Aromas de Março
Nossos olhos atentos denunciam o falso progresso que nunca chega para nosso povo
Na Coluna Aromas de Março, Simone Jesus narra a expulsão de sua comunidade no sertão baiano pela mineração e denuncia o projeto de “progresso” que destrói territórios e modos de vida.

Por Simone Jesus1
Da Página do MST
Posso não ter muito estudo, não estar dando aula em grandes universidades e ou liderando grupos de pesquisa sobre questão agrária e o atual modelo de mineração e suas consequências no uso da água ou coisas parecidas. Penso que fiquei muito tempo preocupada com as coisas da roça, de casa, ou assim quiseram que eu ficasse: preocupada em só dar continuidade à história das mulheres que me antecederam. Fizeram um recorte da história de vida de minhas ancestrais e as chamam de escravas. Chamar de escravas mulheres livres, que foram escravizadas, cria um imaginário de que nascemos assim por conta da cor da nossa pele e que, portanto, não há o que fazer… “coitados povos de pele negra, que só sabem vadiar!” – é o que afirmam sobre nós e que tentam nos fazer acreditar.
Acontece que nós sempre buscamos ficar juntos uns dos outros, em grupos, em comunidades, nos aquilombando como forma de proteção e preservação de nossa cultura, de nossa ancestralidade. Temos uma relação com a natureza e com a vida humana distinta da cultura imposta pela a sociedade capitalista, que é baseada na exploração da força de trabalho e do saque dos bens naturais para o acúmulo de riquezas. Em nossa comunidade ninguém passava fome, a gente plantava juntos a mandioca e produzia juntos a farinha feita da mandioca que plantávamos. Ninguém também morria à míngua, sem cuidados. Tia Ana Rosa era benzedeira das boas e sabia a erva certa para cada doença e todo este cuidado era feito sem cobrar um tostão, sem que importasse saber pra quem era.
Éramos atravessados por um rio, que corria água o ano todo num cantinho do sertão baiano, nutrindo a terra de onde a gente produzia nosso sustento. E assim meu povo viveu por muito tempo. Me recordo, com dor no peito, do quanto fui feliz ali. A minha dor no peito é de saudade e de indignação! Sim, indignação porque eu não queria sair dali, não, de jeito nenhum! A minha família e as outras que moravam lá foram expulsas em nome de um tal progresso, que até hoje não chegou para nosso povo. Sabe por que fomos expulsos? Porque não nos deram outra alternativa.
Chegaram dizendo que debaixo daquelas terras tinha minério de ferro e que eles, que nem brasileiros são, agora tinham o direito de rasgar o chão para arrancar as rochas de minério. Nos ofereceram dinheiro para comprar outra casa em outro lugar, disseram que iriam dar um pedaço de terra igual ou melhor do que tínhamos ali… ficamos desconfiados, inconformados, mas o assédio foi grande demais e quando viram que nós não íamos aceitar bem a ideia, começaram a nos ameaçar, dizendo que era melhor aceitar a oferta deles, porque se não teríamos que sair a força, pela justiça! Já pensou uma coisa dessa?! O que eles chamam de justiça? O que pode ser mais justo do que deixar na terra o povo que dela cuida? O que é mais importante para um país do que seu povo? Pelo que aconteceu, nós entendemos que esse tal minério de ferro era mais importante e que a justiça tem um lado.
Depois que conhecemos o minério de ferro nunca mais tivemos paz. Perdemos nosso território e o dinheiro que recebemos mal deu para fazer uma casa para colocar os filhos dentro. E eu te pergunto: uma trabalhadora que sempre trabalhou na roça vai viver só de casa? A gente não come casa, minha filha!
Ainda mais, a terra que nos realocaram não tem nem água para plantar. O sofrimento foi tanto, que meu sogro não aguentou e morreu de desgosto. Eu, que não era pesquisadora, nem estudiosa dessas coisas, sabia que isso estava errado e foi aí que conheci o MAM, o Movimento por Soberania Popular na Mineração. Foi ali, entre a companheirada do Movimento, que eu entendi que o que aconteceu com nosso povo aqui no Alto Sertão da Bahia, aconteceu também no Pará, em Minas Gerais, no Ceará, e que onde chegar empresa de mineração a história se repete. Entendi também que esse modo como as empresas chegam nos territórios faz parte de um modelo de mineração, que pouco se importa em se comprometer com um projeto de país que busque o bem-estar para seu povo.

Foi no MAM que eu virei pesquisadora da Questão Mineral e entendi que o progresso prometido pela a mineração nunca vai chegar para nosso povo, enquanto não for a gente a decidir de que forma a mineração deve ser feita no Brasil e para que esses minérios serão utilizados. Se nosso povo tivesse tido acesso as informações que temos hoje, a gente tinha batido o pé e não abriria mão do nosso território. Hoje, já não vivo dentro de casa, me ocupo de espalhar aos quatro ventos como essas promessas são falsas. Já fui à Assembleia Legislativa da Bahia e denunciei, sem medo, o tanto de mentira que nos contaram. Já viajei até para fora do país pra contar a toda gente o quanto este projeto é perverso…
Sabe, enquanto eu tiver vida, esse projeto não vai ter paz! Vou seguir organizando meu povo, as mulheres os jovens e, juntos, a gente vai denunciar que esses projetos chegam com um monte de promessas e mentiras, mas que, na verdade, só espalham morte, destruição e saque! Lutaremos juntos e incansavelmente pela soberania popular na mineração e na condução de nosso país!
1 Militante do Movimento por Soberania Popular na Mineração – MAM na Bahia.
** Ed