No marco das quatro décadas do MST, e quase uma década do Coletivo LGBTI+ Sem Terra, temos melhor compreensão sobre a necessidade e a viabilidade de um Programa de Reforma Agrária Popular rumo à emancipação humana, e o entendimento coletivo de que esse programa só terá materialidade se posto em prática a partir das/os sujeitas/os que o constroem na ação do dia a dia, seja nas ocupações de terra, seja nas escolas, cooperativas, assentamentos, centros de formação, enfim, todas as áreas da Reforma Agrária.

Reafirmando que nosso Movimento só produz uma diversidade de alimentos porque as/os sujeitas/os do processo também são diversas/os e que para que tenhamos alimentos saudáveis não basta somente não usar veneno, mas que as relações humanas, no ato do trabalho no campo, no cuidado com a produção e entre as pessoas também precisam ser de respeito e afetos, para que não se reproduza violências e nem LGBTIfobias.

Glossário

Heterossexuais: Quando se sentem atraídas por pessoas do sexo/gênero oposto;

Homossexual: Quando se sentem atraídas por pessoas do mesmo sexo/gênero, e aqui estão as pessoas gays (homens que sentem atração sexual/afetiva por outro homem), e lésbicas (mulheres que sentem atração afetiva/sexual por outras mulheres); 

Bissexual: Quando se sentem atraídas por pessoas de ambos os sexos/gêneros, semelhante e oposto;

Travesti: É a identidade de gênero de uma pessoa que foi designada homem no seu nascimento, mas se entende como uma figura feminina. Durante muito tempo, o termo era considerado pejorativo ou associado à prostituição. Contudo, atualmente o conceito vem sendo ressignificado e passou a ter mais peso político.

Transexual: É uma pessoa que não se identifica com o sexo biológico (masculino e feminino) com o qual nasceu. Assim, podemos dizer que uma pessoa é definida como transexual quando transita do seu sexo biológico e se adequa ao sexo com o qual se identifica, seja homem ou mulher.

Cisgênero: É a pessoa que se identifica com o sexo biológico (masculino ou feminino) do nascimento.

*Editado por Solange Engelmann