Solidariedade Sem Terra
‘A solidariedade entre os povos está no centro do internacionalismo do MST’, diz dirigente
O apoio à reconstrução e ao fortalecimento de países atacados pelo imperialismo e pelo colonialismo está entre as prioridades das ações internacionalistas do Movimento para o próximo período

Por Ednubia Ghisi, do Setor de Comunicação e Cultura do MST no Paraná
Da Página do MST
A floresta amazônica expande as fronteiras entre a região Norte do Brasil e outros oito países da América Latina. Juntas, essas nove nações guardam a maior floresta tropical do mundo, em tamanho e biodiversidade, e por isso têm papel-chave para o equilíbrio climático e para o futuro da vida no planeta. Este bioma de imensas riquezas naturais sofre com a desnacionalização das terras, a privatização dos bens da natureza e a violência sobre seus povos, em nome da ganância do capital, pelas mãos do agronegócio, mineração e exploração hídrica.
Rodeados pela simbologia do bioma amazônico, em Belém do Pará, cerca de 400 militantes do MST participaram da Reunião da Coordenação Nacional do Movimento, entre 20 e 24 de janeiro. O internacionalismo esteve entre os temas centrais do encontro, diante do cenário de acirramento da luta de classes provocada pela crise do capitalismo e o declínio do imperialismo norte-americano.
Diante de uma crise de hegemonia, os Estados Unidos avançam em uma ofensiva muito mais hostil frente às resistências e aos processos que se contrapõem ao modelo histórico do imperialismo e do capitalismo norte-americano. Têm, hoje, grandes polos de disputa internacional, e o que está em jogo são os grandes interesses do capital”, como explica Messilene Gorete, da direção do Setor de Internacionalismo do MST, se referindo especialmente à polarização dos EUA com a economia chinesa.

Entre os efeitos globalizados da crise do sistema capitalista está a crise ambiental. Com catástrofes por enchentes e incêndios, cerca de 50% da população do planeta (4 bilhões de pessoas) já sofre com falta d’água em pelo menos um mês ao ano. A previsão é de que até 2025 cerca de 1,8 bilhão de pessoas enfrentem “escassez absoluta de água“, como denomina a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). “Temos visto os grandes desastres e acompanhado com muita atenção, que não é um problema só do Brasil. É parte das evidências do que significa a sanha do capital e a sua crise”, completa Messilene.
Unidade popular internacional
A ação conjunta entre os povos organizados do mundo é uma necessidade histórica e um princípio para o Movimento. “O MST não existiria se não tivesse nosso internacionalismo como esse princípio ético, moral, de construção, para além de entender que para construir um modelo de sociedade diferente no Brasil é necessário, e obrigatório, a gente construir com outros e outras, para além das nossas fronteiras”, explica Messilene.
O movimento contribuiu na fundação e integra a coordenação de três organizações. A mais antiga é a Via Campesina, articulação do campo criada em 1992. Ela está presente em 81 países, por meio de 180 organizações camponesas. As organizações e movimentos populares urbanos, sindicais, partidários e populares estão unificadas em torno da Assembleia Internacional dos Povos, a AIP. Criada em 2019, está presente nos cinco continentes, com 23 escolas de formação na América Latina. Já a Articulação de Movimentos da América Latina (ALBA), desde 2007, congrega nações da região, em 25 países e com 400 diferentes forças populares.
As linhas de ação da AIP e da ALBA convergem na luta contra o capitalismo, imperialismo, colonialismo, patriarcado e racismo. Assim como na solidariedade entre os povos, unidade em torno de ações práticas e defesa da vida e do meio ambiente.
Messilene explica que essas organizações são espaços para elaboração de análises comuns, construção de ações conjuntas e para “apresentar para a humanidade uma proposta de vida e de sociedade que seja alternativa a esse capital que está em crise, mas que ainda se articula com os estados, com os governos e, ao mesmo tempo, com as grandes burguesias e oligarquias nos nossos países”.
Solidariedade para a reconstrução
A mística em torno do Internacionalismo transformou o palco da Reunião Nacional em um cenário de destruição, simbolizando escombros, móveis, tijolos e objetos espalhados pelo chão, ao som de tiros e à batida de tambores. As bandeiras de quatro nações se ergueram em meio à destruição: Palestina, Haiti, Cuba e Venezuela.
De diferentes maneiras, estes quatro países enfrentam a sanha do imperialismo, com bloqueio econômico, massacre e interferência militar. São povos com os quais o povo Sem Terra é solidário, e que têm recebido brigadas de trabalho nos últimos anos. O apoio a esses povos manteve-se reafirmado como central nas ações internacionalistas do MST no próximo período.

