Palestina Livre
Soberania Alimentar como resistência na Palestina
Artigo destaca agricultura na Palestina como força de resistência contra a ocupação sionista, desafiando a fome e o controle de terras e águas

Por Vittória Silva Paz Barreto*
Da Página do MST
Na atual conjuntura, é difícil pensar na existência da agricultura e da produção em Gaza, onde não há segurança, paz e muito menos terras agricultáveis. Após 20 meses de ataques violentos, mais de 56 mil pessoas foram mortas. Na Cisjordânia, porém, a agricultura ainda é uma realidade.
Até outubro de 2024, viviam meio milhão de judeus na Cisjordânia ocupada, e, após o 7 de outubro de 2023, esse número apenas cresceu, junto com a violência.
Também é crescente o nível de violência no território da Cisjordânia e Jerusalém Oriental, com a intensificação da anexação de terras, o aumento da posse de armas pelos colonos e das mortes de palestinos. Isso ocorre além do fato de o governo de Israel oferecer subsídios para famílias judias de outras partes do mundo (especialmente EUA e países da Europa) que, sob uma crença de um direito ancestral a essa terra já há muito habitada, vêm para a região. O número de assentamentos também aumentou desde o início do governo Netanyahu.
Na Palestina, a agricultura é uma forma histórica de resistência. Enquanto vemos inúmeras notícias, atualmente, sobre a fome ser usada como arma de guerra, sobre como crianças são mortas nas filas de comida e demais atrocidades que acontecem em Gaza, vemos também a resistência diária existente no povo palestino que vive na Cisjordânia.
Apesar de todos os entraves possíveis impostos pela ocupação sionista, a agricultura é uma forma de resistência e de reconexão com o passado e suas raízes. Para além da oliveira, árvore símbolo da resistência palestina, a produção nacional existe e procura formas de continuar existindo em meio ao controle das Forças de Ocupação Sionistas e dos assentamentos.
Também há outras formas de produção, como é o caso da hidroponia — técnica que não necessita do uso de solo —, abrindo a possibilidade de se utilizarem outras áreas onde se vive, inclusive as áreas urbanas. Além disso, há formas de prolongar a produção por meio do beneficiamento de frutas e verduras, que podem ser aproveitadas após o período de colheita, proporcionando novas formas de inserção no mercado consumidor.
Na Cisjordânia, há um forte controle de Israel sobre a agricultura, as terras, o modelo de produção, os cultivos e a comercialização. Sessenta e cinco por cento das terras estão sob controle israelense. Assim, além de conviver com a dominação, há o fator do limite das terras e da livre circulação pelo território e, muitas vezes, também da falta de recursos para investir na produção. Isso resulta nos seguintes dados: atualmente, apenas 26% da população da Palestina tem a agricultura como sua principal fonte de renda, e 22% da população ainda vive nas áreas rurais.
Existe uma divisão dos territórios dentro da Cisjordânia em zonas A, B e C, desde o Acordo de Oslo, em 1993, numa fracassada tentativa (para o povo palestino) de diplomacia. Sendo assim, apenas a Zona C é de controle militar total israelense, e as zonas A e B estão sob administração palestina. Mas isso não significa que, nas zonas de administração palestina, estejam livres do domínio israelense.
Para ter acesso a terras cultiváveis sob controle sionista, os agricultores palestinos precisam pedir permissão à IOF para poderem acessá-las, ainda assim com restrições e sob vigilância — portanto, em situação de enorme perigo. A agricultura é também uma alternativa frente às altas taxas de desemprego, ou à alternativa de trabalhar em colônias israelenses, sofrendo inúmeras formas de violência, por um salário muito abaixo da média e sob condições extremamente precarizadas.
Mas é justamente pelo fato de a mão de obra palestina ser mais barata para Israel que a manutenção do desemprego e da falta de acesso a outras alternativas é deliberadamente mantida. Além disso, a agricultura, por si só — por preservar o passado e práticas ancestrais —, é alvo de um projeto de apagamento da cultura e identidade do povo.
Ainda que haja resistência por meio de uma economia agrícola, que corresponde a 6% do PIB (mas que, em 1967, correspondia a 67%), a maior parte das frutas e verduras consumidas na Cisjordânia vem de Israel. Ou seja, são vendidas por um preço muito mais caro, competem com a produção local e são alimentos produzidos com alto uso de químicos.
Sair com os produtos para comercialização significa que, diariamente, os agricultores precisam passar pelos checkpoints israelenses com suas produções — sem garantia de que o produto chegará ao destino final. Ou seja, a dificuldade existe desde o acesso às sementes até o fim da cadeia produtiva.
