“A Reforma Agrária não avança”

Violência, trabalho escravo e parcialidade do poder judiciário estão aumentando

Brasília, 9 de junho 2004 – FIAN [Organização Internacional de Direitos Humanos pelo Direito à Alimentação, com sede em Heidelberg, Alemanha] e La Via Campesina [coalizão global de organizações camponesas, com sede em Tegucigalpa, Honduras], no âmbito da Campanha Global por Reforma Agrária, denunciam graves violações aos Direitos Humanos, em especial ao direito humano à alimentação, devido à morosidade na implementação da Reforma Agrária no Brasil. Em uma missão investigadora, que as duas organizações internacionais realizaram de 03 à 09 de Junho, se constatou que, na região do sul do Pará existem 12.000 famílias acampadas, a meta oficial para esse ano é de assentar 8.500 famílias, sendo que este ano, ainda não houve nenhum assentamento. Os números a nível nacional não são melhores: O governo federal planeja assentar 115.000 famílias este ano e segundo declarações do próprio Ministro de Desenvolvimento Agrário, Miguel Rosseto, até agora apenas foram assentadas 17.000 famílias.

A missão teve a oportunidade de conversar com vítimas de trabalho escravo em Marabá, no Pará. Hendra Herap, representante da Federação de Sindicatos Camponeses de Indonésia, enfatiza: “Não avançar com a realização da Reforma Agrária resulta particularmente grave porque retarda o combate às causas estruturais do trabalho escravo”. Segundo testemunhos e informações recolhidas, a expansão da fronteira agrícola se faz com utilização de mão-de-obra escrava e causa destruições irreparáveis ao meio ambiente. As perspectivas de lucro que oferecem a venda ilegal de madeira, a exportação de carne e as monoculturas de exportação, como a soja, algodão e cana de açúcar, são o motor desta expansão violenta e que concentra ainda mais a posse da terra.

A lentidão da implementação do Plano Nacional de Reforma Agrária é devida a graves problemas de operacionalidade do INCRA e a parcialidade do poder judiciário freqüentemente observado. Em Pernambuco, segundo as organizações camponesas, mais de 40.000 famílias estão acampadas atualmente e nenhuma foi assentada este ano. Os índices de desenvolvimento humano da região estão entre os piores do mundo, sobretudo pelo domínio de latifúndios de monocultura de cana de açúcar. Dois casos foram visitados: Engenho Prado e Usina Aliança. Em algumas regiões, as famílias estão há 7 anos, ou mais, sem receber a concessão de uso das terras, que claramente não estão cumprindo sua função social, demora essa causada, segundo identificou a missão, pelas diversas possibilidades dos latifundiários de interpor recursos judiciais no processo de desapropriação. Especialmente no nível regional, onde o poder judicial freqüentemente tem vínculos estreitos com as elites rurais. Esse fato representa um obstáculo sério para a implementação efetiva da Reforma Agrária. Como conseqüência, no Engenho Prado, as 280 famílias foram despejadas no mês de novembro de 2003, depois de mais de sete anos cultivando e vivendo da terra. O assentamento havia servido como exemplo, modelo, para combater a fome por meio da Reforma Agrária. Na Usina Aliança, as 600 famílias estão sofrendo atos de violência; no ano passado, dois trabalhadores foram assassinados. As famílias seguem sem condições mínimas para se alimentarem, porque, a falta de título lhes impede o acesso aos créditos, às sementes e outros recursos produtivos. A situação precária das famílias em ambos os casos se intensifica ainda mais devido à irregularidade com que recebem cesta básica do Programa Fome Zero.

A missão observou os efeitos negativos das políticas de mercado de terra promovidas pelo Banco Mundial. No marco do programa “Para Terra” – teoricamente – as famílias recebem uma mescla de créditos e subsídios para comprar terra, construir casas e para infra-estrutura, como eletricidade, água; bem como para assistência técnica, etc. Nas duas comunidades visitadas em Minas Gerais, Jaíba e Pintópolis, a missão observou que as famílias não receberam apoio técnico nem financeiro para produzir de modo que nem sequer satisfazem as necessidades de auto-consumo. A primeira quota do pagamento da terra, que venceu em 2002, as famílias não conseguiram pagar. Isso indica que o programa causa endividamento das famílias e as põe em risco de perder a terra. Ramiro Téllez, representante de La Via Campesina destaca que: “Os problemas com este tipo de programas de acesso à terra por meio do mercado não são únicos de Minas Gerais. Os mesmos problemas temos constatado na Àfrica do Sul, Colômbia e Guatemala.”

A missão viveu na própria carne a violência denunciada inúmeras vezes pelos trabalhadores. Membros da missão foram atacados a tiros no dia 7 de junho por um fazendeiro quando passavam de carro próximo á sua fazenda, aproximadamente há 15 km da cidade de Montes Claros, no norte do estado de Minas Gerais. Ninguém foi ferido. A missão visitara o acampamento “Estrela do Norte”, fazenda Sanhoró. Ao voltar, o veículo da missão parou na frente da fazenda Canoas – cujo proprietário é da mesma família do proprietário da fazenda Sanhoró. Então um homem, que parecia ser o proprietário da fazenda, apareceu com uma arma de fogo e disparou duas vezes contra o carro. Jennie Jonsen de FIAN observa: “O ataque reflete a violência com a qual os grandes proprietários estão reprimindo os camponeses sem terra com o objetivo de sufocar o movimento pela Reforma Agrária no campo”. Esse fato não é isolado. Existem diversas denúncia dos trabalhadores contra esse fazendeiro por ameaças, sem que nenhuma providência tenha sido efetivada pelo poder judiciário local ou pelas forças de segurança do estado. Por isso, a missão demanda a investigação e punição dos responsáveis pelo ataque e pelas ameaças aos trabalhadores, assim como vistoria e desapropriação da Fazenda Canoas para fins de Reforma Agrária.

O modelo agrícola voltado ao agronegócio não prioriza a alimentação nem o combate à pobreza, torna a terra e os trabalhadores reféns do mercado e inviabiliza um projeto de agricultura familiar sustentável voltada a produção de alimentos para os brasileiros. Uma mudança no conjunto da política agrária é condição sine qua non para o desenvolvimento humano e econômico do país.

A missão enfatiza a importância das diversas medidas que visam agilizar o processo de Reforma Agrária, como a reestruturação do Incra, a desburocratização dos processos de vistoria, assim como medidas legais para a erradicação do trabalho escravo, como a emenda constitucional PEC 438/2001, o fortalecimento do trabalho da Polícia Federal no combate ao trabalho escravo e as violências cometidas contra trabalhadores.

A missão recomenda a necessidade do Estado brasileiro, através de suas diversas instituições, cumprir com a efetivação da reforma agrária, entre eles: cumprimento das metas de assentamento prevista no Plano Nacional de Reforma Agrária, apoio a agricultura familiar e camponesa; bem como acelerar o processo de federalização dos crimes contra os Direitos Humanos, para que cumpra com sua obrigações perante os pactos e acordos internacionais. A missão conclama ao poder judiciário garantir o que está na constituição cidadã de 1988, no que diz respeito ao cumprimento da função social da propriedade, como também, observar a aplicação dos pactos internacionais de direitos humanos, que de acordo com a Constituição Brasileira tem status de estamentos jurídicos nacionais.

O relatório da missão será apresentado ao governo brasileiro, a CIDH, ao sistema de direitos humanos da ONU, à FAO, ao Banco Mundial, ao FMI.”

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