Na carta final da Reunião da Coordenação Nacional, o MST frisou o compromisso em “Exercitar o internacionalismo e a solidariedade como princípios, valores e estratégias para construir a luta socialista; de mãos dadas com Cuba, Palestina, Venezuela, Haiti, os povos da África e com a classe trabalhadora do mundo”, conforme trecho do documento. Messilene sintetiza a “solidariedade entre os povos” como o centro do internacionalismo do MST, guia para as ações prioritárias.
O cessar-fogo no território palestino reacende a esperança de reconstrução de vida digna e liberdade para o povo. “Temos a grande missão de fortalecer mais ainda a solidariedade no sentido prático da reconstrução e do apoio concreto, com as nossas experiências de produzir, de construir, de ajudar o povo de Gaza a reconstruir a vida que foi destruída nesse período”, garante Messilene.
Durante o massacre promovido pelo exército de Israel contra a Palestina, o Movimento enviou a doação de cerca de 13 toneladas de alimentos, em parceria com o Ministério das Relações Exteriores.


Em Cuba, o recrudescimento do embargo econômico imposto pelos EUA provoca uma das crises mais profundas desde a revolução na Ilha. Messilene explica as consequências do bloqueio econômico: “Muitas das questões econômicas que Cuba poderia resolver internamente o país não consegue, pois não pode fazer relação externa. Não pode receber financiamento. Não pode fazer compras fora, porque a empresa que vende para Cuba é punida”, resume.
A dirigente também frisa a urgência de ações humanitárias e solidárias para ajudar na reconstrução do Haiti, que enfrenta um colapso do Estado e coloca o povo em situações de extrema insegurança. “É um povo que hoje também tem sofrido as consequências do que foi fazer revolução e luta contra o colonialismo francês, e que hoje tem sofrido fortemente as ações do imperialismo norte-americano”.
Guardiã da maior reserva de petróleo do mundo, a Venezuela resiste a uma violenta pressão imperialista dos EUA, com embargos e sanções econômicas. A partir da leitura conjunta de movimentos populares da América Latina, Messilene sintetiza a Venezuela como “o modelo que tem hoje um enfrentamento do imperialismo norte-americano, precisamente porque contrapõe o seu modelo econômico, político, ideológico e social para o mundo, que é o que nos apresenta como uma alternativa para salvar a humanidade: o socialismo”.
A posição do MST é de apoio e compromisso com a revolução bolivariana. “Nós que estamos muito presentes na Venezuela, que temos ações concretas na Venezuela desde o ano 2005 junto às organizações venezuelanas, a gente sabe o que é o modelo do governo e a revolução bolivariana e não temos medo nenhum de defendê-lo frente a qualquer outra crítica que se coloca pela esquerda brasileira e pelo governo brasileiro”, garante Messilene.
“Eu considero a Venezuela como minha segunda pátria”
Vizinho do Brasil e uma das nações com quem compartilhamos o bioma amazônico, a Venezuela tem sido uma escola para centenas de Sem Terra, ao longo de 20 anos. Filipe Emanuel, do MST do estado de Alagoas, está entre os militantes que têm se dedicado na construção da Brigada no país.
O compromisso com o internacionalismo para Filipe se enraizou quando participou do curso de teoria latino-americana na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), a escola nacional do MST. A germinação veio com a tarefa prática como brigadista na Venezuela, durante quatro anos.
“E é algo incrível, porque eu posso dizer que eu fui uma pessoa e voltei outra totalmente diferente. Eu aprendi bastante com o povo”. Mais do que contribuir, a vivência no país foi uma escola, seja sobre a cultura, do novo idioma, sobre a produção, e principalmente sobre as formas de organização, com as comunas e os conselhos comunais. “Foi algo que me ajudou muito como militante. Expandiu bastante minha mente e sem dúvida voltei outra pessoa. Eu considero a Venezuela como minha segunda pátria”, completa.


