A luta contra o “latifúndio da mídia”

Por Altamiro Borges

Excelente a iniciativa do MST, UNE e CUT de deflagrar uma campanha pela democratização dos meios de comunicação no país – conforme noticiado em recente edição do Vermelho. A proposta, que incorpora uma antiga preocupação de vários setores progressistas da sociedade, ressurge numa hora apropriada. A mídia burguesa tem se engajado de maneira ardilosa no novo ciclo político aberto com a vitória eleitoral das forças de centro-esquerda no Brasil. Por um lado, esta hipócrita bajuladora do livre-mercado mendiga servilmente as benesses do dinheiro público para se safar da sua grave crise financeira. Por outro, procura interferir nos rumos do novo governo, enquadrando-o no apertado figurino do modelito neoliberal.

Na aparência, a mídia tem adotado até agora uma postura imparcial e dócil diante do governo Lula. Mas, quando o Planalto sinaliza medidas contrárias ao “deus-mercado” ou os setores populares ganham as ruas para exigir mudanças, ela não vacila em destilar seu veneno. O ódio fica evidente nas capas apocalípticas da Veja – cujo dono, a família Civita, cedeu o prédio da sua editora para quartel-general da campanha de José Serra –, nos editoriais rancorosos da “eclética” Folha de S.Paulo ou na retórica irada de Boris Casoy – segundo as más línguas, um ex-ativista do Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Daí a urgência de se “articular um movimento para reagir às tentativas de criminalizar o movimento social”, afirma Gustavo Petta, presidente da UNE. Urge denunciar o “latifúndio da mídia”, conclama João Pedro Stedile, do MST.

Papel da mídia

O debate sobre o papel da mídia adquire alto relevo na atualidade. Este complexo, que inclui TVs, jornais, revistas e também a cultura de massas e o entretenimento, tem hoje inquestionável força na sociedade. No passado, quando se cunhou o termo “quarto poder”, o sentido era de algo progressista, que serviria como contraponto fiscalizador dos poderes constituídos – segundo relata um dos maiores especialistas no tema, o jornalista francês Ignácio Ramonet. Com o tempo, porém, a mídia se tornou parte do poder. Perdeu sua aura romântica, idílica. Hoje, a imprensa faz o jogo manipulador das elites e faz parte do grande capital.

A mídia contemporânea manipula mentes, uniformiza pensamentos e condiciona comportamentos. Isto é feito de forma sutil, requintada – através de meias verdades, notícias fora do contexto, fatos sem vínculo com o passado, flashes instantâneos, aparência encobrindo a essência. Além disso, diferente do passado, a mídia está incorporada ao mundo do capital. “As corporações da mídia projetam-se, a um só tempo, como agentes discursivos, com uma proposta de coesão ideológica em torno da ordem global, e como agentes econômicos presentes nos hemisférios”, argumenta Dênis de Moraes, doutor em comunicação e cultura.

Sua capacidade de manipular se manifesta até nas palavras. O próprio termo globalização, vendido como sinônimo de um mundo sem fronteiras e de plena harmonia, visa ofuscar a crescente barbárie capitalista. Como confessou um dos falcões dos EUA, o sinistro Henry Kissinger, “o termo globalização é realmente o outro nome para o papel dominante dos Estados Unidos” (Dublim, outubro de 1999). Já outra palavra muito em voga – reforma – tem seu conteúdo mistificado. No passado, ela caracterizava algo progressista, identificado com as demandas populares; hoje expressa a regressão neoliberal, a negação do direito.

Em tempos de globalização neoliberal e de regressão civilizacional, o poder da mídia só se agigantou. No mundo inteiro, o capital desregulamenta as leis que restringem o monopólio dos meios de comunicação. A mídia se entrelaça com os conglomerados financeiros e se identifica com as idéias mais fascistóides. O imperialismo estadunidense, numa ordem unipolar, amplifica sua ideologia. Segundo recente relatório de uma Comissão Especial da ONU, 85% das notícias que circulam no planeta são geradas nos EUA. Cerca de duas dezenas de grupos midiáticos, com receitas entre US$ 5 bilhões e US$ 30 bilhões, veiculam dois terços das informações disponíveis no mundo. É uma concentração sem precedentes na história!

