As tsunamis cotidianas

Por Emir Sader

Uma vez um indígena guatemalteco me disse que os terremotos na Guatemala são como os filmes de cowboy estadunidenses, em que só morrem índios. Esses abalos atingem sobretudo os pobres porque, movendo o solo, derrubam as casas mais frágeis.

Mais de 30 milhões de pessoas morrem anualmente de fome no mundo. Todos os anos morrem 5 milhões de crianças de fome. Mais de 800 milhões de seres humanos sofrem de desnutrição grave e permanente. Anualmente, 7 milhões de pessoas, principalmente crianças, perdem a vista, em geral por falta de alimentação suficiente ou como conseqüência de doenças vinculadas ao subdesenvolvimento.

Só no Brasil, morrem anualmente mais de 32 mil crianças com menos de um ano, principalmente no nordeste, vítimas de problemas vinculados à desnutrição e à falta de atenção de saúde. Quando visitou o Brasil recentemente, Jean Ziegler, relator especial da ONU sobre o Direito à Alimentação, conheceu um túmulo, mostrado por um camponês, com uma placa: “Crianças anônimas”, onde se enterravam crianças recém nascidas mortas, de desnutrição, de rubéola, de diarréia ou de desidratação. Nem sequer foram registradas, porque o registro custa um ou dois reais. Nascem e morrem anonimamente. Sem mídia, sem Nações Unidas, sem ajudas governamentais.

E, no entanto, a capacidade agrícola existente no mundo permite alimentar a doze bilhões de pessoas, isto é, ao dobro da população mundial. Porém esses alimentos estão pessimamente distribuídos. Anualmente se utiliza um quarto da colheita mundial de cereais para alimentar o gado dos países ricos. A quantidade de milho consumida pela metade dos recintos climatizados para gado da Califórnia é maior do que todas as necessidades de um país que passa fome crônica, como o Zâmbia.

Uma vez um indígena guatemalteco me disse que os terremotos na Guatemala são como os filmes de cowboy estadunidenses, em que só morrem índios. Os terremotos atingem mais diretamente os pobres porque, movendo o solo, derrubam as casas mais frágeis. Assim, um terremoto em um país rico mata pouquíssimas pessoas. Enquanto nos países pobres costuma matar dezenas de milhares de pessoas.

Os maremotos, como o que aconteceu na Ásia, afetam também a zonas turísticas, com seus balneários, o que explica tanto a morte de muita gente rica, como o grande interesse em ajudar as vítimas por parte dos países que costumam usar esses balneários para o turismo. Claro que a grande maioria dos mortos e das vítimas em geral são pobres, porque estes compõem a grande maioria da humanidade, mas os maremotos são menos seletivos socialmente.

Quanto aos mortos de fome no mundo, são pobres e miseráveis, vítimas das tsunamis diárias, cotidianas, sem holofotes, sem ajuda humanitária nem manchetes dos jornais. Morrem e são enterrados anonimamente, como as nossas crianças do Ceará.