Militantes da Brigada Internacionalista Apolônio de Carvalho. Foto: MST
O estreitamento da relação entre o MST e o povo venezuelano tem como marco um encontro entre o comandante Hugo Chávez e lideranças do Movimento em 2005, durante um Fórum Social Mundial, no Rio Grande do Sul. Chávez conheceu uma cooperativa e um assentamento, hoje batizado com o nome do comandante.
De lá para cá, centenas de militantes do MST de todo o Brasil já participaram da Brigada permanente formada no país vizinho, batizada em homenagem a Apolônio de Carvalho – militante comunista voluntário nas Brigadas Internacionais da Guerra Civil Espanhola, combatendo o fascismo na década de 1930. As principais tarefas de apoio ao povo venezuelano são na produção de alimentos e de sementes, na organização da produção e na formação sobre agroecologia.
A relação entre o MST e o povo venezuelano ganha nova fase com a organização do projeto Pátria Grande do Sul, criado a partir de um convite do presidente Nicolás Maduro, reeleito para o terceiro mandato. “Estamos num momento mais especial para dar essa contribuição massiva de massificação da agroecologia, de produção de alimentos saudáveis”, explica Filipe.
Este projeto está sendo organizado a partir de brigadas de técnicos e camponeses Sem Terra para atuar no estado Bolívar, localizado no sul da Venezuela, na fronteira com o estado brasileiro de Roraima. Filipe explica se tratar de um grande latifúndio que foi recuperado pela revolução bolivariana e agora está sendo destinado para a produção de alimentos saudáveis. A implantação de agroflorestas estará no centro do trabalho, somado à produção de sementes, de proteína animal, e de hortas perto dos centros urbanos.
A urgência do apoio ao povo haitiano
Além de Cuba e da Venezuela, o Haiti é o país latino-americano com o qual o MST mantém maiores esforços de solidariedade e cooperação. A nação caribenha é formada por cerca de 11 milhões de pessoas, e atravessa uma das piores crises da sua história recente. A capital Porto Príncipe está tomada por gangues, e a violência coloca pelo menos 1 milhão em situação de deslocamento dentro do próprio país, sendo metade delas crianças – segundo dados das Nações Unidas de fevereiro deste ano.
“De quatro anos para cá, com a dominação das gangues, é outro Haiti. Há uma demonização do Haiti. O povo haitiano sofre um racismo mundial, um desprezo mundial, como se eles fossem animais, gente da pior qualidade”, relata Augusto Silva, militante do MST de São Paulo que contribui com a Brigada permanente do Movimento no Haiti, e há mais de 20 anos no Setor de Internacionalismo.
Ele descreve marcas profundas na história do país, com efeitos diretos na atualidade: “O povo sofre a vingança do império pelo que representou o Haiti, onde ocorreu a primeira revolução de pessoas escravizadas que deu certo. Eles derrotaram os três maiores exércitos da época, o Império Napoleônico, que ninguém derrotava, o Império Inglês, o Exército Inglês e o Exército Espanhol. Então, estão pagando por essa ousadia até hoje”.
Liderada por pessoas negras escravizadas, a revolução que tornou o Haiti independente da França foi de 1791 a 1803, contra o poder colonial da França e a escravidão. Mesmo derrotada, a França impôs uma dívida cruel até a década de 1940, que estrangulou a economia nacional.


Militantes da Brigada Dessalines, no Haiti. Fotos: Ricardo Cabano
Um outro ponto relevante, na avaliação de Augusto, é a presença constante dos Estados Unidos no país desde a década de 1910, “saqueando, roubando e inviabilizando o Haiti em todo o momento”. A posição geográfica do Haiti também soma entre os fatores determinantes para a crise prolongada: entre seus vizinhos caribenhos, está a ilha de Cuba, enclave de resistência anti-imperialista que segue inspirando o mundo. No sul de Cuba, está a base naval de Guantánamo, controlada pelos EUA, e com o Haiti, seu vizinho mais próximo, a leste. A localização é estratégica para controlar toda a entrada, inclusive no caso de um conflito contra a Venezuela.
Sobre o papel dos organismos internacionais na mediação dos conflitos internos do Haiti, Augusto diz acreditar que o país “está esquecido do mundo”. “Ninguém está olhando para o Haiti”, as exceções são Cuba, com brigadas de médicos, e a Venezuela. O militante reforça a necessidade da solidariedade ao povo haitiano estar na pauta do movimento negro e dos movimentos populares como um todo.
O MST atua no Haiti desde 2009, com a formação da Brigada Jean-Jacques Dessalines – em homenagem a um dos líderes da Revolução Haitiana. A Brigada se formou em articulação com os movimentos populares da Via Campesina e Alba Movimentos Sociais. As ações de solidariedade internacionalista começaram no contexto da ocupação militar coordenada pelo exército brasileiro e promovida por meio da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, a MINUSTAH.

A ampliação veio em 2010, após o terremoto, quando a Brigada passou a ter cerca de 35 militantes no Haiti. O trabalho foi de ajudar a reerguer algumas estruturas básicas de sobrevivência. Anos mais tarde, as ações da Brigada passaram a fortalecer organizações camponesas e urbanas para a produção agroecológica, reflorestamento, formação política e comunicação. Nesta fase de crise profunda pela qual o país passa, o Movimento planeja reorganizar a Brigada permanente que possa somar na resistência haitiana.
Seja na Palestina, Haiti, Cuba, Venezuela, as brigadas internacionalistas têm significado uma oportunidade de formação de consciência e compreensão da realidade, como apresenta este trecho lido durante a mística da Reunião da Coordenação Nacional: “Construir a vida é abrir espaço para a escuta, o luto e a busca por justiça. É reconhecer o sofrimento, mas também buscar maneiras de transformá-lo em aprendizado e força. No processo de reconstrução, as pessoas redescobrem sua resiliência. Cada tijolo recolocado, cada árvore replantada, cada sorriso recuperado é um ato de resistência à destruição. Abrimos os escombros para criar ruas outra vez cheias de vida. Reconstruir a vida após uma guerra é uma tarefa imensa, mas também é profundamente humana”.
*Editado por Fernanda Alcântara