Mídia concentrada

Nos EUA, as regras contra a concentração audiovisual foram abolidas em fevereiro de 2002. A América Online comprou a Netscape, a revista Time, a Warner Bross e a cadeia de notícias CNN. Já a GE, maior empresa mundial em capitalização na bolsa, comprou a rede NBC. A News Corporation, do direitista Rupert Murdoch, controla vários jornais britânicos e estadunidenses (The Times, The Sun, The New York Post), possui a rede por satélite Sky, a cadeia Fox de TV, além da produtora de filmes 20th Century Fox.

Na Itália, Silvio Berlusconi possui as três principais redes privadas de TV e, como chefe do Conselho de Ministros, dirige também as redes públicas; na Espanha, o grupo Prisa possui o diário El País, a rede Ser de rádios e a TV Canal+. Na França, o grupo Dassault, presidido por Serge Dassault, prefeito eleito com o apoio da fascista Frente Nacional, controla o jornal Le Figaro e pretende adquirir o seminário L’Express e a revista L’Expansion. Já o grupo dirigido por Jean-Luc Lagardère, afiliado do presidente Jacques Chirac, domina o setor de revistas, de distribuição de jornais e o pólo editorial VUO (Larousse, Laffont, Bordas). Os dois grupos têm em comum negócios na indústria bélica – aviões de caça, mísseis, satélites. O vínculo da mídia francesa com os “mercadores de canhões” explica sua propaganda favorável à guerra no Iraque!

O Brasil não fica atrás neste acelerado e perigoso processo de monopolização. O Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação concluiu, em abril de 2002, alentada pesquisa sobre “Os donos da mídia”. Ela revela que apenas seis grupos, chamados de cabeças-de-rede, controlam a TV brasileira – Globo, SBT, Record, Bandeirantes, CNT e Rede TV. Estes controlam 668 outros veículos, sendo 296 emissoras de TV e 372 veículos dos demais segmentos da mídia, como rádios, jornais e revistas. Ainda comporiam o seleto time dos “donos da mídia” a Editora Abril, com 69% do mercado de revistas e 14% da TV por assinatura, e os grupos O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo – com 10% da tiragem dos jornais diários do país.

Já o segundo time é composto por alguns grupos nacionais e regionais – como o JB e RBS; o terceiro por grupos afiliados às redes de TV; o quarto por veículos independentes, desvinculados das redes abertas. Existiriam no país 436 jornais diários, 1.487 publicações com outras periodicidades, 1.460 emissoras AM e 1.225 FM, 59 emissoras em Ondas Curtas e 70 em Onda Tropical. A pesquisa indica que nem a Internet escapa ao monopólio da mídia. O controle dos sítios de notícia está nas mãos dos donos das redes de TV.

Nesta disputa de gigantes, a Globo continua imbatível. Ela aglutina o maior número de veículos, quase o dobro do SBT. Reunindo 204 afiliados, 89 TVs VHF, oito TVs UHF, 34 rádios AM, 53 rádios FM e 20 jornais, detém maior número de grupos diversificados – 40,6% de todos os existentes vinculados às redes. Do total da verba publicitária, ela abocanhava US$ 1,5 milhão, deixando US$ 600 milhões para o SBT e US$ 300 para Bandeirantes. O resultado é uma audiência de 54%, contra 23% do SBT na média de 2001.

O “primeiro time” controla, via leis draconianas, a programação das emissoras afiliadas. Desrespeitando a legislação, que proíbe a “propriedade cruzada” (decreto-lei 236 de 1967), atua como cartel. A Globo, por exemplo, opera nos segmentos de revista e jornais, além de dominar o mercado de TV por assinatura. Ela possui quatro jornais próprios, mais 53 vinculados aos 138 grupos afiliados à TV, somando uma tiragem média diária de 1.371.800 exemplares – cerca de 17% do total de 7.760 mil exemplares diários em 2001.

