Mulher Sem Terra
Campanha “Registros da Terra”: experiência de Ana Lúcia dos Santos no Cerrado de TO
Na relação com o bioma, conheça a história da assentada, extrativista e guardiã dos frutos do Cerrado, que vive no assentamento Onalício Barros, no município de Caseara

Por Nadson Ayres
Da Página do MST
A história de Ana Lúcia começa com suas raízes quilombolas e camponesas. Sua família, intrinsecamente ligada à terra e à luta por ela, tem seu berço em um dos maiores quilombos do estado de Tocantins, o Quilombo Barra da Aroeira. A herança de um pedaço de terra, conquistada por seu bisavô como recompensa após a Segunda Guerra Mundial, simboliza o início dessa conexão inquebrável.
Porém, essa ligação ancestral foi desafiada pelos grileiros, que forçaram a saída de sua família de parte do território. Ana Lúcia relembra esse período com a voz embargada pela memória, mas fortalecida pela persistência: “Esse pouco dessa família nossa que está lá ainda foram resistência que quando conseguiram fazer uma retomada, aí parte de gente da nossa família conseguiu retornar pra lá e lutar pela terra e viver lá nesse quilombo”. Essa retomada, um ato de coragem e união, não apenas marcou a história familiar, mas também reforçou a convicção de que a terra é um direito e um espaço de vida, relata.
Os anos subsequentes foram de constante deslocamento, com a família trabalhando como agregados em diversas fazendas. Esse período, embora desafiador, foi crucial para o aprendizado e aprofundamento da relação de Ana Lúcia com a natureza e o Cerrado. “Nós cresceu desse jeito, ajudando meus pais plantar roça, conhecendo as diversidades das matas do Cerrado, das águas”, conta ela. Foi nesse contato diário com o ambiente que a semente do amor pelo Cerrado e pelas tradições familiares foi plantada e regada.



A sabedoria ancestral de sua mãe e avós, raizeiras e parteiras, as conectava profundamente ao bioma. Elas transmitiram um conhecimento valioso sobre as plantas medicinais, a importância da preservação e o cuidado com a vida. Ana Lúcia enfatiza: “E sempre aprendemos a cuidar da natureza com amor, e foi criando-se uma relação de conhecer, de saber os benefícios das plantas, das árvores. Seguimos com tudo que as nossas ancestrais nos ensinaram”. Essa vivência, tão rica e profunda, moldou sua percepção da terra não apenas como fonte de alimento, mas como um ser vivo a ser respeitado e preservado, valorizando a alimentação saudável, produzida sem agrotóxicos, e a compreensão da abundância que a terra pode oferecer.
Aos dez anos de idade, Ana Lúcia vivenciou um novo capítulo na luta pela terra: a ocupação de um latifúndio improdutivo. Seus pais, junto a outras famílias, ocuparam uma porção de terras, que hoje se tornou o assentamento Floresta, no estado do Tocantins. No entanto, foi em 2006 que ela mesma se tornou protagonista de sua própria jornada. Como mãe solo de cinco filhos, decidiu acampar à beira da rodovia TO 080, em busca de seu pedaço de chão. Essa jornada de nove meses foi marcada por privações, mas a impulsionava no desejo de ter um lar.

A desconfiança inicial de uma liderança do movimento — “Pra que você quer uma terra? Você vai pegar uma terra, você vai tirar oportunidade de uma outra família que de fato quer morar na terra. Você só vai pegar e vai vender e vai embora?” — a fez refletir. Mas a persistência venceu, e Ana Lúcia conquistou seu lote no assentamento Onalício Barros, no município de Caseara. Foi ali, no contato diário com a mata e as riquezas do Cerrado, que ela se reconectou com sua essência. “Quando eu comecei a conhecer toda essa riqueza que eu vi que tinha, que era daqui que nós ia tirar nosso sustento, aí eu me apaixonei de novo por essa terra e eu vi que era aqui que eu queria viver o resto da minha vida”, revela. Frutos como muricis, mangabas, cagaitas, oitis, pequis e coco babaçu se tornaram não apenas alimentos, mas símbolos de uma nova paixão e propósito.
Hoje, Ana Lúcia é uma mulher assentada, extrativista, guardiã dos frutos do Cerrado, comprometida com a coleta responsável. Sua paixão pela produção de farinha, uma tradição familiar, se mantém viva nas casas de farinha artesanais da comunidade. Além de seu trabalho na terra, ela atua ativamente em ações de solidariedade no assentamento Onalício Barros, promovendo a união e o bem-estar social.
As celebrações anuais do aniversário do assentamento Onalício Barros, com quadrilhas, comidas típicas e futebol, são resultado de sua contribuição ativa para o fortalecimento e pertencimento à comunidade. A Farinada de Jatobá, uma tradição que ganha força a cada ano, reúne mulheres e homens na valorização dos saberes locais e no fortalecimento da agricultura familiar e camponesa e da agroecologia.


Ana Lúcia, com sua voz carregada de experiência, reforça a urgência da preservação ambiental e da produção de alimentos saudáveis. “Sensibilizar as pessoas e dizer da importância que é de plantar uma árvore, de dizer a importância que é cuidar das matas, das águas, da floresta do Cerrado”, prega ela.
Para a assentada, cada árvore plantada, cada fruto colhido, é um ato de amor pela vida e um legado para as futuras gerações. Sua história é um convite à reflexão sobre a importância da Reforma Agrária e do papel fundamental que os Sem Terra desempenham na construção de um futuro em que a defesa da natureza é a palavra de ordem para que ninguém passe fome.
*O perfil e as imagens integram a campanha fotográfica do MST: “Registros da Terra: O MST e os biomas brasileiros”, com o envio de fotografias até o dia 21 de setembro de 2025.
**Editado por Solange Engelmann