Agronegócio e Reforma Agrária

Por Bernardo Mançano Fernandes*

Agronegócio e o latifúndio

Agronegócio é o novo nome do modelo de desenvolvimento econômico da agropecuária capitalista. Esse modelo não é novo, sua origem está no sistema plantation, em que grandes propriedades são utilizadas na produção para exportação. Desde os princípios do capitalismo em suas diferentes fases esse modelo passa por modificações e adaptações, intensificando a exploração da terra e do homem.

Agronegócio é uma palavra nova, da década de 1990, e é também uma construção ideológica para tentar mudar a imagem latifundista da agricultura capitalista. O latifúndio carrega em si a imagem da exploração, do trabalho escravo, da extrema concentração da terra, do coronelismo, do clientelismo, da subserviência, do atraso político e econômico. É, portanto, um espaço que pode ser ocupado para o desenvolvimento do país. Latifúndio está associado com terra que não produz, que pode ser utilizada para reforma agrária. Embora tenham tentado criar a figura do latifúndio produtivo (sic), essa ação não teve êxito, pois são mais de quinhentos anos de exploração e dominação, que não há adjetivo que consiga modificar o conteúdo do substantivo.

A imagem do agronegócio foi construída para renovar a imagem da agricultura capitalista, para “modernizá-la”. É uma tentativa de ocultar o caráter concentrador, predador, expropriatório e excludente para dar relevância somente ao caráter produtivista, destacando o aumento da produção, da riqueza e das novas tecnologias. Da escravidão à colheitadeira controlada por satélite, o processo de exploração e dominação está presente, a concentração da propriedade da terra se intensifica e a destruição do campesinato aumenta. O desenvolvimento do conhecimento que provocou as mudanças tecnológicas foi construído a partir da estrutura do modo de produção capitalista. De modo que houve o aperfeiçoamento do processo, mas não a solução dos problemas socioeconômicos e políticos: o latifúndio efetua a exclusão pela improdutividade, o agronegócio promove a exclusão pela intensa produtividade.

A agricultura capitalista ou agricultura patronal ou agricultura empresarial ou agronegócio, qualquer que seja o eufemismo utilizado, não pode esconder o que está na sua raiz, na sua lógica: a concentração e a exploração. Nessa nova fase de desenvolvimento, o agronegócio procura representar a imagem da produtividade, da geração de riquezas para o país. Desse modo, se torna o espaço produtivo por excelência, cuja supremacia não pode ser ameaçada pela ocupação da terra. Se o território do latifúndio pode ser desapropriado para a implantação de projetos de reforma agrária, o território do agronegócio apresenta-se como sagrado, que não pode ser violado. O agronegócio é um novo tipo de latifúndio e ainda mais amplo, agora não concentra e domina apenas a terra, mas também a tecnologia de produção e as políticas de desenvolvimento.

A fundação do agronegócio expandiu sua territorialidade, ampliando o controle sobre o território e as relações sociais, agudizando as injustiças sociais. O aumento da produtividade dilatou a sua contradição central: a desigualdade. A utilização de novas tecnologias tem possibilitado, cada vez mais, uma produção maior em áreas menores. Esse processo significou concentração de poder – conseqüentemente – de riqueza e de território. Essa expansão tem como ponto central o controle do conhecimento técnico, por meio de uma agricultura científica globalizada.

Agronegócio e agricultura familiar

Outra construção ideológica do agronegócio é convencer a todos de que é responsável pela totalidade da produção da agropecuária. Toda vez que a mídia informa os resultados das safras, credita toda a produção na conta do agronegócio. É a arte da supremacia.

Estrategicamente, o agronegócio se apropria de todos os resultados da produção agrícola e da pecuária com se fosse o único produtor do país. A agricultura camponesa que é responsável por mais da metade da produção do campo – com exceção da soja, cana e laranja, não aparece como grande produtor e fica no prejuízo. Com essa estratégia, o agronegócio é privilegiado com a maior fatia do crédito agrícola.

O agronegócio vende a idéia de que seu modelo de desenvolvimento é a única via possível. Essa condição é reforçada pela mídia e por estudiosos que homogeneízam as relações sociais, as formas de organização do trabalho e do território como se fossem da mesma natureza. Desse modo, procuram comparar as produtividades do agronegócio e da agricultura familiar. Como se fosse possível comparar a produção de pães de uma padaria com a de uma empresa multinacional.

A agricultura camponesa não é adepta do produtivismo, ou seja produzir uma única cultura e com exclusividade para o mercado e nem se utiliza predominantemente de insumos externos. Seu potencial de produção de alimentos está na diversidade, no uso múltiplo dos recursos naturais. Nas regiões onde há concentração de pequenos agricultores, a desigualdade é menor e por conseguinte os índices de desenvolvimento estão entre os maiores.

O agronegócio como supremacia procura cooptar a agricultura camponesa para defender o seu modelo de desenvolvimento. Esse processo de cooptação começa pela eliminação das diferenças: todos são iguais perante o mercado. E continua com essa propaganda para que todas as políticas sejam construídas tendo como referência o negócio.