A longa história de resistência palestina em torno da agricultura demonstra a força da resistência popular e coletiva. As cooperativas sempre foram fortes entre os agricultores palestinos, mas houve uma queda alarmante após a Nakba, em 1948. O número de cooperativas caiu 87%. Ainda assim, a força do modelo cooperativista e da agricultura familiar, tão presente na sociedade palestina, nos fornece muitas informações sobre a organização política também — através da mentalidade coletiva como componente histórico da economia e da resistência (ambas interligadas).
Sendo, então, uma forma não apenas de resistir, mas de desafiar a ocupação sionista, um exemplo dessa força foi quando, entre 1987 e 1989, foram plantadas 500 mil árvores em todo o território palestino, durante a Primeira Intifada. Os chamados “Jardins da Vitória” foram iniciativas populares de agricultura familiar e criação de animais, baseadas na solidariedade. Nesse período, foram criadas agroindústrias administradas pelas cooperativas dos bairros.
Assim, além do total de árvores plantadas, os Jardins da Vitória garantiram a fonte de renda de milhares de famílias palestinas. Essa iniciativa é um exemplo de como a economia na Palestina é uma economia de resistência, que desafia a lógica da ocupação israelense e da fragmentação dos territórios e da população palestina.
Apesar do estado de Israel vender uma imagem externa de economia verde e sustentável, é na promoção do apartheid que revela sua verdadeira face — promovendo o greenwashing. A ideia de um Israel sustentável, que visa manter poder geopolítico, é benéfica e lucrativa para o regime, ao mesmo tempo que restringe o acesso dos palestinos às terras e à água, mais um fator que dificulta a agricultura local.
A construção de usinas de energias renováveis em terras palestinas — como painéis solares e turbinas eólicas — define o chamado “colonialismo verde”, que ignora as mudanças socioeconômicas da população local, constituindo mais uma forma de controle territorial.
Enquanto 65% das terras estão sob o controle de Israel, a empresa israelense Mekorot possui monopólio da exploração da água na região. A empresa construiu tubulações que levam as águas dos territórios de administração palestina até os assentamentos israelenses, passando por debaixo da terra colonizada, levando a água para os colonos e cobrando caro do povo palestino pelo seu consumo, quando permitem o acesso controlado.
A fome é usada como arma de guerra, bem como o controle das terras e das águas também o é. Essas são formas de manutenção da opressão do povo que resiste, limitando cada vez mais os bens naturais, em busca do apagamento da luta e da história.
A imposição de monocultivos e de uso de pesticidas — além de causar mudanças no ecossistema — são formas de Israel atingir também diretamente a soberania alimentar desse povo. Isso muda a cultura alimentar da população, empobrecendo o cardápio, aumentando os preços e diminuindo a variedade de alimentos para o consumo, especialmente de alimentos saudáveis e agroecológicos. A restrição às terras, a obstrução do comércio local, o quilo da carne custando em torno de 350 dólares e o atual cerceamento das ajudas humanitárias: tudo isso nos mostra o que de fato é o projeto sionista e suas formas de transformar tudo em arma contra o povo palestino.
A própria noção de soberania alimentar vem para contrapor a ideia de segurança alimentar, sendo, de acordo com o site da Via Campesina, “o direito dos povos a alimentos saudáveis e culturalmente adequados, produzidos por meio de métodos ecologicamente corretos e sustentáveis, e seu direito de definir seus próprios sistemas de alimentação e agricultura”. Sendo assim, a luta por soberania alimentar pelo povo palestino é uma forma de desafiar o próprio sistema sionista, e todo o processo a partir da lógica solidária e coletiva de organização, indo além da noção de apenas o alimento em si, mas de todo o contexto político, econômico e social.
Para que se desenvolva plenamente uma agricultura baseada na transição agroecológica e no cooperativismo, rumo à soberania alimentar, será necessário, antes, conquistar a libertação do povo palestino. Não há desenvolvimento socioeconômico dentro de uma lógica de invasão e dominação. No entanto, a continuidade da resistência por meio das práticas descritas neste texto, bem como da manutenção de toda uma cultura e identidade que os sionistas buscam apagar, é o caminho da libertação.
A agricultura local palestina é uma forma de luta pela autodeterminação de um povo que vive sob colonização sionista, que não deixa de lutar e resistir a todos os tipos de imposições colocadas a ele. Lutar pelo direito de produzir, de promover um comércio local, de criar uma economia própria, em meio a uma colonização, é um ato de força sem igual.
Lutar pela soberania alimentar enquanto do outro lado do muro o mesmo povo morre de fome ou morre tentando acessar a comida é um ato de coragem e uma forma de demonstrar que o povo palestino não vai cessar na sua luta diária até que a Palestina esteja livre da ocupação sionista e do imperialismo, além de ser uma forma de pautar um projeto popular de sociedade pautado no anti-imperialismo, na solidariedade e na autonomia dos povos.
*Mestra em História pela UFPE e militante do Setor de Internacionalismo do MST
**Editado por Fernanda Alcântara