Poder de manipulação

Conforme comenta Ignácio Ramonet, diretor do Le Monde Diplomatique, a concentração empresarial e a falta de pluralidade na cobertura jornalística tornam os meios de comunicação o principal agente poluente da democracia. “A globalização econômica criou conglomerados midiáticos e o objetivo de informar foi diluído entre outros interesses. Eles se unem ao poder para oprimir o cidadão; este que antes era oprimido pelo Executivo, agora é oprimido também pelo poder midiático”, afirma. “A mídia global é o que eram os missionários para os colonizadores; prepara o terreno para a conquista econômica”, diz Suzanna George, ativista dos direitos humanos nos EUA. A manipulação midiática nunca atingiu um poder tão destrutivo!

Dois episódios recentes, a agressão ao Iraque e a conspiração golpista na Venezuela, são emblemáticas desta poderosa distorção. Servem de alerta ao governo Lula e a outros ingênuos de plantão. No primeiro caso, a mídia escondeu os verdadeiros interesses dos EUA – a guerra do sangue por petróleo – e difundiu a versão risível de que o Iraque colocava em risco a humanidade. Desta maneira, confirmou a máxima do senador ianque Hiran Johnson: “A primeira vítima, quando começa a guerra, é a verdade”. Os jornalistas que desafiaram esta manipulação foram ferozmente perseguidos. Uma lista macabra revela vários casos de demissões e represálias, sendo mais famoso o do jornalista Peter Arnett, demitido da rede de TV NBC.

Já na crise da Venezuela, a mídia foi o principal agente desestabilizador no país. As três redes privadas se juntaram para adulterar a notícia da renúncia de Hugo Chávez e, meses depois, para convocar o locaute patronal. Segundo a jornalista Blanca Feckut, as TVs adotaram um sistema chamado de Solo una Voz – fazendo um pool de informações falsas. Nas primeiras horas após o golpe frustrado de abril de 2001, os conspiradores intentaram fechar as rádios e TVs comunitárias organizadas pelos bolivarianos. Mesmo assim, estes espaços alternativos, assim como a ação de 1.500 motoboys que percorreram os bairros pobres de Caracas, foram decisivos para derrotar os golpistas. Outra importante lição para o Brasil!

Este alto poder de manipulação inclusive ajuda a entender o êxito ideológico do neoliberalismo. Apesar do fragoroso fiasco no terreno econômico, o projeto neoliberal conseguiu envolver importantes setores da sociedade, inclusive parcelas dos trabalhadores. Como explica Atílio Borón, no texto Sobre mercados e utopias: a vitória ideológico-cultural do neoliberalismo, “a criação do senso comum penetrou nas crenças populares, com a mídia produzindo uma lavagem cerebral que gerou conformismo diante dos ataques”. Mas, como afirma, esta vitória é temporária, não resiste às contradições do próprio sistema capitalista. Ele lembra uma bela citação de Rosa Luxemburgo: “Quanto mais negra é a noite, mais brilham as estrelas”.

A capacidade manipuladora desta mídia altamente concentrada, conforme se tentou mostrar, é brutal. Mas não é invencível! Hoje a luta pela democratização dos meios de comunicação adquire caráter estratégico. Conforme afirma Daniel Herz, dirigente do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, “sem enfrentar a disputa pela comunicação, nenhum Estado, partido ou setor social está habilitado a atingir seus objetivos estratégicos”. Neste sentido, é preciso intensificar a luta de idéias na sociedade. Esta frente que já era decisiva na luta de classes, como ensinou Engels, ganha ainda maior revelo na atualidade.

Entre outras bandeiras, o movimento social e a intelectualidade progressista deveriam priorizar a luta pela democratização dos meios de informação e cultura, através de veículos alternativos, como as rádios e TVs comunitárias, páginas na Internet, etc. Enfrentando o falso “livre-mercado”, deveriam exigir a criação de instrumentos públicos de controle sobre a mídia e exigir a abertura de canais de TV sob a direção dos setores organizados da sociedade. Com a vitória eleitoral das esquerdas nas eleições de outubro, vale a pena retomar a bandeira da CUT por uma TV pública para os trabalhadores. Nunca as condições foram tão favoráveis para enfrentar o poder de manipulação da mídia burguesa.

Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e organizador do livro “Para entender e combater a Alca” (Editora Anita Garibaldi).