O poder do agronegócio aparece como se fosse construído a partir do mercado, do “livre comércio”. Enquanto de fato o mercado é construído a partir das ações resultantes das políticas que regulam as práticas do mercado. Portanto, o mercado não está começo, mas nos resultados das políticas. Com esse poder de controle social, o mercado é o paraíso do agronegócio e o purgatório da agricultura familiar.

As ideologias do agronegócio trabalham com a combinação e a oposição, quando estas lhes convêm. Procuram combinar diferentes tipos de relações sociais e opor uma mesma relação social por meio de sua diferenciação interna.

A combinação é realizada como se agricultura capitalista e agricultura camponesa fossem da mesma natureza. Enquanto, a agricultura capitalista se realiza a partir da exploração do trabalho assalariado e do controle político do mercado; a agricultura camponesa ou familiar é intensamente explorada por meio da renda capitalizada da terra, ficando somente com uma pequena parte da riqueza que produz, a maior parte é apropriada pelas empresas que atuam no mercado.

A oposição é feita por meio da fragmentação da agricultura camponesa. Para enfraquecê-la, alguns intelectuais procuram fracioná-la por meio da diferenciação econômica. Nesta visão, os pequenos agricultores empobrecidos seriam camponeses e os remediados (ou capitalizados) seriam agricultores familiares. O primeiro seria atrasado, o segundo seria moderno. Desse modo, o empobrecimento e a capitalização dos camponeses não aparecem como resultados da desigualdade gerada pela renda capitalizada da terra, mas como diferentes tipos de organização do trabalho. Essa fragmentação se constituiu com tanta força, que se formaram movimentos de agricultores familiares que aceitam sem muita resistência as políticas construídas tendo como referência o negócio ou o mercado.

Por outro lado, esta construção ideológica provocou a intensificação da resistência camponesa. Um destaque é a formação da Via Campesina, uma articulação mundial de movimentos camponeses contra o modelo do agronegócio. No Brasil, a Via Campesina é composta pelo MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, pelo MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores, pelo MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens e pelo MMC – Movimento de Mulheres Camponesas.

Agronegócio e Reforma Agrária

O agronegócio procura manter o controle sobre as políticas e sobre o território, conservando assim um amplo espaço político de dominação. Tudo o que está fora deste espaço é sugado pela ideologia do agronegócio. Um exemplo é a reforma agrária.

Para combater as ocupações de terra, a política criada pelo agronegócio foi a Reforma Agrária de Mercado. Depois de denominada de Cédula da Terra virou Banco da Terra e hoje é chamada de Crédito Fundiário. É uma tentativa de tirar a luta popular do campo da política e jogá-la no território do mercado, que está sob o controle do agronegócio.

As ocupações de terra ferem profundamente esta lógica e por essa razão o agronegócio investe ferozmente na criminalização da luta pela terra, pressionando o Estado para impedir a espacialização desta prática de luta popular. O controle do território e das formas de acesso à terra é objetivo da mercantilização da reforma agrária. Não importa para o capital ser o dono da terra, o que importa é que a forma de acesso seja por meio das relações de mercado, de compra e venda. O controle da propriedade da terra é um dos trunfos do agronegócio. É fundamental que a terra esteja disponível para servir à lógica rentista.

Por essa razão, as ocupações de terra são uma afronta ao agronegócio, porque essa prática secular de luta popular encontra-se fora da lógica de dominação das relações capitalistas. Assim, o sacro agronegócio procura demonizar os movimentos socioterritoriais que permanentemente ocupam a terra. Na última década, o espaço político mais utilizado é o Poder Judiciário. Recentemente tem ocorrido uma verdadeira judiciarização da luta pela terra, em que o Poder Judiciário se apresenta como uma cerca intransponível aos sem-terra. Para não manchar a sua imagem, o agronegócio procura desenvolver políticas de crédito e ou bolsas de arrendamento, de modo a trazer os ocupantes de terra para o território do mercado.

A cada ano o agronegócio se territorializa com maior rapidez e desterritorializa a agricultura camponesa ou familiar. O empobrecimento dos pequenos agricultores e o desemprego estrutural agudiza as desigualdades e em não resta à resistência camponesa outra saída a não ser a ocupação da terra como forma de ressocialização.

As ocupações de terras do agronegócio já começaram nas regiões onde esse modelo de desenvolvimento controla a maior parte do território, concentrando riqueza e aumentado a miséria. Este é o novo conteúdo da questão agrária nesta primeira década do século XXI.

Para tentar evitar o enfretamento com os camponeses, o agronegócio procura convencê-los que o consenso é possível. Todavia, as regras propostas pelo agronegócio são sempre a partir de seu território: o mercado.

O campesinato é um grupo social que além das relações sociais em que está envolvido, tem o trunfo do território. A cada ocupação de terra, ampliam-se as possibilidades de luta contra o modo capitalista de produção. Pode se fortalecer cada vez mais se conseguir enfrentar e superar as ideologias e as estratégias do agronegócio. Se conseguir construir seus próprios espaços políticos de enfretamento com o agronegócio e se manter sua identidade socioterritorial. Essas condições são fundamentais para o desenvolvimento da agricultura e do Brasil.

* professor Departamento de Geografia da Unesp, campus de Presidente Prudente e pesquisador do Dataluta (Banco de Dados da Luta pela Terra).