Conselho Nacional de Recursos Hídricos aprova água do São Francisco

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Conselho Nacional de Recursos Hídricos aprova água do São Francisco

19/01/2005

Fonte Agência Carta Maior
Por Maurício Hashizume

Deu a lógica. Com o placar final de 36 votos favoráveis, dois contrários e dez abstenções, o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) aprovou parecer técnico da Agência Nacional de Águas (ANA) que atesta a disponibilidade de água para o projeto de transposição do Rio São Francisco proposto pelo Ministério de Integração Nacional (MIN). Dos 57 integrantes do Conselho, 29 são representantes do próprio governo federal.

O resultado da votação pode ser interpretado de variados ângulos, mas a decisão dos membros do CNRH, acima de qualquer proposta de atendimento da população que vive no Semi-Árido Nordestino, teve um sentido fundamental: “carimbar” água para o futuro da produção agrícola e da criação de camarões voltados para o mercado externo, principalmente nos Estados do Ceará e do Rio Grande do Norte. Mais do que referendar uma nota técnica que comprova a disponibilidade hídrica para o ambicioso projeto do MIN, os conselheiros e conselheiras deram o aval para que um setor específico da economia, bem diferente da propaganda dos supostos 12 milhões de atendidos, possa se beneficiar, com segurança, do uso econômico de recursos hídricos em uma região muito mais carente de políticas públicas estruturantes e de alternativas ao modelo de desenvolvimento do que propriamente de água.

A comparação do Eixo Norte (que transportará água para o Ceará, o Rio Grande do Norte e a Paraíba) com o Eixo Leste (que abastecerá cidades da Paraíba e de Pernambuco) feita pelo coordenador da Câmara Técnica de Outorga e Cobrança do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHRSF), Marcelo Asfora, tira da penumbra esse direcionamento que a votação não acusou. A estrutura do Eixo Norte, que consumirá dois terços dos 26m3/s autorizados pelo CNRH, precisa ser duas vezes maior que a do Eixo Leste para transportar a mesma quantidade de água. Segundo projeções feitas por especialistas que analisarem a proposta da transposição, cerca de 80% das águas do Eixo Norte devem ser utilizadas para irrigação de empreendimentos agrícolas. No Eixo Leste, 63% será destinado estritamente ao consumo humano. O Eixo Norte consumirá 70% do custo da obra, em comparação aos 30% restantes gastos com o Eixo Leste, dimensionou Asfora, que trabalha na Associação Instituto de Tecnologia de Pernambuco (Itep).

Levantamentos preliminares apontam, segundo o pesquisador, que 85% do custo de manutenção e abastecimento da água que será transportada (R$ 80 milhões por ano) serão pagos pelos consumidores urbanos. A porcentagem de demanda do Eixo Leste em relação ao total reivindicado pelos dois canais é de apenas 25%. Os usuários das regiões urbanas que serão beneficiadas pelos recursos trazidos pelo Eixo Leste, porém, teriam de arcar com 60% do custo de manutenção e sustentação do abastecimento para o projeto como um todo, caracterizando o chamado “subsídio cruzado”. “Os moradores dos centros urbanos que serão abastecidos pelo Eixo Leste pagarão pela água que será utilizada pelo agronegócio no Nordeste Setentrional”, lembrou o coordenador durante a reunião do CNRH.

Para elaborar o parecer aprovado, a ANA tomou como base contas simples de subtração. Como apresentou o técnico da Agência Alan Lopes, a quantidade atual de água do Rio São Francisco é a mesma de 1930. Mesmo no recente período hidrológico crítico (2001-2003), a ANA sustenta que não houve variação significativa da vazão na Represa de Sobradinho.

A ANA fez três projeções de consumo de recursos hídricos do Velho Chico para 2025. Hoje, a despeito dos 335 m3/s já outorgados, o consumo médio verificado é de 91 m3/s. Só com obras previstas no PPA, esse consumo subiria em 2025 para 170 m3/s. Até em uma situação-limite de crescimento estável de 5,2% do PIB nos próximos 20 anos, a ANA garante que a média de consumo não passaria a 262 m3/s. No cenário de maior demanda, portanto, a simples operação feita pela Agência para avalisar o projeto é a seguinte: 1825 m3/s (vazão total), menos 1300 m3/s (obrigatórios para manter o equilíbrio na foz), menos 262 m3/s (consumo estimado). O resultado disponível ainda seria de 263 m3/s. Se já estivesse implementado há dez anos, o projeto de transposição teria uma vazão média de 41 m3/s, acima dos 26 m3/s fixados como piso de retirada de água.

Asfora ressalta, porém, que a decisão de “reservar água” para um setor específico da sociedade em um cenário de escassez “vai além das contas numéricas”. Além da engenharia hídrica, é preciso também, e principalmente, “uma engenharia social e política”. Segundo ele, previsões da Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf) e da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) indicam o seguinte: em oito anos, o consumo médio dos recursos hídricos poderá subir para 365 m3/s. Isso sem contar a possível utilização em 180 mil hectares de projetos de irrigação inacabados, e outros 30 mil hectares consolidados para pronto cultivo que estão parados no presente momento. “Daqui a 30 anos, próprio consumo da bacia esgotará os recursos”, apregoa Luiz Carlos Fontes, secretário-executivo do Comitê de Bacia, contrariado pela decisão do Conselho que subjugou decisão do Comitê de autorizar a transposição apenas para consumo humano e animal, desde que comprovada a escassez.

A colocação de Fontes vai de encontro à argumentação do ministro interino da Integração Nacional, Pedro Brito, para quem os recursos destinados ao projeto de transposição são um “filetinho” de água, que corresponde a menos de 1% da vazão total, ou seja, “praticamente nada”. Na opinião dele, os benefícios sociais do projeto são tão eloqüentes que poderiam até dispensar análise dos benefícios econômicos. Mesmo assim, o ministro enfatiza que o Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados receptores poderá crescer 7% juntamente com a criação de 180 mil novos empregos. E completa: “Esse projeto não vai acabar com o problema da seca. Mas com certeza reduzirá as mazelas e a dependência da população que vive no Nordeste Setentrional”.

Brito lembra ainda que foram gastos cerca de R$ 2 bilhões em um período de dois anos na última seca, no final da década de 90. A megaobra do MIN está orçada em R$ 4,5 bilhões. “Esse projeto se paga com menos de duas secas. O custo para a sociedade de não fazermos esse projeto é imensamente maior do que fazer”, defende.

Asfora é bem mais cuidadoso. Para ele, a “cota” de água definida no parecer aprovado da ANA pode comprometer uma porcentagem aproximada de até 20% do potencial de aproveitamento das águas do rio. O coordenador da Câmara Técnica acredita que a decisão tomada pelo Conselho terá repercussões para além de 2025 e determina, na realidade, a manutenção do privilégio à irrigação em detrimento de políticas mais amplas de acesso à água. “Por que outros usos não têm o mesmo peso?”, indaga. Por trás de uma obra de grande porte e envolta em promessas, o pesquisador adverte que o que pode estar sendo perpetuada é a lógica da miséria dos excluídos tanto nas bacias doadoras como nas receptoras.