Aromas de Março

Frente a crise ambiental, colocar os cuidados e a reprodução da vida no centro

Coluna Aromas de Março traz a força da organização das mulheres na resistência ambiental e na construção de alternativas ao capitalismo

Foto: Mídia Ninja
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Natália Lobo
Da Página do MST

Quando avançam os projetos de destruição da natureza e dos bens comuns, é o corpo das mulheres que está no caminho. Dizemos, a partir da Economia Feminista, que a natureza, o corpo e o trabalho das mulheres são variáveis de ajuste para a reprodução do sistema. Quando querem aumentar seus lucros, aumentam a taxa de exploração da natureza e do trabalho, utilizando-os como ferramentas que estão sempre à disposição ilimitada. As fronteiras da mercantilização da natureza se alargam, o trabalho não remunerado e a precarização da vida aumentam. O trabalho das mulheres é usado para conciliar lógicas e tempos contraditórios: o do mercado, acelerado e movido pelos lucros; e do cuidado da vida humana, que exige trabalho e disponibilidade permanente de inúmeras mulheres para responder às necessidades básicas das pessoas. 

Mas é também o corpo, o trabalho e a luta das mulheres que, em muitas partes do mundo, colocam um freio na exploração da natureza. Silvia Federici (2004) coloca que as mulheres, por serem os sujeitos principais do trabalho reprodutivo, tanto histórica quanto atualmente, estão mais comprometidas com a defesa dos bens comuns. Vemos isso nos movimentos feministas ao redor do mundo, mas também na vida cotidiana das mulheres em resistência. Uma agricultora da Zona da Mata mineira contou para suas companheiras, por exemplo, que trava uma batalha cotidiana com seu marido contra o uso de agrotóxicos, durante a Caravana Agroecológica e Feminista na Zona da Mata. Quando o esposo ameaçou aplicar agrotóxico na lavoura de café, ela disse: “Se você jogar veneno, você vai perder uma companheira duas vezes: como trabalhadora e como esposa!”. Ela enfatiza: “eu sou uma revolucionária do agrotóxico. Eu vou trabalhar com ele sim, mas se for para jogar agrotóxico… tchau! Prefiro cortar a lavoura do que jogar veneno!”. É um exemplo de resistência cotidiana que conversa com o de muitas outras mulheres que, inclusive por terem sido marginalizadas do processo da chamada Revolução Verde, historicamente mantiveram suas práticas agrícolas agroecológicas, mesmo que isso tenha significado que sua produção ficasse concentrada ao quintal, à horta, ao pomar e à criação de pequenos animais. Por conta disso, as mulheres são as guardiãs dos conhecimentos e da diversidade de espécies da agroecologia, práticas muito desvalorizadas pelo mercado mas centrais para o cuidado com a biodiversidade, para a soberania alimentar e na construção de sistemas agroalimentares resistentes às mudanças climáticas.

Vemos, assim, que as mulheres são a linha de frente nas respostas concretas à crise ambiental. Essa crise talvez seja a maior expressão da crise do sistema capitalista que, por sua vez, é o verdadeiro responsável pelas mudanças climáticas e pela destruição da natureza na escala que temos visto. As respostas que o sistema está dando a ela são totalmente insuficientes. As Conferências do Clima da ONU, espaços que teoricamente serviriam para dar uma resposta global e articulada a esta crise, se mostram um fracasso. A cada ano que passa, elas continuam sendo um espaço que não avança na resolução dos problemas. São na verdade majoritariamente uma grande feira de negócios do capitalismo verde, que a cada dia inventa novas formas de avançar em seus negócios com uma maquiagem de sustentabilidade. 

É por isso que movimentos sociais e populares do Brasil e do mundo constroem, neste ano de 2025, a Cúpula dos Povos Rumo a COP 30. A Cúpula dos Povos é um espaço autônomo e independente em relação à COP oficial, que acontecerá em Belém no mês de novembro, com o objetivo de fortalecer a construção popular e convergir pautas de unidade dos movimentos sociais. É acima de tudo um processo político de convergência que coloca em diálogo as resistências mais importantes do nosso tempo: a construção do internacionalismo, a defesa da democracia, a luta contra a extrema direita, o fascismo, as guerras, a financeirização da natureza e a crise do clima.

Como movimentos, temos uma trajetória de organização de espaços como este, que convergem uma amplitude de sujeitos políticos para denunciar e impedir o avanço das causas da crise capitalista e apontar saídas. Na Cúpula dos Povos da Rio+20 em 2012, em um contexto de expansão da Economia Verde, a convergência dos movimentos construiu uma crítica compartilhada à mercantilização da natureza. Para o feminismo, foi um momento importante de construir uma visão de que não queremos “incluir” as mulheres nas iniciativas de mercantilização, buscando uma “representatividade” dentro do modelo capitalista, mas sim questionar a lógica por trás da Economia Verde e construir um outro projeto de sociedade, em aliança com outros movimentos, em que o feminismo seja um eixo estruturante e compartilhado. 

Frente aos projetos ligados à mercantilização e à financeirização da natureza, como o mercado de créditos de carbono e similares, é necessário propor alternativas baseadas na soberania popular, alimentar, energética e tecnológica. Nas nossas elaborações, o tema das tecnologias digitais merece cada vez mais atenção.  Hoje, as big techs representam a maior parte do poder econômico mundial e os dados são a matéria prima base para o desenvolvimento tecnológico nessa fase do capitalismo. A geração, armazenamento e processamento de dados requerem muita energia e minério, ainda que isso fique oculto. De forma similar, vemos que o setor energético e as cadeias agroalimentares se expandem constantemente, de maneira insustentável e mantendo a fome e a pobreza energética na vida das pessoas. 

Temos o grande desafio de construir respostas para a crise que, ao mesmo tempo, protejam e recuperem os bens comuns e coloquem a reprodução da vida no centro. Isso implica aprender que todos nós, seres humanos, somos interdependentes e ecodependentes. Precisamos dos outros e do cuidado para viver, assim como de uma relação harmônica com a natureza. Nosso desafio é concretizar este paradigma em um projeto que seja capaz de organizar a reprodução cotidiana da vida não como algo exclusivo das mulheres, mas como algo que esteja no centro do modelo econômico e da vida em sociedade.

*Natália Lobo é militante da Marcha Mundial das Mulheres e da equipe da Sempreviva Organização Feminista (SOF)

FEDERICI, Silvia. O Feminismo e as Políticas do Comum em uma era de acumulação primitiva. In: MORENO, Renata (org.). Feminismo, Economia e Política. São Paulo: SOF Sempreviva Organização Feminista, 2014.